• Nenhum resultado encontrado

A OPINIÃO NA ESFERA PÚBLICA AMPLIADA SOB A PERSPECTIVA DO LIBERALISMO

3. CONSIDERAÇÕES SOBRE A GÊNESE SÓCIO-POLÍTICA DAS EXPRESSÕES

3.1. A OPINIÃO NA ESFERA PÚBLICA AMPLIADA SOB A PERSPECTIVA DO LIBERALISMO

As digressões historicistas feitas por Marx sobre a dialética da esfera pública burguesa e sua função ideológica eram por demais óbvias diante dos fatos. Tal situação não poderia, por isso, ser desconsiderada nem mesmo pelos teóricos do liberalismo econômico.

Nesse aspecto, faz-se novamente útil delinear a aparência externa da esfera pública tendo a Inglaterra do século XIX como referência, principalmente no período denominado Era Vitoriana (1837-1901). Naquele país, destacava-se dentre outros movimentos, a partir da década de 30, a reinvindicação cartista, conflagrada diante da demanda pelo direito a voto dos homens que compunham a classe operária politicamente emergente.

Na análise habermasiana, “com o liberalismo, a naturalidade burguesa da esfera pública perde a forma da filosofia da história em favor de ‘melhorismo’ do common sense”88. Dentre os burgueses esclarecidos, os cartistas se empenharam na defesa de eleições igualitariamente participativas como meio de representatividade legítima e como forma de reduzir os conflitos de interesse e decisões burocráticas, submetendo-os a critérios formais confiáveis do julgamento público.

A via escolhida, pois, era agradável aos olhos dos teóricos liberais, favorecendo a consecução de ideais vinculados às leis imanentes à dinâmica social, em defesa do Estado mínimo. Com essa fórmula, imaginavam que, se garantidas iguais oportunidades de representação parlamentar, a dominação estatal poderia ser subjugada pela discussão pública do interesse comum.

Todavia, no liberalismo também se esvai a esperança de resolver a dialética da esfera pública burguesa pela ampliação desta, na expansão dos direitos eleitorais. No diagnóstico de Habermas, a esfera pública “ampliada” não se aliviou de suas antíteses

88

estruturais. Perdeu-se pelo caminho a possibilidade de racionalização crítica para a efetiva formação de uma opinião pública, tal como sonhada por Kant, ou como conceituada em Hegel, já que nela não se configurava qualquer univocidade na defesa de um interesse comum:

(...) os irreconciliáveis interesses que, com a ampliação do público, afluem à esfera do que é público, arranjam a sua representação numa opinião pública fragmentada e fazem da opinião pública, na configuração da opinião dominante em cada momento, um poder coercitivo, embora uma vez se tivesse pensado que ela deveria dissolver toda espécie de coerção na coerção tão somente da compreensão que se impusesse.89

Habermas exemplifica a polêmica aceitação da opinião dominante ao citar Jeremy Bentham, que apontou a maioria proveniente das massas como critério confiável de justificação das decisões políticas. Stuart Mill rechaça a hipótese: para ele, qualquer maioria – fosse de proletários, fosse de homens de negócios – não poderia exercer o domínio por sua opinião, porque esta se constituiria na defesa da posição ou da identidade do status que ocupam:

(...) tudo que dissermos a favor de uma tal maioria valeria igualmente para uma maioria numérica constituída de homens de negócios ou de proprietários fundiários. Onde ocorre uma identidade da posição ou da atividade profissional, há de se cristalizar também uma identidade das tendências, das paixões e dos preconceitos; e armar uma dessas classes com o poder absoluto, sem dar-lhe um contrapeso em tendências, paixões e preconceitos de outra espécie, não é fazer outra coisa senão entrar pelo caminho mais seguro no sentido de aniquilar qualquer perspectiva de melhoria.90

Em que pese a posição de Mill, Habermas utiliza-se de seu pensamento, como também o de Tocqueville, para pôr à lume a maneira com que a esfera pública passa a se guiar por opiniões prontas, sem o esforço da ponderação. No entanto, o filósofo alemão também aponta certa hipocrisia no pensamento de ambos, pois o que eles chamaram de “coerção moral” da opinião pública dominante somente foi assim denunciado quando o público pensante, anteriormente formado por burgueses, “é subvertido pelas massas desprovidas de propriedade e de formação cultural”91.

89 Ibidem, p. 159.

90 MILL apud HABERMAS, MEEP, p. 162. 91

O reacionarismo presente no estado de direito burguês, conforme Habermas, empresta à opinião pública uma conotação invertida: de instância libertadora, ela passa a configurar em instrumento arbitrário da esfera pública.

A análise da atuação do Estado liberal, assim, dá assertividade à leitura habermasiana de que o liberalismo foi o primeiro a revelar o caráter dualista do Estado constitucional burguês, fundindo momentos considerados democráticos a outros efetivamente tidos como liberais. Sem conseguirem se desvencilhar de tal imbróglio, os liberais passam a reivindicar a existência de uma esfera pública “sem classes”, a tolerância à opinião minoritária e a publicidade dessa opinião, pleiteando, ainda, a proteção dos não-conformistas contra os ataques do próprio público92.

O fim da era liberal, com a grave depressão econômica de 1873, marcou as novas perspectivas que despontaram na modernidade, com a desconstituição da esfera pública burguesa e o surgimento de uma esfera do “social”. O Estado se vê cada vez mais burocratizado e centralizador, constituído de forma a intervir na sociedade para atender necessidades sociais urgentes, tais como a proteção dos direitos trabalhistas, ante a indeterminação econômica preeminente.

Surge uma esfera social repolitizada, marcada pela constitucionalização de uma esfera pública politicamente ativa. A garantia dos direitos sociais, tal qual se fazia necessária às parcelas que passaram a compor o público, demanda a transferência de competências públicas para entidades privadas, num processo que Habermas caracterizou de transmutação do poder público para um poder social93. E é nessa perspectiva de “socialização do Estado” e “estatização progressiva da sociedade”, que a esfera pública burguesa, até então a pretensa mediadora entre sociedade e Estado, passa a se dissolver por completo.

Diante de um Estado patriarcal, em vista de um mercado que necessita, cada vez mais, de regulamentação para a manutenção do equilíbrio financeiro e mercantil, disseminam-se os sindicatos, dando realce aos antagonismos econômicos na própria esfera política. Na necessidade de se guardar a ordem, não mais se fazem suficientes apenas o uso do poder de polícia no plano interno, ou das forças armadas, no plano externo: pelo Estado são absorvidas verdadeiras forças de estruturação, colocando-o como produtor e distribuidor.

92 Ibidem, p. 161-165.

93