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A OPINIÃO CRÍTICA VISTA A PARTIR DA RELAÇÃO ENTRE NORMATIVIDADE E

4. A OPINIÃO PÚBLICA DIANTE DO CONCEITO DE JUSTIÇA

4.3. A OPINIÃO CRÍTICA VISTA A PARTIR DA RELAÇÃO ENTRE NORMATIVIDADE E

Como já analisado, na constituição do Estado moderno, o pluralismo das visões de mundo foi gradativamente privando a autoridade política de sua base religiosa, demandando deste Estado secularizado uma legitimação por outras fontes, máxime considerando que as pessoas se desprenderam dos liames sociais organizados em estamentos para adentrarem em processos de individualização.

No âmbito da autonomia privada de cada indivíduo, por sua vez, a opinião crítica que dará base ao agir social se constitui pelo envolvimento subjetivo em questões ético-sociais e por razões morais.

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No ensaio “Para o uso pragmático, ético e moral da razão prática”, Habermas demonstra que, em termos éticos, a compreensão racional que o ser humano tem de si mesmo vincula-se a questões clínicas (klinisch) do bem viver, determinantes às inclinações e às preferências contingenciadas por decisões de valor grave139.

Assim, sob um ponto de vista ético, a opinião se molda a partir do que o indivíduo considera não apenas o que é possível e o que é adequado a fins, mas também o bom, seja para si, seja para fins inerentes a um grupo determinado, seja para um objetivo pessoal específico.

Já uma concepção crítica ordenada por aspectos morais analisa “se nossas máximas são conciliáveis com as máximas de outros”, exigindo para tanto uma ruptura com a perspectiva egocêntrica, uma vez que a reflexão irá albergar a conotação simétrica existente no respeito universalista “que cada um demonstra pela integridade de todas as outras pessoas”. Assim:

[O julgamento moral de ações e máximas] serve à elucidação de expectativas legítimas de comportamento em face de conflitos interpessoais que atrapalham o convívio regulado de interesses antagônicos. Neste caso, trata-se da fundamentação e da aplicação de normas que estabelecem deveres e direitos recíprocos. O terminus ad quem de um discurso prático-moral correspondente é uma compreensão sobre a solução justa de um conflito.140

Na opinião que se forma através do processo de racionalização linguisticamente mediado, em que os sujeitos exercem cognitivamente uma atitude objetivante diante da relevância de um dado objeto tematizável (seguida, em cada caso, de uma atitude conforme a normas, em face de relações interpessoais legitimamente reguladas; ou de uma atitude expressiva, em face das próprias vivências), há a inevitável instauração do discurso no momento em que é determinada a carência de entendimento mútuo.

A situação de ação, aqui, adquire sentido prático-linguístico, caracterizando-se numa situação de fala. Os atores assumem papéis comunicacionais alternadamente e possuem cada um sua perspectiva intersubjetiva, no interior de um processo argumentativo que é dialógico, racional e democrático, e no qual a perspectiva de cada um é universalmente ampliada.

139 Idem, Para o uso pragmático, ético e moral da razão prática. Trad. Márcio Suzuki. São Paulo: USP,

1989. (Revista Estudos Avançados). p. 7.

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À evidência, a razão comunicativa não se coloca, como a razão prática, como orientação normativa do agir (normatividade), mas auxilia a tecer uma teoria reconstrutiva da sociedade, costurando discursos decisórios e discursos formadores da opinião (racionalidade pela via pragmático-linguística).

Apesar de a normatividade, no sentido de uma orientação obrigatória, não coincidir com a racionalidade do agir orientado pelo entendimento, elas se cruzam no campo da fundamentação de intelecções morais que detêm certa força de motivação racional.

Diante da opção pela ordem estabilizada através da força e da ordem legitimada racionalmente, a fundamentação de justiça perante uma opinião crítica não reputa suficiente a mera invocação da normatividade do fático, uma vez que a racionalidade, inscrita no “telos lingüístico do entendimento”, detém força não-coercitiva de integração social141.

A autonomia moral, para Habermas, é possível na práxis pós-convencional, em que o indivíduo adquire a plenitude de sua autonomia para o uso público da razão: pela verdade toma-se conhecimento das possíveis causas e implicações de uma ação; pela justiça, é possível querer uma norma que todos também possam querer e aceitar, orientando a ação. É assim composto o princípio de universalização (U) que irá reger o procedimento discursivo, cuja abordagem ocorrerá no momento oportuno.

O olhar reflexivo de um participante do discurso, ao objetivar temas do mundo da vida cujo conteúdo se pretende resgatar através de pretensões de validade da verdade proposicional, de veracidade subjetiva e da correção normativa, não se satisfaz com o acervo factual das normas tradicionais, que passam a necessitar de uma justificação com base em uma “orientação em função de princípios de justiça e, em última instância, em função do processo do Discurso em torno da fundamentação das normas”142.

A opinião moralmente autônoma fundamenta-se, pois, por pretensões de validez reflexivamente examinadas, apoiada em juízos fundamentais, caracterizando o que Habermas denomina como “agir guiado por discernimentos morais”143.

Por outro lado, a formação política da vontade não se deriva apenas do aspecto individual das motivações e decisões, mas também dos processos institucionalizados que garantam liberdades comunicativas de formação de opinião e de deliberação, já que

141 HABERMAS, FV, p 20-22, v. I. 142 HABERMAS, CMAC, p. 199. 143

“uma teoria crítica da sociedade não pode limitar-se a uma descrição da relação entre norma e realidade, servindo-se apenas da perspectiva do observador”144.

Habermas demonstra, a partir da análise das atuais sociedades complexas, uma preocupação recorrente quanto à formação de opinião dos cidadãos e, de forma correlata, à própria democratização do saber, identificando certo encapsulamento do saber político de forma paternalista e monopolizadora, a favorecer a dominação por grupos que detém tal saber privilegiado. Como visto, desde a obra “Mudança Estrutural da Esfera Pública”, são constantes as digressões a respeito da aparente acessibilidade de todos a uma esfera das pessoas privadas reunidas num público.