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Instituições são plataformas ou camisas de força? sobre a desinstitucionalização das

III. CURADORIAS NESTAS LATITUDES E SUAS POTÊNCIAS POLÍTICAS

3.3 Eixos recorrentes

3.3.3 Instituições são plataformas ou camisas de força? sobre a desinstitucionalização das

A tendência e a luta por fugir das instituições e suas lógicas também fez parte das recorrências dos profissionais entrevistados. Alguns profissionais resistem às submissões exigidas pela máquina burocrática, isentando-se de qualquer relação direta com elas. Com isto se subtraem à necessidade da negociação com estruturas dos governos ou empresas que direta ou indiretamente pretendem determinar o formato, o tamanho, os objetivos e as prioridades dos projetos curatoriais na região.

É importante perceber o quanto esta pretensão é direta, no caso de empresas que concretamente exigem um determinado tipo de publicidade, determinados artistas, determinadas estruturas e o exigem como condição para financiamento; e quanto também é direta nos editais para financiamento público onde se estabelecem condições específicas onde os proponentes deverão encaixar suas propostas: edital de apoio à montagem de espectáculo circense, projeto

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começando tal data, finalizando tal data, deve percorrer x quantidade de cidades, custar até x quantidade de dinheiro, ter uma equipe de residentes e estrangeiros, pardos, brancos e negros x.

Nestes dois casos o proponente deve se adequar às exigências das organizações financiadoras e entender quais artifícios são possíveis para atender às necessidades financeiras e às necessidades intrínsecas do projeto, em relação ao seu contexto, objetivos específicos etc. Sabemos que estas exigências modificam e condicionam a produção cultural e as propostas curatoriais por consequência.

Como contrapor os interesses dos projetos quando sabemos que os interesses dos departamentos de marketing cultural não transcendem à exposição massiva da marca (salvo contadas exceções)? Como lidar com que as secretarias de cultura (caso existam) atendem a linhas estruturantes, que muitas vezes não transcendem uma celebração romântica do valor da cultura como diversão e lazer, uma contabilização de números de projetos financiados, comunidades atendidas, público atingido, sem observar, diagnosticar e avaliar como estes projetos realmente se inserem na cultura local? Como operacionalizar os projetos quando estas instâncias sofrem de um manejo estrutural extremamente burocratizado que gera atrasos e complicações operacionais que impactam na gestão de qualquer projeto cultural? Como não render-se às lógicas burocratizantes?

É sabido que esta relação institucional pode neutralizar os objetivos experimentais, artísticos e críticos das propostas pela exigência operacional, pois, dentre outras coisas, eles demandam uma certa submissão. Como lidar com a sensação que os fundos de apoio públicos não suprem as necessidades da cultura? Como lidar essa submisão que estes mecanismos exigem? Muitas vezes nossa submissão ao financiamento pode ser neutralizante. Nelly Richard reflete sobre esta submissão apresentando sua observação sobre o panorama (2009) da produção artística chilena:

A paisagem artística local se vê hoje integrada por obras que, graças aos aportes do Fondart43, já não precisam viver o crítico-experimental nem com paixão nem como desafio. A regularidade dos sistemas dos fundos e o planejamento das mecânicas de produção, de acordo ao verossímil burocrático-

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93 institucional do formato “projeto” produziram um efeito normalizador e domesticador sobre as obras que parece eliminar do horizonte tensional a questão do desejo (da insatisfação), do risco (do gosto pelo não garantido) e do conflito (a capacidade de gerar turbulências de sentido, levando as forças a sua tensão máxima). A padronização de toda a gramática de produção artística, baseada numa cultura de catálogos internacionais, levou o crítico-experimental a uma retórica academizante que substituiu a aventura da arte pelo formulismo da citação previsível44 (RICHARD, 2009).

Uma resposta possível a estes questionamentos é simplesmente não lidar com estas instituições. Não se submeter às suas lógicas e produzir outras paralelas, autônomas. Os artistas e curadores criam redes de afetos, financiamentos coletivos e cidadãos, economias criativas, que garantem o mínimo necessário para continuar produzindo e colocando no mundo seus pontos de vista. Eles não se cansam de fazer, apenas decidem se comprometer com a escala do possível com as “próprias mãos”, com a escala da mudança caseira e artesanal, com a valorização do pequeno número e sua importância na construção social. Sua dissensão está no fato de renunciar ao apoio das instituições e mesmo assim continuar mobilizando pensamentos e ações.

Nascem aqui projetos sustentados através de crowdfounding, residências artísticas em casas de outros artistas, autofinanciamento, mostras e festivais domésticos, bienais e programas online, exposições em botecos e bares, festas para arrecadação de fundos etc. São todas estratégias válidas e em muitos casos trazem riqueza cultural pois no deslocamento dos formatos de pesquisa e apresentação, formas de produção, relação com os públicos etc, podem beneficiar- se experimentações que mantém vivo o dispositivo crítico, autônomo e político das artes. Já vimos no segundo capítulo e no comentário de Richard como a autonomia pode ser fundamental para garantir colocações necessárias e radicais.

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El paisaje artístico local se ve hoy sobrepoblado de obras que, gracias a los aportes del Fondart,4 ya no necesitan vivir lo crítico-experimental ni como pasión ni como desafío. La regularidad de los sistemas de fondos y la planificación de las mecánicas de producción de acuerdo al verosímil burocrático-institucional del formato “proyecto” han producido un efecto normalizador y domesticador sobre las obras que parecerían haber eliminado de su horizonte tensional la cuestión del deseo (de la insatisfacción), del riesgo (del gusto por lo no-garantizado) y del conflicto (la capacidad de generar turbulencias de sentido llevando las fuerzas a su tensionalidad máxima). La estandarización de toda una gramática de producción artística basada en una cultura de catálogos internacionales ha convertido lo crítico-experimental en una retórica academizante que reemplazó la aventura del arte por el formulismo de la cita previsible.

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Contudo, esta posição é passível de críticas. Apresento, a seguir, apenas algumas com as quais estou familiarizada. Minha intenção é problematizar estas posições e que possamos estar alertas.

● Os primeiros questionamentos no seguinte sentido: se, por exemplo, consideramos o enfoque dado por Marilena Chauí (2006), que entende a cultura como um direito da cidadania, e não apenas como um objeto de luxo para demarcar as classes sociais, onde os governos têm um papel fundamental na garantia destes direitos cidadãos, poderíamos pensar no que acontece quando isentamos nossos projetos dos orçamentos públicos? Em que será investido esse dinheiro? Por um lado, estaremos isentando os governos da sua responsabilidade de financiar a construção de conhecimento no âmbito cultural e garantir os direitos de acesso aos saberes culturais de todos os cidadãos. Por outro, estaremos justamente nos isentando da responsabilidade cidadã de pressionar os governos a investir dinheiro, energia e equipe no âmbito simbólico e sensível dos cidadãos, aspecto fundamental para o bem estar da sociedade.

● Assim também, se é sabido que os financiamentos institucionais não cobrem dignamente os custos dos projetos curatoriais que desenvolvemos, também os financiamentos paralelos trazem enormes desafios enquanto disponibilidade de recursos econômicos. Quais propostas são dignamente financiadas pelas estruturas de troca e apoio comunitário? É possível que esta escolha contribua para um neoliberalismo inconsciente que só remunera justamente aquelas propostas que os públicos/contribuintes “gostam” e conhecem e estaremos fugindo de novo da problemática do acesso à cultura que impacta os gostos e necessidades.

Paralelamente, no caso de propostas menores, experimentais, em processo de legitimação, quem está realmente financiando estes projetos? Eis uma discussão que aparecerá mais adiante e que tem a ver com a invisibilização das verdadeiras fontes de recursos dos profissionais da cultura. Esta invisibilização acontece inclusive quando nos associamos a instituições, pois de modo geral, como dito acima, os orçamentos são extremamente limitados, não pagam pré- produção, anos de estudo, pesquisas e diagnósticos, avaliações etc. Mas quando trabalhamos de modo “independente” dos patrocínios públicos ou privados, quem está “bancando”? As famílias?

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Os trabalhos paralelos? A herança? Quem sustenta a efervescência cultural da qual nos orgulhamos quando nos isentamos das instituições? Devemos pensar como estes recursos podem vir à tona como potência e não ser invisibilizados sob o alardeio de uma suposta independência.

● Outra questão relacionada às anteriores: como contribuir com a profissionalização dos agentes culturais se constantemente estão vivendo em precariedade econômica e não se remuneram o mínimo justo para viver como qualquer profissional do mesmo porte de outra área? Como valorizar socialmente o trabalho artístico-cultural quando nós mesmos não lutamos pelo reconhecimento financeiro mínimo para tal? Será necessário convocar um equilíbrio saudável entre a autonomia política e a dependência do sistema econômico para não contribuir.

● Talvez uma das questões mais complexas seria a possibilidade de estar contribuindo para a sistemática concentração de saberes nas elites culturais que apenas atingem artistas, seus amigos e familiares. Trouxe esta questão no capítulo dois, quando apresentei Gerado Mosquera e Hal Foster, explicando que a autolimitação através da “exclusividade aurática” foi uma das ferramentas das artes para se proteger da neutralização dos sistemas econômicos e burocráticos que pretendem engolir qualquer manifestação do dissenso. Neste sentido, é necessário ponderar se estas propostas dissensuais poderiam estar contribuindo à sua própria neutralização, à limitação de acesso, à repressão dos fluxos de saberes, ao reforço à ideia da cultura como objeto de luxo disponível apenas para aqueles iniciados e detentores de algum poder, pois isto se contrapõe a todo o discurso de democracia cultural, cidadania cultural, acessibilidade etc.

● E por último, será que estas formas de financiamento paralelas respondem apenas ao interesse de se libertar das lógicas econômicas das instituições patrocinadoras, ou é possível que respondam a um alinhamento com outras formas de produção artística? Por exemplo, afirmar que os artistas estão produzindo em formato “solos” de música, de dança, de teatro, apenas porque querem baratear os custos de produção e ser mais atrativos ao mercado, pode ser uma generalização superficial demais? Esta forma de trabalhar autoralmente, pela lógica do artesanal, pelos pequenos grupos que se associam

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em outras redes, que falam de si, não é necessariamente uma fragilidade econômica à que a produção artística responde se reduzindo em tamanho. É possível pensar que responde a interesses de outra ordem para além do operacional. Pensar que grande, extenso, rico é sempre melhor e bom é um paradigma correspondendente a uma certa lógica. Pequeno, curto, aprofundado, artesanal pode não ser necessariamente frágil e débil. Como sempre o prisma através do qual vemos estas realidades será fundamental para saber a que respondem.

Talvez seja preciso pensar em formas de sair deste dualismo onde se é totalmente submisso ou se é totalmente autônomo. É necessário reconhecer possibilidades de resistência que não caiam no cinismo de criticar aquilo do qual também fazemos parte, nem na ingenuidade de pensar que existe uma liberdade possível frente às complexidades de nosso campo e nosso compromisso político.