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III. CURADORIAS NESTAS LATITUDES E SUAS POTÊNCIAS POLÍTICAS

3.3 Eixos recorrentes

3.3.4 Perfil dos artistas como conteúdo curatorial

Este foi um eixo que apareceu inúmeras vezes nas falas dos entrevistados. Em vários momentos da entrevista a dimensão da relação pessoal, que transcende o âmbito operacional e financeiro marcou presença. Para muitos se faz necessária a possibilidade de um tecido afetivo forte e flexível para realizar estes projetos. Como vimos nos eixos anteriores, a limitação financeira é uma das razões porque outros tecidos precisam estar mais fortalecidos.

Porém, muito mais que o aspecto financeiro, é a garantia de estar encontrando pessoas que criam epicentros políticos com sua própria forma de ser-estar no mundo. A generosidade, humildade, abertura e flexibilidade resolutiva é indispensável para alinhar ações e pensamentos em torno de uma redistribuição do sensível dentro destes projetos.

De tal sorte, muitos destes profissionais entrevistados se descreveram atentos ao perfil pessoal dos artistas. Paula Giura inclusive afirmou que um dos aspectos fundamentais na curadoria que realiza implica em perguntar-se “quem são os artistas envolvidos? De onde são? Que idades têm? Qual é sua história? Que papel exercem nos seus meios de trabalho?”(GIURA,

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2013, tradução nossa). Em geral, consideram o perfil do artista como conteúdo tanto das obras quanto da curadoria total. Estes dados sobre os artistas fornecem pistas sobre que tipo de conhecimentos eles promovem, que formas de relação instituem nos seus contextos, como poderão ser as negociações operacionais, como serão as relações destes com os públicos e com os participantes. Considerar o perfil pode instaurar um ambiente de confiança que impulsa uma forma menos mercantilizada de estar no mundo, uma forma que conta com as pessoas e suas atitudes para construir um campo energizante de intercâmbio sensível e simbólico em torno dos projetos.

Como se vê, esta aposta se vincula com a de desinstitucionalização, no sentido em que investe nas relações afetivas como base para a construção das lógicas artísticas e sociopolíticas. Acredito que a potência está na capacidade de aprofundar o diálogo entre agentes culturais que articulam práticas e ideologias em torno de um modo de vida, encurtando a distância entre arte, vida e política. Realmente acredito que esta forma de fazer é extremamente potente e contribui para o fluido desenvolvimento das ações na medida em que fortalece uma comunidade dissensual.

Este posicionamento se contrapõe ao velho “divismo” artístico que cultua a figura do artista submerso no seu ego e suas preocupações artísticas individuais, neutralizado pelas premiações (lembremos a crítica de Said a este respeito), que se gaba de um certo desprezo pelos públicos e uma acérrima competitividade sobre os discursos de talento, estrelismo e evolução estética. Como seria possível criar diálogos entre vários artistas com este perfil? Se tivermos que desgastar a energia vital, fazendo conviver minimamente pessoas individualistas, ególatras, protegidas pelos seus pequenos poderes, como aprofundar nas questões que interessam aos agentes culturais do dissenso?

Se bem que, em alguns contextos, isto parece uma figura histórica superada e caricata, na maioria daqueles que discutiram o perfil do artista ainda se vive e se sofre esta caraterização do artista e é preciso se contrapor a ele, caso se queira modificar as bases da relação entre artistas e vida.

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Porém, podemos questionar esta escolha pelos perfis de artistas colaborativos e politizados das seguintes formas:

● Esta consideração pelo perfil corre o risco de se tornar exclusivista na prática. Podemos estar construindo uma hegemonia dos artistas “descolados”, constituindo apenas um novo perfil caricato, apenas formando novas “panelinhas”. Mesmo que de alguma forma facilite nossas gestões e aprofundamentos, sempre valerá a pena considerar os olhares que se produzem em outros paradigmas, ainda que seja para reafirmar nossa posição, como para nos transformar caso seja necessário.

● O que acontece com aqueles artistas que foram “criados” pela hegemonia dos “mestres”? Eles desconhecem outra forma de agir no mundo. Assim, como poderiam ter contato com outras formas, se seu trabalho estético não é suficiente para obter o benefício de “entrar”?

● E, caso optemos por esta “exclusão” dos pefis complicados, as tensões necessárias entre os diferentes, entre diferentes formas de aproximação ao saber, poderiam ficar de lado na lógica de garantir uma diversidade contida. Não conviver e não contemplar artistas de outras tradições e formas de pensar estaria contribuindo a um contínuo achatamento da riqueza da diferença e da possibilidade da construção coletiva de um saber complexificado. Inclusive porque muitas vezes é necessário a presença daquele artista que responde às lógicas hegemônicas e o assume publicamente, para que tenha lugar o posicionamento público e político daqueles que não concordam com este paradigma.

Mais adiante discutirei brevemente a questão da diversidade e o convívio com o conflito próprio da diversidade e sua potência mobilizadora, porém resta aqui apenas um alerta: estamos neutralizando o poder da divergência e a potência do conflito? Estamos criando novos estereótipos de artistas para o mercado? Como considerar o perfil do artista como conteúdo do trabalho curatorial, mas apenas como um dado que pode servir ou não a determinados objetivos e não apenas como critério de exclusão? Neste sentido, vale a pena pensar fora do olhar dicotômico de apenas se contrapor ao poder frontalmente, e pensar que esta lógica de afetividade pode ser

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uma estratégia e especificidade que responde e se desdobra das formas culturais latinoamericanas.

3.3.5 Não existe curadoria sem contexto: apontamentos sobre curadorias e seus contextos