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III. CURADORIAS NESTAS LATITUDES E SUAS POTÊNCIAS POLÍTICAS

3.1 Pontuações preliminares

Para começar este capítulo, onde pretendo discutir as ações políticas dos entrevistados, farei uma pequena introdução onde resgato o valor de ter escutado 17 profissionais das artes que desenvolvem curadorias e de construir, a partir das suas falas, uma análise que relaciona diversas experiências do meu contexto profissional na região latinoamericana.

Neste sentido, devo me reconhecer alinhada à função que o curador nigeriano Okwui Enzewor dá às curadorias: contar as próprias histórias e mostrar o lado que ficou oculto enquanto nossos intelectuais e artistas ganhavam competência para contar por si mesmos e mudar sua própria história.

Na entrevista compilada no livro “Interviews with Ten internacional curators”, organizado por Caroline Thea, Enzewor comenta sobre sua exposição “The Short Century”, que teve como objetivo difundir diferentes histórias e experiências africanas que mostram outro ponto de vista "desconhecido" pelo ocidente e inclusive pelos próprios cidadãos africanos. Enzewor citou um provérbio local para descrever esta problemática, seguida da sua reflexão sobre o assunto que acredito ser fundamental para entender o que farei neste capítulo:

O provérbio é algo assim "Até que os leões inventem sua própria história, a história da caça será sempre a do caçador". […] Então, até que você não tenha a competência para contar certas histórias, você sempre será definido pelo caçador […] Eu não queria que a exposição criasse uma oposição ou perspectiva binária, mas colocar um ambiente para a discussão histórica, onde artistas e intelectuais pudessem explorar sua função na formação da cultura contemporânea41 (THEA, 2009, p. 57, entrevista a Okwui Enzewor).

Assim como ele, minha intenção com este capítulo é fazer aparecer reflexões e exemplos que derivam de práticas curatoriais concretas desta região. Busco contribuir com a construção

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The proverb goes something like this: “Until the lions invent their own historian, the history of the hunt will always be that of the hunter” For me, this is what “The Short Century” was about. Until you have the competence to tell certain stories you´ll always be defined by the hunter! […] I didn´t want that the exhibition to function as binary opposition or perspective, but to focus on the larger historical backdrop against which artists and intellectuals could begin to explore their task in the formation of the modern culture.

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da história regional das curadorias e com a visibilidade das propostas e reflexões dos profissionais que atuam neste ambiente.

Dito isto, ainda preciso fazer algumas pontuações que ajudam a localizar o caráter deste capítulo:

Como visto no primeiro capítulo, os contextos dos entrevistados são bastante diversos; suas áreas de trabalho também; portanto, os projetos apresentados por eles nas entrevistas têm formatos, periodicidades e objetivos diferenciados. Assim, discutirei de forma geral as principais recorrências, sem aprofundar nas diferenças estruturais devido à limitação de tempo e espaço nesta pesquisa.

- Os curadores têm níveis de experiência diversos e neste sentido acredito que todas estas observações e questionamentos apontam para o status processual (porém, não evolucionista) de suas carreiras. O que apresento aqui não são críticas conclusivas sobre seus desenvolvimentos como profissionais.

- Os contextos são determinantes para a reflexão sobre quais ações seriam consideradas consensuais ou dissensuais. A mesma ação pode ser em alguns projetos contra-hegemônica e em outros pode contribuir para a manutenção do status quo.

Portanto, como disse no primeiro ponto, os levantamentos que faço surgem do conhecimento parcial e limitado que possuo destes projetos, pois derivam apenas do estudo das entrevistas, de experiências de participação pontual em algumas propostas e dos materiais gráficos a que tive acesso e que servem como documento parcial destas iniciativas.

Desta forma, o capítulo se baseia principalmente na autopercepção que os entrevistados têm de seu trabalho. Não é uma análise das “realidades”, mas das falas dos realizadores. Esta é, como toda análise, parcial e limitada e nos aproxima de uma parte valiosíssima das realidades, mas não pode ser tomada como a totalidade.

- Estudei e analisei no capítulo dois alguns intelectuais que propõem noções radicais do que seria consensual e dissensual. Isto colaborou para criar um marco referencial para analisar as falas dos entrevistados. Será extremamente difícil julgar o trabalho de qualquer destes profissionais,

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porém, a tentativa será reconhecer quais aspectos constituem resistências e brechas para o exercício do dissenso. É nestas falas e nos exercícios políticos que eles apresentam que se confirma que o sistema e seu consenso não podem controlar tudo o tempo todo. Felizmente, alguma coisa escapa e é isso que quero reconhecer, questionar e inclusive contribuir para aprofundar.

- Vários aspectos tratados neste capítulo podem parecer apostas políticas periféricas ao trabalho curatorial. Convido a pensá-las como parte do trabalho pois estão interligadas aos objetivos que mobilizam cada uma das propostas, trazem à tona diferentes esferas que, articuladas, fortalecem o trabalho curatorial e o complexificam. Estes aspectos aparentemente periféricos refletem a multiplicidade de ocupações que a curadoria nesta região requer. O que veremos são plataformas que se interconectam.

- Cada um destes tópicos analisados a seguir poderão se tornar novos projetos de pesquisa. Levantar questionamentos, abrir janelas, despertar o olhar crítico, o “benefício da dúvida”, será o primeiro passo para começar estes desdobramentos e assim colaborar com a função que como intelectual me imponho: manter o olhar alerta para as armadilhas do consenso, para identificar quando somos presos por elas e quando encontramos uma brecha para lutar contra elas, e oferecer este olhar no âmbito público e aos meus colegas.

- O levantamento de questionamentos acontecerá concretamente com perguntas que manifestam, pela sua própria formulação, a principal ferramenta política do trabalho intelectual que me propus. Cada uma destas perguntas apontará caminhos possíveis para refletir sobre as práticas curatoriais. Elas refletem os conhecimentos e atenções que reuni ao longo da pesquisa pelo meu encontro com autores e experiências que modificaram meu olhar. Vejo nesta metodologia da pergunta a potência de trazer à luz questões geralmente excluídas da discussão sobre práticas curatoriais. Lembremos ainda que poucas instâncias de reflexão curatorial são praticadas na nossa região.

Esta potência não pode ser neutralizada por uma tentativa de resposta, quer dizer, eu não devo responder. Não seria apropriado pois, como disse antes, os dados específicos de cada contexto e a experiência concreta e particular que vivem cada um dos profissionais que

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entrevistei não pertencem ao meu repertório de vida. Eu posso perguntar, mas não me arriscaria a responder pelo desconhecimento das limitações específicas e estaria sobretudo sendo contrária à solidaridade necessária para a construção coletiva dos saberes onde ser crítico não significa querer destruir e julgar antecipadamente as ações dos outros profissionais do campo. Com isto quero reforçar: minhas perguntas não são retóricas, querem indagar, oferecer caminhos, abrir espaço para a dúvida, oferecer esse olhar e contribuir assim com formas mais amáveis de pertencer à ecologia de saberes nesta área de estudos.