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3.4 A que serve esta resiliência? A resiliência das mulheres e periferias

4.2.3 Instrumentos de acesso às narrativas

Embora por muito tempo tenham sido privilegiadas, nas Ciências Humanas, a visão dos pesquisadores como a verdade sobre o pesquisado, nas últimas décadas tem existido o esforço da escuta e valorização às vozes dos especialistas das suas próprias vidas e experiências – os participantes da pesquisa. Com esta preocupação, a estratégia narrativa se faz relevante aos estudos que almejam compreensões sobre a forma como as pessoas significam às suas experiências, a si e aos grupos dos quais faz parte (Caixeta, 2006).

As narrativas podem ser compreendidas como textos, sejam eles falados ou escritos, que abordam fenômenos e/ou eventos, organizados no tempo (Creswell, 2014). Para Clandinin e Connelly (2011) através das narrativas se apresentam formas de compreensão da experiência humana, na qual histórias são (re)vividas e (re)contadas. Em geral, com essa estratégia são acessadas histórias acerca das vivências dos indivíduos, sendo forte o caráter colaborativo entre pesquisador e participante(s). Nas narrativas, os sujeitos falam de si e dessa forma expressam as imagens que têm de si mesmos. As histórias narrativas são sempre inseridas em um contexto que deve ser considerado pelo pesquisador (Creswell, 2014).

Na Investigação Orgânica, a narrativa se dá na forma de histórias, as quais “são como veículos evocativos de sentir e pensar, apresentam uma visão diversa e íntima do tópico” (Clements, 2011, p. 171, tradução livre). O objetivo transformador da investigação é oferecido pelas histórias dos participantes e pesquisador ao leitor, bem como o próprio ato de contar histórias pode ser provocador de mudanças para pesquisador e participante (Clements, 2011).

a) Diário de pesquisa

Os diários em pesquisa podem assumir diferentes funções, e sua utilização é recomendada para toda investigação com proposta participativa. Sua função compreende minimamente o registro de eventos, datas e pessoas, mas pode incluir, conforme necessidade, anotações, desde as mais curtas que suscitam reflexão posterior, como mais densas, com finalidade descritiva, além de reflexões, sentimentos e até análises preliminares, despertados pelo contato com o campo de pesquisa (Gray, 2012).

Neste estudo, o diário foi proposto como um diário de narrativas da pesquisadora em relação ao estudo como um todo, tendo seu início com o nascimento da ideia da pesquisa. Conforme Clements (2011):

O primeiro passo em uma pesquisa orgânica, uma vez que o tema é escolhido, envolve escrever a história da experiência pessoal do pesquisador. O tema provavelmente terá um profundo significado pessoal, e este é o lugar para examinar e registrar isso. (Clements, 2011, p. 194, tradução livre)

O diário continuou conforme a investigação tomou forma, incluindo, mas ultrapassando o trabalho de campo, ou seja, o trabalho do contato com o local e participantes da pesquisa (Minayo, 2011). Como uma narrativa que atravessa toda a pesquisa, o diário foi utilizado nos principais momentos de contato direto com as mulheres enquanto participantes, incluindo os momentos de entrevistas, servindo como ferramenta em que se registravam elementos que escapam às palavras registradas no gravador de voz, como expressões corporais das entrevistadas, sentimentos e sensações despertos pelo momento na pesquisadora, tal como outros dados de contextualização para as entrevistas.

É importante destacar que o contato com a comunidade, por vezes, escapava à elaboração da pesquisa, se tornando então impossível que todo contato fosse registrado em

diário. No entanto, ao menor sinal de que aquele contato fosse relevante à pesquisa, acionava- se alguma ferramenta para registro. Entre cadernetas com anotações rápidas, diretamente do campo, e grandes documentos digitais nas horas seguintes a uma imersão, além de registros que não se dirigiam objetivamente a algum contato específico, o diário tomou forma como um espaço de livre expressão para a pesquisadora, no qual se buscou reunir conteúdo que se relacionava à investigação.

A opção por um diário livre, em que se pudessem acumular histórias mais do que dados de pesquisa – com emoções, afetividade, lembranças e recortes de experiências pessoais que por algum motivo ressoavam com a pesquisa, além das expectativas e intuições sobre o estudo – por um lado, permitiu que a narrativa se desenrolasse em vários momentos com maior facilidade, sem que percepções diferentes da intelectual fossem censuradas; por outro lado, o reconhecimento de que um diário como esse não se dirige à análise e publicação, gerou dúvidas na própria pesquisadora quanto à sua validade e função na pesquisa.

Diante disso, concorda-se com Weber (2009, p.169), quando este argumenta:

Para ser eficaz, a manutenção do diário deve ser a menos censurada possível: o que pressupõe que não se teria o projeto antecipado de publicá-lo. Confundir o ‘fora do texto’, o material de pesquisa, com um ‘texto’ a ser publicado na forma de diário literário constituiria para a pesquisa um obstáculo inverso, mas tão difícil quanto a incapacidade de se manter o diário. O diário de campo não é um texto secreto, é um estoque de materiais para utilizarmos sem preconceito, mas cientes dos seus propósitos.

Neste sentido, o diário permitiu à pesquisadora navegar pelas impressões, de naturezas diversas, que acompanharam os pensamentos, durante toda a pesquisa, auxiliando a análise e a sua própria transformação pelo estudo, tal como objetivado pela metodologia da Investigação Orgânica (Clements, 2011).

b) A Entrevista narrativa

A entrevista narrativa é um método que volta seu interesse aos significados que emergem nas narrativas das histórias dos sujeitos participantes. O entrevistado conta uma história, seja de um acontecimento importante ou de uma sequência de acontecimentos passados em sua vida. No processo narrativo, o participante ressignifica os acontecimentos a partir da sua vivência (Caixeta, 2006; Caixeta & Borges, 2017).

Sendo um tipo de entrevista não-estruturada, a entrevista narrativa não propõe previamente uma série de temas ou perguntas, permitindo uma narrativa mais livre, espontânea, própria. Por outro lado, é necessário conhecimento prévio do pesquisador acerca o campo estudado e da temática a ser abordada pelo entrevistado (Jovchelovich & Bauer, 2002).

As entrevistas ocorreram em lugar reservado de preferência da entrevistada, variando entre a própria casa e alguma sala disponibilizada para pesquisa, no espaço do NEIMFA. Em todo caso, foi garantido que a participante estivesse à vontade, confortável e disponível. Em vários casos, por pedido das próprias participantes, o espaço de entrevista foi um espaço de circulação de outras pessoas, conhecidas das participantes, seja em casa, seja no NEIMFA. Em um dos casos, foi pedido que a própria mãe, também participante da pesquisa, estivesse junto na entrevista. Essa configuração parecia ser a mais natural para a maioria das mulheres, representando maior segurança e familiaridade para se expressar, em detrimento de estar a sós com alguém pouco conhecido – a pesquisadora.

Na primeira fase da entrevista, a pesquisadora esclareceu do que se tratava o estudo, abordando e garantindo o cumprimento dos aspectos éticos, relativos ao consentimento livre e esclarecido, à gravação de voz e, quando necessário, à anuência, para então apresentar a pergunta gerativa de narrativa. Buscou-se que essa primeira pergunta fosse acessível à entrevistada, fazendo parte de sua experiência, a fim de garantir o interesse em participar e

responder à entrevista. Buscou-se também que a pergunta fosse suficientemente ampla, para dar margem a uma narração igualmente ampla e rica em detalhes (Caixeta, 2006; Jovchelovich & Bauer, 2002). Nesta pesquisa, a questão disparadora foi:

Eu gostaria que você me contasse a história da sua vida, desde quando você era pequena até hoje, passando pelos momentos difíceis, os aperreios, e como você fez pra enfrentar isso, até se tornar uma mulher hoje reconhecida no Coque como guerreira.

A fase seguinte, de narração central, teve o objetivo de permitir a livre narrativa da entrevistada, até que a mesma sinalizasse que concluiu sua fala. A terceira fase da entrevista, de questionamento, teve a finalidade de pedir esclarecimentos de dúvidas geradas na pesquisadora acerca da narrativa ou ainda para solicitar informações que sejam necessárias e ainda não tenham sido abordadas. Por fim, a fase conclusiva se deu após o encerramento da gravação da entrevista, quando, por vezes, a entrevistada continuou sua fala. Nos casos em que houve consentimento, as falas posteriores à gravação foram registradas pela pesquisadora no diário de pesquisa (Caixeta, 2006; Jovchelovich & Bauer, 2002).

Todas as falas que tiveram seu uso consentido foram posteriormente transcritas, para que então se procedesse à análise.