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Ninhos periféricos de resiliência: relações familiares e comunitárias

Vários são os autores que defendem que a família pode ser uma base para a construção da resiliência (Cyrulnik, 2004; Cyrulnik & Cabral, 2015; Rooke & Pereira-Silva, 2012; Walsh, 2016; Yunes, 2003; Yunes, Mendes, & Albuquerque, 2005; Yunes & Szymanski, 2003, 2006). Também é reconhecida na literatura científica a relação entre resiliência e contexto comunitário (Bezerra, 2015; Cabral, 2015; Ojeda, 2005; Ojeda, Jara, & Márquez, 2007; Peres et al., 2018). Considerando os resultados de nosso estudo, elencamos a seguir algumas articulações com tal literatura. Usando a metáfora de ninhos periféricos, convergimos as categorias abertas olhares sobre o Coque, relações comunitárias e relações familiares, as quais estiveram, em nossa análise, conforme redes de significados, fortemente articuladas, às estratégias para continuar a nascer.

O ninho, é um espaço de desenvolvimento que possibilita a organização de atitudes e estratégias que serão usadas ao longo da vida. A periferia, por sua vez, pode ser compreendida como um sentimento de pertencimento e uma atitude de não assujeitamento à margem. Esta mesma periferia tem construído maneiras de ser solidárias e amparadoras entre os que a compõem, bem como modificadoras da realidade social (Souza, 2014; Takeuti, 2010). Assim, os ninhos periféricos podem ser compreendidos a partir das relações e vínculos que se estabelecem nesse contexto, construindo vivências transformadoras e, portanto, resilientes.

No presente trabalho, nota-se que as mulheres encontram na família e na comunidade uma espécie de ninho, que facilita e alicerça seu desenvolvimento, ainda que em meio a dificuldades. Em outras palavras, esse ninho familiar e comunitário permite construir resiliência.

Não obstante histórias de distanciamento afetivo, ausências e até violências nas famílias de origem, como as de Flora, Meri, e Ametista, todas as mulheres, com exceção a Pérola, citaram algum suporte neste primeiro grupo familiar. Na geração 1, as três mulheres buscaram posteriormente por uma nova configuração familiar, que melhor as amparasse, com origem em um casamento e baseada na colaboração mútua, para benefício e crescimento coletivos e, mesmo com dissolução parcial ou completa desse projeto de família, essas mulheres encontram novos desenhos familiares que constroem também formas possíveis para continuação da vida. Ainda que todas na geração 2 tenham se casado, essa união não é citada como algo determinante frente às maiores questões de suas vidas. A maternidade, ao contrário, as faz revisitar suas feridas anteriores e ressignificá-las ou reagir sobre estas. Na geração 3, Íris afirma ter apoio na família, ainda que haja incompreensão pontual.

Conforme exposto, as vivências dessas mulheres vão ao encontro do que se denomina resiliência familiar. Esta última pode ser compreendida como um processo de fortalecimento

tanto do indivíduo, quanto da família, em relação, no enfrentamento a adversidades (Walsh, 1996, 2016; Yunes, 2003; Yunes & Szymanski, 2006).

Na Psicologia Transpessoal, as relações familiares são abordadas por autores como Grof (2000) e Wilber (2007, 2010), os quais compreendem que os laços construídos, desde a mais tenra idade, alicerçam o processo de desenvolvimento humano. Assim, apontam para a importância da família de origem nessa formação. No mesmo sentido, Cyrulnik e Cabral (2015), argumentam pela importância da vinculação segura para esse desenvolvimento e consequente base para a construção de resiliência.

Algumas das histórias de nossas participantes descrevem vínculos fragilizados nas famílias de origem. Entretanto, assim como sugerem Cyrulnik e Cabral (2015), essas mulheres encontram em outros eventos significativos na sua trajetória, tais como o casamento, a maternidade e a nova organização familiar, uma forma de buscar estabelecer vínculo seguro.

De forma semelhante a Sousa (2006), percebemos nas nossas mulheres que a nova dinâmica familiar, a qual se revela com o advento da conjugalidade, da maternidade e dos consequentes novos projetos de vida familiar, demandam diferentes formas de viver que podem levar ao processo resiliente. Ainda, o entendimento da experiência da maternidade como uma abertura para novos padrões de vinculação está, no presente trabalho, em consonância com o indicado por Felice (2007), quando credita a esta um poder transformador e curativo para a mãe, em relação a experiências anteriores.

Ainda no que se refere a esse ninho familiar, Cyrulnik (2004) argumenta que uma família suprida afetivamente e socialmente oferece maior segurança para a construção da resiliência dos seus membros. Assim, as famílias também se inserem em um contexto comunitário e social, o qual influenciam e pelo qual são influenciadas. Passamos então ao segundo ninho: a comunidade do Coque.

Todas as mulheres citam violências que perpassam a vivência na comunidade. De forma distinta, porém, elas veem e vivem a comunidade. Oceana e Meri falam de um Coque que abriga as incongruências da criminalidade e o estigma da margem social, mas também onde vivem pessoas “direitas” que se ajudam. Flora e Ametista, por sua vez, falam de lugares, pessoas e experiências boas e ruins em comunidade, e abordam ajudas pontuais recebidas, além da inserção em um grupo, no Neimfa. Assim, as relações comunitárias citadas pelas quatro mulheres informam colaborações e apoios momentâneos, embora disponíveis e relevantes em algum momento das suas vidas.

Aurora destaca sua ligação afetiva com os membros do Neimfa, enquanto Estela tem como foco sua persistência em sonhos e a luta por direitos, identificando-se e defendendo a comunidade, com influência da educação e suporte que recebeu do Neimfa. Íris reconhece preconceitos e questões sociais que se relacionam com sua origem na comunidade, e se insere em grupo de pares e cursos semelhantes ao que sua mãe anteriormente participara, também através do Neimfa, numa forma de buscar a igualdade.

Aurora, Estela e Íris, assim, reconhecendo também os problemas, se inserem de forma mais ativa na construção de um desenvolvimento em associação com a comunidade, à serviço desta ou em identificação com a mesma. Pérola é a única que não cita algum apoio comunitário, para além do suporte emocional de um amigo, para enfrentar as consequências das violências vividas no Coque.

Concordamos com Yunes e Szymanski (2005), quando estes descrevem que a família é contexto para desenvolvimento de seus membros, assim como, em comunidade, este grupo também pode agir para facilitar ou encorajar as pessoas à sua volta ao mesmo desenvolvimento, como é o caso de Aurora, Íris e Estela. A família Céu tanto aborda um fortalecimento mútuo entre suas membras, quanto uma relação parecida com a comunidade, na qual, como diz Aurora,

acolhem e são acolhidas. Dessa forma, elas constroem resiliência tanto em família, quanto em comunidade, reforçando o que descreve Cyrulnik (2004, 2015, 2016), sobre o caráter relacional da resiliência.

Cyrulnik (2016) descreve também casos em que toda uma família se encontra traumatizada, ou casos nos quais seus membros não conseguem prover entre si o suporte para a resiliência. Esse pode ser o caso da família Água, que nos traz, desde a avó, dona Oceana, histórias de medo, passando pela mãe, Meri, histórias de ausências, até Pérola, histórias de violência. Todas estas não mencionam amparo significativo da família, diante de tais sofrimentos. Por outro lado, Oceana e Meri descrevem algum nível de ajuda ou identificação comunitária, que pode as alicerçar para o processo resiliente.

Autores como Cabral (2015) e Ojeda (2005) apontam que a comunidade pode ser protetiva na lida com as adversidades, ao que Ungar (no prelo) acrescenta que, para que o contexto possa conferir base para o processo resiliente, não basta que os recursos existam, mas é necessário que eles sejam acessados de maneira relevante. Assim, a experiência de participação do Neimfa, conforme narrado por Aurora, Flora, Estela e Íris, é um recurso acessível que existe justamente na e para a relevância de quem o materializa, na ação destas mulheres e de outras pessoas da localidade e de fora dela.

Das narrativas de Aurora, Flora, Estela e Íris, depreendemos ainda que um dos atratores dessa mesma associação reside em fornecer uma identidade comum e uma coesão comunitária, como suporte de resiliência. Essa identidade e coesão, ainda que não relacionada diretamente ao Neimfa, também surge nas falas de Oceana e Meri. O desenvolvimento de identidade e coesão com outros é apontado por Libório e Ungar (2010) como um dos pontos para desenvolver resiliência.

A partir dos nossos resultados, reforçamos compreensões de que a resiliência se dá em interação entre pessoa e contexto, e que se faz fundamental o acolhimento e apoio de outras pessoas nesse processo. Conforme apontado por Cyrulnik (2004), não é o indivíduo isolado que vai criar as condições para o desenvolvimento de forma saudável e resiliente. Esse processo se dá justo na interação.

Nesta perspectiva relacional, Cyrulnik (2009, 2016) aponta a importância dos tutores de resiliência, como os indivíduos ou grupos que entendem, apoiam a pessoa em processo resiliente ou têm alguma conduta mais ativa na proteção e enfrentamento de adversidades. Tais tutores proveem um auxílio afetivo que baseia uma nova forma de vinculação e socialização, a qual reorienta o universo psíquico a um desenvolvimento, sustentando o processo resiliente.

Assim, corroboramos com a literatura sobre a resiliência quando esta afirma que as relações comunitárias e familiares são sustentação para o desenvolvimento de resiliência. No caso das nossas mulheres, os vários ninhos construídos nessas relações permitiram, em diferentes momentos de suas trajetórias, algum nível de enfrentamento das dificuldades e crescimento.

É importante enfatizar que concordamos com Cyrulnik (2016), quando este argumenta que não é um modelo de estrutura familiar que irá definir a sua capacidade de amparar seus(suas) membros(as) para resiliência, mas sim seu funcionamento voltado para relações afetivas amparadoras. De forma semelhante, Ungar (no prelo) explica que os recursos sociais e comunitários que podem embasar a resiliência não obedecem a um padrão, devendo ser específicas e relevantes aos indivíduos e grupos.

Ainda, outro ponto a se salientar é que as narrativas das nossas colaboradoras corroboram com Kruppa (2017), demonstrando que se os espaços periféricos não podem ser reduzidos ao risco e à vulnerabilidade, também não devem ser romantizados. Nos alinhamos ao

autor, quando este destaca que a imposição à pobreza e à exclusão social não é, de maneira alguma, algo a se poetizar. Mesmo que com atenção aos enfrentamentos possíveis, não podemos perder de vista que os espaços periféricos vivem uma somatória de exclusões e violências (Vieira da Cunha & Feltran, 2013; Feltran, 2010; Pryston, 2003).

Logo, a percepção dos ninhos já mencionados não é uma negação das adversidades. Ao contrário, compreendemos que tais ninhos não são blindagem aos traumatismos, mas, tal como ocorre em todo processo resiliente, são a construção de um desenvolvimento, em relação, a partir do que se vive. A proposta de uma perspectiva de ninhos periféricos de resiliência é, assim, uma busca de compreensão da periferia a partir dos vínculos significativos que constituem alicerces para as transformações e a resiliência.