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Que resiliência é esta? Uma perspectiva se delineia

Entendendo, como acima exposto, que a resiliência é uma palavra de múltiplos significados, é possível – e necessário – partir para compreensões mais específicas sobre este construto, as quais comportam escolhas de perspectivas teóricas, políticas e metodológicas nas suas intenções de estudo e utilização na Psicologia ou áreas afins.

Isto posto, em coerência com a perspectiva teórica de trabalho – a Psicologia Transpessoal –, busca-se nesta seção abordar compreensões sobre a resiliência que dialoguem com as concepções básicas de mundo e humano desta teoria, quais sejam: a abertura humana,

expressa em sua inesgotável capacidade de ir além em seu desenvolvimento, em direção a uma consciência que transcende sua individualidade; e a multidimensionalidade da experiência humana, compreendendo dimensões subjetiva, física, comportamental, social, cultural e espiritual (Ferreira, 2007; Ferreira et al., 2016c; Ferreira, Silva, & Silva, 2015; Lima, 2014; Wilber, 2007, 2010).

Apesar de alguns trabalhos terem buscado diálogos entre a Abordagem Transpessoal e a resiliência (Machinga & Friedman, 2013; Mayer & Barnard, 2015; Osran, Smee, Sreenivasan, & Weinberger, 2010; Simão & Saldanha, 2012; Stalnaker, 2013), a maioria deles não é clara quanto ao que torna este diálogo possível, ou aponta para um aspecto da Psicologia Transpessoal como a ponte deste diálogo. Entre os trabalhos encontrados, apenas um listou várias possibilidades para a resiliência – mental, espiritual, emocional, pessoal, comportamental e social – relacionando-as ao quadro teórico da Psicologia Transpessoal (Stalnaker, 2013).

Embora não pareça estabelecida uma visão sobre a resiliência a partir da Psicologia Transpessoal, a dedicação desta abordagem, desde seu nascimento, a estudos sobre a saúde e o desenvolvimento humanos vão ao encontro do que também os estudos sobre resiliência têm buscado. Pesquisadores de orientação transpessoal que trabalham com o tema resiliência têm, então, articulado as bases da abordagem com concepções já bem exploradas academicamente sobre o construto. A título de exemplo, podem-se citar Bezerra (2015) e Ferreira e colaboradores (2013), os quais têm alicerçado seus estudos em resiliência especialmente nas apreensões de Cyrulnik (2004, 2015, 2016) e Ungar (2008, 2011, 2018, no prelo), buscando com estes e, em menor escala, outros autores abarcar aspectos de sua visão de mundo e humano ao tratar do processo resiliente.

A resiliência, conforme Cyrulnik (2004), é um processo de construção de uma nova perspectiva de desenvolvimento, como uma nova continuidade depois da ruptura ocasionada

por um trauma. O conceito de trauma (ou situação traumática), faz referência ao impacto externo que perturba, corrompe, fere o universo psíquico, enquanto um estímulo impossível de ser processado mentalmente (Cabral & Cyrulnik, 2015; Cyrulnik, 2004). A obra de Cyrulnik (2004, 2015) também aborda o conceito de traumatismo, compreendido como a representação interna do trauma, o que inclui suas consequências psíquicas, na forma de paralisia e impossibilidade de tomar consciência dos próprios conflitos psíquicos. Deste modo, a resiliência seria a condição de sujeitos ou coletivos que retomam um processo de desenvolvimento e superam os efeitos traumáticos das adversidades às quais são submetidos, podendo sair fortalecidos destas experiências (Cyrulnik, 2015).

O entendimento de Cyrulnik sobre o processo resiliente, enquanto um “continuar a nascer” (Cyrulnik, 2015, p. 33), desenvolvendo novas formas de ser a partir da lida com o trauma, embora não originalmente pautado em uma visão Transpessoal, pode ser por esta perspectiva utilizado, pois nesta o humano é interpretado como um vir a ser com potencial para abertura e ampliação face a todas as experiências que se inscrevem na sua trajetória, em constante desenvolvimento rumo à níveis mais amplos (ou mais transpessoais) de consciência (Wilber, 2007, 2010). Tais níveis mais amplos não correspondem ao afastamento das adversidades ou alienação aos traumas, mas sinalizam uma consciência que aborda as problemáticas com maior clareza e congruência consigo e com o entorno, posto que “todos os seres humanos possuem impulsos para transformar conscientemente a sua vida” (Bertolucci, 1991, p. 44).

Embora abordando a resiliência a partir de uma base psicanalítica, Cyrulnik (2004, 2015, 2016) não encerra seu trabalho nesta disciplina. Cyrulnik (2004) salienta que a resiliência não é um traço ou atributo individual, mas sim uma capacidade que pode ser desenvolvida na interação entre pessoa e contexto, incluídas as dimensões biológica, subjetiva, social e cultural.

Destarte, aspectos físicos, incluídos aqueles que muitas vezes não podem ser modificados em seu cerne, como algumas expressões genéticas, devem ser levados em conta ao se falar em resiliência, embora se saiba que outras dimensões podem ser ativadas, conforme as possibilidades, em cada caso, para favorecer o processo resiliente (Cyrulnik, 2016; Cyrulnik & Cabral, 2015). Os mesmos autores também abordam o molde dos aspectos neuroemocionais ocorrido na gestação e primeiros anos de vida, como fator que pode influenciar expressões de intersubjetividade ao decorrer da sua vida, facilitando ou não a resiliência – fenômeno que, conforme Cyrulnik (2004), ocorre na interação. Os autores destacam que tais aspectos não são incontornáveis, mas demandam, quanto mais cedo melhor, intervenções e cuidados que favoreçam o desenvolvimento saudável dessa intersubjetividade.

Ao tratar da dimensão social, o autor tem advogado, entre outras coisas, pela importância da construção do vínculo desde tenra idade, para posterior construção de resiliência.

Os primeiros anos de existência, até a aparição da palavra, são dedicados à construção de um verdadeiro órgão da coexistência: o vínculo. Por sua vez, um processo resiliente, uma retomada do desenvolvimento após uma sideração traumática, só pode se reconstruir em uma relação, na tessitura de um vínculo, de uma relação de apego. (Cyrulnik & Cabral, 2015, p. 26).

Desta forma, defendem os autores, a vinculação segura é aquela que permite à criança se comunicar e se desenvolver como um todo, além de crescer em confiança, a qual será sustentação à posterior construção da resiliência. Por outro lado, um vínculo ambivalente ou confuso faz com que as relações sejam difíceis e, por conseguinte, também o sejam suas aprendizagens. Porém, em outros momentos críticos ao desenvolvimento, o estilo de vínculo pode se modificar.

A puberdade, o estado de paixão, as crises identitárias ou os momentos de desterritorialização de espaços existenciais (Guattari & Rolnik, 1999), além dos movimentos transferenciais com professores, médicos, parceiros amorosos ou

terapeutas. Estão aí as chances de reconstrução desse estilo, a partir da internalização de novas experiências, que poderão produzir uma mudança de posição subjetiva, o que, por sua vez, corresponderia a novas possibilidades de construir novas bases de segurança. (Cyrulnik & Cabral, 2015, p. 27).

Indica-se, portanto, a importância de pessoas (ou grupos) que facilitam esse processo, por meio de entendimento, apoio ou conduta mais ativa na proteção e enfrentamento de traumas (Cyrulnik, 2016). Outros autores, a partir de Cyrulnik, encaram a resiliência como um processo transubjetivo, ou seja, transcendendo a noção de uma produção individual ou independente (Cabral, 2012), adotando a ideia de que “não se pode ser resiliente sozinho” (Ferreira, Silveira & Peixoto, 2013, p. 151).

Ungar (2008, 2011, 2018, no prelo), por sua vez, tem se dedicado a compreensões da resiliência enquanto um construto culturalmente e contextualmente integrado, uma vez que em cada espaço e cultura variam as necessidades e as expressões de resiliência. Ungar (no prelo, p. 15), acrescenta que disponibilidade, acessibilidade e relevância de recursos, em determinado contexto, irão influenciar a forma como indivíduos e populações que interagem neste contexto poderão chegar à resiliência.

A partir do modelo bio-social-ecológico de desenvolvimento humano de Bronfenbrenner, Ungar (2018) propõe que a resiliência seria uma capacidade de lidar com contextos adversos, por meio de interações bem sucedidas entre sistemas vários – pessoa, família, comunidade, grupo escolar, religioso, sociedade, sistema político, entre outros sistemas humanos e não humanos. No mesmo sentido, Ungar, Ghazinour e Richte (2013) e Libório e Ungar (2010) entendem a resiliência enquanto uma qualidade tanto dos indivíduos quanto de seus contextos, em interação. Para os mesmos autores, somente uma visão complexa e multissistêmica do desenvolvimento e da resiliência pode dar conta de entender este fenômeno.

Ainda que Cyrulnik (1980, 2004, 2015, 2016) e Ungar (2008, 2011, 2018, no prelo) amparem o estudo da resiliência em várias dimensões humanas, estes autores não abordam, de forma substancial, a espiritualidade neste processo. Ungar (2008) descreve que é difícil afirmar a importância da espiritualidade na construção de resiliência, posto que seus achados apontam para diferenças quanto ao que o espiritual representa em diferentes contextos. Vários estudos, no entanto, já apontam para a relevância da consideração da dimensão espiritual na construção da resiliência (Canaval, González, & Sánchez, 2007; Chequini, 2007; Jaramillo-Vélez, Ospina- Muñoz, Cabarcas-Iglesias, & Humphreys, 2005; Leal, Röhr, & Policarpo Júnior, 2010; Nogueira & Dittrich, 2014; L. A. C. da Silva, 2016; Vanistendael, 2007).

L. A. C. da Silva (2016), constatou que a espiritualidade pode ser compreendida como a própria resiliência, enquanto capacidade de passar pelas adversidades de forma positiva. Fantova (2008), no mesmo sentido, aponta que a resiliência pode ser uma forma de nomear “o poder do espiritual” no comportamento saudável humano. Mais do que um fator de resiliência, esses autores afirmam que a espiritualidade e a resiliência podem concordar quanto ao que representam para o humano.

Fantova (2008) aponta que a consideração da dimensão espiritual é essencial ao se tratar do processo resiliente, pois esta tem o potencial de alicerçar sentidos e condutas positivos para a vida, oferecendo, portanto, condições para a construção de resiliência. Cavalheiro (2010) concorda, afirmando que a espiritualidade abre possibilidades de sentido à vida e acrescenta que, em lugar de fugir das dificuldades da existência, a espiritualidade convida a um compromisso com a vida, alicerçando a construção de resiliência.

Em sentido semelhante, pode-se dizer que:

A resiliência sempre nos leva à vida, sempre nos eleva mais na vida, e sempre nos resiste na vida, com seus problemas, seu potencial e suas esperanças, suas dificuldades e sucessos. Ela ilustra o ciclo de rupturas e continuidade que toda a vida deveria ser. (Manciaux, 2005, p. 312, conforme citado por Fantova, 2008, p. 71, tradução livre)

Compreende-se, portanto, no presente trabalho, a resiliência como a capacidade de construção de uma continuidade no desenvolvimento humano, depois da ruptura ocasionada pelo trauma, na trajetória de indivíduos ou coletivos, enquanto um processo que compreende múltiplas dimensões da experiência humana, em interação (Cyrulnik, 2004, 2015, 2016; Cyrulnik & Jorland, 2012; Ungar, 2008, 2011, 2018, no prelo). Considerar a resiliência a partir da Psicologia Transpessoal, dentro deste trabalho, permite, então, atentar à manifestação da resiliência de forma a buscar honrar a experiência humana tal como ela se coloca no mundo da vida (Ferreira et al., 2016b, 2013; Saldanha & Simão, no prelo; L. A. C. da Silva, 2016; Simão & Saldanha, 2012; Wilber, 2007, 2010).