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2. O MINISTÉRIO PÚBLICO E O CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE

2.4 O MINISTÉRIO PÚBLICO

2.5.1 Ministério Público como parte

2.5.1.5 Interesse de incapaz

O art. 178, II, determina a intervenção do Ministério Público nos processos que envolvam “interesse de incapaz”. Nada de novo, aqui estamos diante da repetição do art. 82, I, do Código de Processo Civil de 1973. Essa obrigatoriedade de atuação é reiterada nos artigos 616, VII, 626, 665 e 698.

Uma mudança mais clara em relação ao Código anterior pode ser entendida como a retirada de algumas hipóteses de intervenção, notadamente aquelas do art. 82, II, como em processos atinentes a casamento, declaração de ausência e disposições de última vontade. A intervenção do Ministério Público nas ações de família, quais sejam, “divórcio, separação, reconhecimento e extinção de união estável, guarda, visitação e filiação” (art. 693), somente ocorrerá “quando houver interesse de incapaz” (art. 698).

Outras hipóteses do art. 82, II, do Código de Processo Civil de 1973 continuam previstas, como a legitimidade para ajuizamento de interdição (art. 747 e 748), no levantamento da curatela (art. 756, §1º) e na remoção do tutor ou curador (art. 761, parágrafo único).

Importa destacar nesse ponto a discussão acerca da vinculação do Ministério Público ao direito da parte incapaz e que ensejou a sua intervenção em determinado processo.

Zaneti Jr. defende a existência de três posições na doutrina: (i) “intervenção com poderes amplíssimos e obrigatoriedade de manifestação no mérito, inclusive recorrendo, mesmo contra os interesses dos incapazes”, que tem como um de seus principais autores Nelson Nery Jr.; (ii) “intervenção ad coadjuvandum, ou seja, apenas para beneficiar os interesses do incapaz, deixando de se manifestar no mérito, quando, no entendimento do parquet, o incapaz não possuir razão”, que é o entendimento de Cândido Rangel Dinamarco; e (iii) “liberdade de opinião durante o processo de conhecimento, com manifestação obrigatória quanto ao mérito, vedada a recorribilidade quando a decisão de mérito for favorável ao

incapaz, por falta de interesse processual, mesmo após parecer contrário do MP”, que é a tese defendida por Mazzilli.183

Para os defensores da intervenção ampla e sem vinculação aos direitos do incapaz, tal qual Fernando Antônio Negreiros Lima, o Ministério Público é sempre defensor da ordem jurídica, “jamais adstrito à defesa de interesses privados de per si, aos quais apenas indiretamente se atém, na medida em que subsumidos em algum interesse público”.184

Lima critica veementemente a posição de Antônio Cláudio da Costa Machado185

de que a atuação do Ministério Público nas causas de interesse de incapaz tem como objetivo reequilibrar o contraditório, não podendo se manifestar contra o incapaz quando este não tenha razão. Lima chama esse tipo de entendimento de “apologia da prevaricação”, pois “se não externar ao juiz sua convicção em tal sentido, estará deixando de praticar ato de ofício, para atender a interesse diverso do público”.186

Sobre a intervenção em processos com a presença de incapaz, Fernando Lima adota a posição que o interesse público nessa hipótese está substanciado na garantia do efetivo contraditório, na paridade das condições processuais das partes. O Ministério Público não se vincula ao direito material deduzido pelo incapaz.187 Diz ainda:

Como conciliar uma postura que leva um órgão estatal a silenciar ante a possibilidade de lesão à ordem jurídica (o que ocorreria se o incapaz, com a conivência do Ministério Público, obtivesse indevidamente o bem de vida pretendido), com a atribuição, que lhe defere a Lei Maior, de velar por essa ordem jurídica? Como inserir, em meio às funções institucionais do órgão, a omissão ante a lesão à lei?

183 ZANETI JR., Hermes. Art. 178. In: STRECK, Lenio Luiz; NUNES, Dierle. CUNHA, Leonardo

(Orgs.). Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 275.

184 LIMA, Fernando Antônio Negreiros. A intervenção do Ministério Público no Processo Civil

brasileiro como custos legis. São Paulo: Método, 2007. p. 122.

185 MACHADO, Antônio Cláudio da Costa. A intervenção do Ministério Público no processo

civil brasileiro. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 218.

186 LIMA, Fernando Antônio Negreiros. op. cit., p. 122. 187 Ibidem, p. 131.

A 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Recurso Especial n. 135.744/SP, relator Ministro Barros Monteiro, DJ em 22/09/2003, seguiu essa posição. No caso, uma mulher e seus filhos incapazes ajuizaram ação de resolução de contrato, reintegração de posse de imóvel e perdas e danos contra outras duas pessoas.

O Ministério Público manifestou-se pela improcedência dos pedidos, aduzindo que não havia nulidade ou vício de ato jurídico a autorizar a rescisão contratual pedida pelos autores.

Os autores recorreram e um de seus argumentos foi a nulidade das manifestações do Ministério Público apresentadas nos autos, vez que agiram contrariamente aos interesses dos menores.

No Superior Tribunal de Justiça, o Ministro Barros Monteiro entendeu que o membro do Ministério Público não é obrigado a se manifestar sempre em favor do incapaz. “Se acaso estiver convencido de que a postulação do menor não apresenta nenhum fomento de juridicidade, como é o caso em tela, é-lhe possível opinar pela sua improcedência”.188

Em pesquisa no site do Superior Tribunal de Justiça com os termos “Ministério Público” e “incapaz” não foi possível encontrar outros casos em que aquele Tribunal tenha enfrentado essa discussão. Considerando que a decisão foi apenas de uma Turma, esse julgado não pode ser entendido como exemplo da posição do STJ. Não foi reiterado em outros casos, possuindo fraco valor persuasivo – não podendo ser tido uma jurisprudência – não houve reiteração do entendimento em outros casos daquele Tribunal; muito menos é um precedente, pois é a decisão de uma Turma daquele Tribunal.189

188 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 135.744/SP, Rel. Ministro BARROS MONTEIRO,

QUARTA TURMA, julgado em 24/06/2003, DJ 22/09/2003, p. 327.

189 Sobre a diferença entre precedente e jurisprudência: ZANETI JR., Hermes. O valor

vinculante dos precedentes: teoria dos precedentes normativos formalmente vinculantes. 2 ed. Salvador: Juspodivm, 2016. p. 307.

Para Candido Dinamarco, que se notabiliza como o defensor da segunda posição, ou seja, da intervenção ad coadjuvandum, o Ministério Público atua em favor do incapaz, como um assistente. O interesse público que legitima a sua atuação dessa maneira “é a exigência de um contraditório equilibrado e efetivo, o qual está ameaçado sempre que uma das partes seja presumivelmente mais fraca que a outra.190

A terceira posição é a encampada por Mazzilli. Para ele não cabe ao Ministério Público defender o incapaz a todo custo ou auxiliá-lo a ter ganhos financeiros desmedidos ou atuar de má-fé com a parte contrária. O Ministério Público não intervém para “dar inútil assessoria jurídica ao juiz, nem para auxiliar o incapaz a ficar rico, nem para ajudar o incapaz a ludibriar ou a qualquer custo levar a melhor sobre a parte contrária”.191 Cabe ao Ministério Público atuar em prol da

indisponibilidade dos direitos do incapaz. E, afinal, “se o incapaz perder uma ação na qual não tem direito, qual a lesão que a indisponibilidade sofre? Nenhuma. Nesse caso, não haverá por que recorrer”.192

Lado outro, se o Ministério Público não é obrigado a defender o incapaz a qualquer custo, também não deve atuar em seu desfavor, caso contrário estará atuando em prol dos direitos disponíveis de pessoa maior e capaz, o que de maneira alguma atende às finalidades constitucionais da instituição. Assim, entende Mazzilli que, não obstante o Ministério Público poder se manifestar com liberdade em processos envolvendo direitos de incapaz “não poderá arguir exceções ou apelar em defesa de pretensão que contrarie o interesse deles”.193

Hermes Zaneti Jr. propõe uma solução conciliadora entre essas três posições. Defende que a atuação do Ministério Público deve ser ad coadjuvandum, não podendo se manifestar no mérito contra o incapaz. Caso contrário, estará

190 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. Volume I. 5 ed.

São Paulo: Malheiros, 2005. p. 713.

191 MAZZILLI, Hugo Nigro. Regime Jurídico do Ministério Público: análise do Ministério Público

na Constituição, na Lei Orgânica Nacional do Ministério Público, na Lei Orgânica do Ministério Público da União e na Lei Orgânica do Ministério Público paulista. 7 ed. São Paulo: Saraiva. 2013. p. 337-338.

192 Ibidem, p. 338-339. 193 Ibidem, p. 333.

defendendo direito disponível de uma parte, sem relevância social. Mas faz uma ressalva: quando o direito contrário ao do incapaz possuir relevância social ou individual indisponível, e estiver inserido dentre as hipóteses do artigo 178 do Código de Processo Civil de 2015 e artigo 129 e incisos da Constituição de 1988, o membro do Ministério Público deverá se manifestar no mérito mesmo contra o incapaz e poderá também recorrer, quando a decisão não tutelar adequadamente os direitos fundamentais. Isso porque estaremos diante de uma “causa de intervenção autônoma, independente do interesse do incapaz.194

Em síntese, o Ministério Público, em regra, deve atuar em favor do incapaz, em uma atuação ad coadjuvandum, mas “pode atuar contrariamente a pretensão deste, inclusive recorrendo, quando visualizar interesse social ou direito individual indisponível na pretensão da parte contrária.195

Aliada a essa hipótese de pretensão deduzida flagrantemente contra direitos fundamentais, com a qual se concorda, adota-se nesse trabalho o entendimento de que o Ministério Público pode se manifestar de forma contrária ao direito do incapaz quando incidir em alguma das hipóteses de litigância de má-fé.196

A rigor, nesses casos, atuar de maneira contrária à pretensão deduzida em juízo pelo incapaz é buscar a própria tutela do incapaz. Isso porque impedir que uma tal demanda prossiga é uma forma de zelar pelo patrimônio do incapaz, vez que o reconhecimento da litigância de má-fé importará, além da improcedência do pedido, na condenação em multa entre um por cento a dez por cento do valor corrigido da causa, indenização à parte contrária pelos prejuízos sofridos, honorários advocatícios e despesas processuais, ou multa de até 10 (dez) salários mínimos, quando a causa tiver valor irrisório ou inestimável (artigo 81,

caput, e §2º, CPC/15).

194 ZANETI JR., Hermes. Art. 178. In: STRECK, Lenio Luiz; NUNES, Dierle. CUNHA, Leonardo

(Orgs.). Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 275.

195 ZANETI JR., loc. cit.

196 Artigo 80. Considera-se litigante de má-fé aquele que: I - deduzir pretensão ou defesa contra

texto expresso de lei ou fato incontroverso; II - alterar a verdade dos fatos; III - usar do processo para conseguir objetivo ilegal; IV - opuser resistência injustificada ao andamento do processo; V - proceder de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo; VI - provocar incidente manifestamente infundado; VII - interpuser recurso com intuito manifestamente protelatório.

Além do que o Ministério Público pode zelar pela proteção do núcleo dos direitos fundamentais, colocado em risco pela litigância de má-fé.