• Nenhum resultado encontrado

Interseção entre os campos de estudo de empreendedorismo e religião

A atividade empreendedora é influenciada por fatores culturais e institucionais, dentre eles a religião (HENLEY, 2016), que afeta características individuais, como a ética do

trabalho, a honestidade, a economia, a caridade e a confiança, e com a valorização desses atributos, a religiosidade estimularia o investimento e o crescimento econômico (MCCLEARY; BARRO, 2006).

Henley (2016) enfatiza a existência de associação entre atividade empreendedora e afiliação religiosa mediada pela secularização e pluralismo religioso, que surgiram com o advento da modernidade, considerada como aglomerado de eventos e transformações iniciadas no final do século XV, que resultou em alterações no modo de pensar e compreender o mundo, marcado pelo racionalismo, empirismo e surgimento da ciência (BERTERO, 2007). A secularização foi um processo de grande relevância para a história ocidental, uma vez que envolveu o abandono do homem moderno do domínio das instituições e dos símbolos religiosos, manifestada pela separação entre Estado e Igreja, pelo declínio do conteúdo religioso em diversas áreas do conhecimento, como filosofia, artes, literatura; e pela consciência do indivíduo em perceber o mundo e sua vida sem intermédio da religião (BERGER, 1985). Isto posto, com o abandono da concepção de que a religião é um guia que orienta a vida do indivíduo, a sociedade moderna passou a centrar-se no ser humano e não mais em Deus e nos valores sagrados (BERTERO, 2007).

A previsão de que processo de secularização implicaria em sociedades sem religião não se concretizou no Ocidente, uma vez que alguns fundamentalismos religiosos (cristianismo, judaísmo e islamismo) se consolidaram, provavelmente, pela incapacidade da filosofia e da ciência em responder aos questionamentos angustiantes do ser humano (BERTERO, 2007). Henley (2016) reforça que a secularização propôs a redução na participação em grupos religiosos, mas não implicou no declínio da relevância da religião para a sociedade, embora a secularização tenha apresentado impacto mais forte entre homens, indivíduos de meia idade, residentes nas cidades e pertencentes à classe trabalhadora (BERGER, 1985).

Outro tema que contribui para a discussão sobre o enfraquecimento do papel explicativo da religião para as atividades econômicas é o pluralismo religioso, que consiste no reconhecimento legal da diversidade dos cultos e da liberdade religiosa (MONTERO, 2009). Para Henley (2016), o pluralismo compreende três vertentes: pluralismo descritivo, envolvendo a diversidade de participantes e a prática religiosa, pluralismo objetivo, incluindo a propensão a uma maior aceitação pública da diversidade religiosa, e pluralismo normativo, por meio da avaliação progressiva do pluralismo como valor social.

No contexto brasileiro, o pluralismo religioso foi concebido apenas sob a perspectiva sociológica, uma vez que se caracterizaram o processo histórico de ordenação e a

codificação de práticas religiosas, excluindo-se a perspectiva política, que envolve esforços pelo reconhecimento de uma convicção religiosa (MONTERO, 2009). Corrêa e Vale (2017) relatam que existe um protecionismo ao pluralismo religioso, devido à transformação da composição religiosa que acarretou o enfraquecimento do catolicismo a partir da década de 1990, uma vez que as novas denominações religiosas conquistaram solidez institucional, reforçando o fenômeno no Brasil.

Na concepção de Miller (2015), ao demarcar limites da religião junto ao debate público e da vida social, a secularização marginalizou a perspectiva teológica no campo acadêmico dos estudos organizacionais ao considerar a religião como irrelevante para compreender a atividade humana e a própria administração. Por sua vez, Henley (2016) contrapõe argumentando que esta visão é simplista, uma vez que diversas religiões e expressões de religiosidade continuam influenciando a cultura e o comportamento humano na esfera econômica, e tal pluralidade religiosa auxilia na disseminação de crenças, valores, normas e identidades sociais que interferem na relação entre religião e atividade empreendedora.

Os estudos seminais sobre o papel da religião na formação das atividades econômicas são atribuídos a Max Weber (1904), na obra “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”, embora Adam Smith (1706), em “A Riqueza das Nações”, tenha publicado alguns insights sobre a religião, mais precisamente sobre as igrejas e os grupos religiosos (STARK, 2006).

A ética religiosa e a conduta moral dos protestantes ascéticos contribuíram para a instituição do capitalismo como modo de produção contemporâneo (WEBER, 2013), uma vez que houve um deslocamento do foco econômico e do propósito do esforço humano, o processo de organização racional da produção eliminou recursos ineficientes, e a simples produção foi substituída pelo dever de trabalhar e pela acumulação de capital (THIRY- CHERQUES, 2009).

Os protestantes ascéticos acreditavam que o trabalho era um fim em si mesmo e o percebiam como uma prática religiosa, pois compreendiam que a vocação profissional, era um desígnio divino, posto que “ a vocação, entendida enquanto algo posto e imposto pela ordem divina, consistiria em algo não passível de discussão ou argumentação, mas, sim, como um elemento de pura e franca adaptação do indivíduo” (ENOQUE; BORGES; BORGES, 2015, p. 510).

No que concerne à vocação religiosa, Rietveld e Van Burg (2014) concebem-na como o chamado divino que evidencia as ligações consistentes entre a percepção de uma

vocação e os níveis elevados de maturidade profissional, o comprometimento de carreira, o significado e a satisfação no trabalho. Outrossim, Duffy e Dik (2013) sugerem que a vocação é um senso de propósito ou direção, que conduz o indivíduo ao envolvimento pessoal e social no trabalho, tendo como referência o divino ou um sentimento de paixão.

Duffy e Dik (2013) assinalaram que a ligação entre três elementos representava um chamado divino na esfera do trabalho. O primeiro elemento consiste na noção de uma convocação externa: se o indivíduo se sente chamado a desenvolver um tipo de trabalho, esse chamado pode vir na forma de um poder superior, de necessidades da sociedade, de herança familiar ou de forças externas. O segundo é que a abordagem do trabalho de um indivíduo representa seu propósito de vida. Já o terceiro elemento é manifestado pela opção de carreira de um indivíduo orientada por motivações pró-sociais; no qual o indivíduo utiliza sua carreira para ajudar outrem ou promover um bem maior.

Rietveld e Van Burg (2014) reforçam que pesquisas que alinham as crenças religiosas e o empreendedorismo não investigam o papel da vocação, uma vez que o chamado divino pode ser uma motivação para fazer escolhas de carreiras distintas. Diante disso, o empreendedor tem a capacidade de tomar suas próprias decisões, seguir a sua vocação e servir os desígnios considerados divinos. Em contraposição, Thiry-Cherques (2009) esclarece que a organização racional do trabalho e a tecnologia estimularam o desencantamento e com isso o trabalho não é mais visto como vocação ou chamado divino, culminando, assim, com o afastando do sentido religioso da atividade laboral.

Diante da ética do trabalho protestante, relatada por Max Weber, os valores religiosos motivaram o comportamento econômico de indivíduos praticantes da religião protestante e seus descendentes (ZELEKHA, AVNIMELECH; SHARABI, 2014), uma vez que tais sujeitos trabalharam com maior afinco e eficácia que os praticantes de outras religiões, e esta ética favoreceu as transações mercadológicas, facilitando as atividades econômicas (ARRUÑADA, 2010).

A abordagem econômica da religião, segundo Stark (2006), analisa a religião a nível individual, ao enfatizar a relação de troca entre o ser humano e o sobrenatural, enquanto a nível coletivo, fundamenta-se nos conceitos fundamentais da oferta e da demanda, ao assumir que o comportamento religioso é tão razoável como qualquer outro tipo de comportamento.

A literatura apresenta que crenças, valores e comportamento, inclusive, o comportamento econômico, são delineados pela religião (FARMAKI et al., 2020, JOHNMARK et al., 2016; LEHRER, 2004; RIETVELD; VAN BURG, 2014). Dana (2009)

acrescenta que, embora a religião molde o empreendedorismo, indivíduos com distintas crenças culturais e valores religiosos o percebem com diferentes graus de legitimidade. Destarte, alguns indivíduos não seguem práticas de negócios, pois são dissuadidos por suas crenças religiosas, que são internalizadas como uma auto identidade religiosa e influenciam sua tomada de decisão (AUDRETSCH; BÖNTE; TAMVADA, 2013).

Assim, as religiões valorizam o empreendedorismo em diferentes graus, produzindo distintos padrões e até inibindo o espírito empreendedor, desencorajando a acumulação de riqueza ou impondo sanções para aqueles que buscam ser empreendedores (AUDRETSCH; BÖNTE; TAMVADA, 2013; DANA, 2009). Mittelstaedt (2016) acrescenta que a religião e as instituições religiosas podem determinar o comportamento de troca por meio de proibições de mercado ou encorajamento de seus seguidores a se engajarem em certo comportamento. Indivíduos de diferentes afiliações religiosas têm propensões diferentes para se tornarem empreendedores (DANA, 2009).

Griebel, Park e Neubert (2014) declaram que iniciar uma atividade econômica que reflita os valores religiosos é demonstrar a autenticidade da própria fé, uma vez que é possível exprimi-la em todas as partes da vida, inclusive no trabalho. Assim, o empreendedorismo permite que os empreendedores executem seu trabalho de forma a refletir seus valores religiosos, reinterpretando o significado do trabalho em termos religiosos.

Drakopoulou-Dodd e Seaman (1998) dedicaram-se ao estudo de três tipos de interação entre religião e empreendedorismo, buscando compreender tal relação. O primeiro tipo, que envolve sociedade, religião e empreendedorismo, considera que a religião forma sistemas de significados a nível social afetando o nível e a natureza do empreendedorismo em uma sociedade, a medida que se mostra favorável à atividade econômica, à criação e ao crescimento de novas empresas, contribuindo, positivamente, para o empreendedorismo (CARSWELL; ROLLAND, 2004, 2007; DRAKOPOULOU-DODD; SEAMAN, 1998).

O segundo tipo, que compreende fé individual, religião e empreendedorismo, concebe que a religião exerce um domínio sobre a fé do indivíduo e sua prática suscita efeitos sobre as convicções do empreendedor, utilizando redes pessoais e profissionais dentro de sua religião (DRAKOPOULOU-DODD; SEAMAN, 1998). Griebel, Park e Neubert (2014) apontam que estudos mais recentes postulam que o empreendedorismo é fomentado por valores pessoais internos, como a fé.

A terceira interação entre teoria, religião e empreendedorismo, busca identificar qual teoria, no campo do empreendedorismo, a religião procura se aproximar, posto que costuma ser analisada sob a ótica Weberiana (CARSWELL; ROLLAND, 2007;

DRAKOPOULOU-DODD; SEAMAN, 1998), devido a ligação entre a ética protestante e o crescimento econômico, que favoreceu o ciclo de poupança-investimento, posto que valorizava a economia e o trabalho árduo (DENEULIN; RAKODI, 2011).

Tracey (2012) destaca que foi conferida importância às crenças e às práticas religiosas na formação das organizações contemporâneas, nas últimas décadas, devido a fatos sociopolíticos como: advento do conservadorismo religioso, movimento evangélico nos EUA e de formas militantes do Islã e seu conflito com o Ocidente, expansão do pentecostalismo na África, América Latina e grandes extensões da Ásia, além dos efeitos da religião no comércio, como o desenvolvimento do fair trade, empresas e movimentos de negócios sociais.

Drakopoulou-Dodd e Gotsis (2007) argumentam que embora não se tenha indícios empíricos que comprovem o vínculo direto entre crenças religiosas, práticas do indivíduo e intenção empreendedora, é provável que mensagens e símbolos religiosos, componentes do contexto cultural, motivem o indivíduo a se tornar um empreendedor, a expandir metas de vidas que tragam recompensas sociais e/ou materiais.

Henley (2016) questiona o quanto a religião é relevante para o estudo das organizações e do empreendedorismo. Esse autor sugere a aplicação da Teoria do Comportamento Planejado, para identificar quais preditores da intenção empreendedora são influenciados pela religião, e ressalta que os resultados das investigações envolvendo as crenças religiosas e a atividade econômica são disformes entre os países, devido à complexidade da relação entre a religião e os indicadores de desenvolvimento socioeconômicos.

Diante do exposto, infere-se que a temática da religião está na interseção entre os campos de estudo de empreendedorismo e estudos organizacionais (BALOG, BAKER; WALKER, 2014, DANA, 2009, HENLEY, 2016), e sendo a orientação religiosa, objeto de estudo desta tese, é indicado que seja salientada a literatura pertinente a essa temática.