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CAPÍTULO I – DAS CONFERÊNCIAS DE DEFESA AFRICANA AO CONFLITO EM ANGOLA

1. INTRODUÇÃO

Este capítulo tem dois objetivos: descrever a resposta de Portugal à tentativa da África do Sul assumir a hegemonia política e militar no sul de África e descrever como Portugal reagiu à criação da Federação da África Central britânica.

O fim da 2ª Guerra Mundial fez emergir os movimentos nacionalistas nas colónias asiáticas e africanas como um dos elementos mais marcantes na política internacional. Por isso, de acordo com o historiador Filipe Ribeiro de Menezes, Salazar optou por uma estratégia que continha duas dimensões distintas: a demonstração da característica única do colonialismo português e a importância das colónias para a preservação do lugar da Europa no mundo125. Apesar de sair da 2ª Guerra Mundial com o seu “território” intacto, o futuro que se adivinhava para o regime estava repleto de ameaças multifacetadas, das quais A. Telo destaca o perigo do avanço russo na Europa, a possibilidade da hegemonia norte-americana, que não “reconhece os valores tradicionais do Ocidente, e o perigo das autonomias dos impérios126.

Por essa razão, Salazar achava essencial que a Europa retomasse o lugar central no Ocidente, um objetivo que passava pela manutenção da ligação a África como mecanismo para fazer face à União Soviética e aos EUA. Não obstante, havia que contar com a necessidade de uma aproximação aos EUA, que vinha assumindo a centralidade que a Grã-Bretanha tinha para o Ocidente antes da guerra, apesar de não garantir a manutenção do “Império Colonial”, que era a referência principal na política de Lisboa127. A desconfiança de Salazar perante a nova realidade do pós-guerra revelou-se na posição de Lisboa em relação ao Plano Marshall em setembro de 1947, quando o Governo Português declarou formalmente que não necessitava de qualquer apoio128.

125 Menezes, Filipe Ribeiro de (2010), Salazar: Uma Biografia Política, 2ª Edição, Lisboa: Publicações D. Quixote, pp. 383-384.

126 Telo (1996), Ob. Cit., pp. 25-26. 127 Ibidem, p. 27.

128 Rollo, Maria Fernanda (2007), Portugal e a Reconstrução Económica do Pós-Guerra: O Plano Marshall e a

Economia Portuguesa dos anos 1950, [Lisboa:] Instituto Diplomático, p. 22. Esta foi uma opção que durou

pouco tempo, uma vez que a crise económica de 1947 fez prevalecer as questões económicas sobre as questões ideológicas (Ibidem, pp. 26-27).

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Entre 1945 e 1949, o regime português foi marginalizado por não ser convidado para participar na Conferência de S. Francisco em abril de 1945, donde sairia a criação da ONU. A entrada de Portugal na organização foi vetada em 1946 pela União soviética e só viria a verificar-se em dezembro de 1955 através de um “package deal” entre os dois blocos para admissão de novos membros129. Segundo o historiador Nuno Severiano Teixeira, ao isolamento internacional juntou-se uma certa indefinição da política externa como “reflexo da incapacidade de adaptação à nova ordem mundial”, uma ordem bipolarizada pelos EUA e pela União Soviética e, além disso, com o declínio da Inglaterra como a potência marítima. Porém, as hesitações quanto ao Plano Marshall e a assinatura do acordo das Lajes em fevereiro de 1948 colocaram Portugal no sistema de segurança do Atlântico, o que define, segundo N. S. Teixeira, uma das mais importantes coordenadas da política externa, sendo a outra a “defesa intransigente dos territórios coloniais”130.

A entrada de Portugal na OTAN, em abril de 1949, acabava por ser o passo seguinte e mais lógico da política externa, apesar de A. Telo afirmar que Lisboa temia e, ao mesmo tempo, pretendia uma aproximação a Washington131. Para Portugal, a OTAN era uma realidade da qual era difícil estar ausente, apesar de não garantir a defesa do império132. Mas Salazar continuava a ver África como um prolongamento natural da Europa, reservando-lhe um importante papel complementar, tanto em termos económicos como em termos estratégicos133.

Apesar de Washington assumir a preponderância no Atlântico, o esforço do governo britânico em “escapar” à dependência económica norte-americana orientou a sua prioridade para as colónias africanas. Assim, Salazar podia contar com a parceria de Londres no renovado interesse por África, podendo contribuir com facilidades de transportes e comunicações para acesso ao hinterland centro- africano134. Porém, o esforço desenvolvido por franceses, belgas e ingleses para fortalecerem as suas economias através da intensificação da exploração dos seus recursos em África colocava uma séria ameaça à política colonial portuguesa. Salazar, que poderia ser acusado de negligenciar o

129 Silva, A. E. Duarte (1995), “O Litígio entre Portugal e a ONU (1961-1974)”, Análise Social, Vol. XXX, p. 5. 130 Teixeira, Nuno Severiano (2004), “Entre a África e a Europa: A Política Externa Portuguesa 1890-200”, em Pinto, António Costa (Coord.), Portugal Contemporâneo, Lisboa: Publicações Dom Quixote, pp. 106-107. 131 Telo (1996), Ob. Cit., p. 63.

132 Ibidem, p. 82.

133 Teixeira (2004), Ob. Cit., p. 111.

134 Oliveira, Pedro Aires (2007), Os Despojos da Aliança. A Grã-Bretanha e a Questão Colonial Portuguesa

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desenvolvimento das colónias, também poderia ter de permitir que companhias internacionais “ameaçassem a soberania colonial portuguesa”. Por essa razão, o historiador Pedro Oliveira considera que qualquer iniciativa de cooperação multilateral dinamizada por franceses e ingleses deveria pautar- se pela “extrema prudência” de Lisboa135.

Por seu lado, a África do Sul situava-se num quadro estratégico bastante diferente. Os sul- africanos, no âmbito dos acordos de Simonstown, cooperavam com a Inglaterra desde o início na década de 1930. Com a decisão da participação sul-africana ao lado da Inglaterra na 2ª Guerra Mundial, Daniel Malan ficou com a esperança de que o Tratado do Atlântico pudesse ser extensivo a toda a África. Mas como a Inglaterra se apresentava cada vez mais predisposta a descolonizar, a partir da Conferência de Dacar (1954), para além da aproximação a Londres, Pretória tentou uma aproximação à OTAN através dos EUA. De acordo com Christopher Cocker, em Washington, com o recrudescimento da Guerra Fria e o crescimento da força naval soviética no Índico e no Atlântico Sul, chegou a ser ponderada em círculos restritos a sua inclusão naquela organização. A África do Sul tinha uma posição geográfica que controlava a rota do Cabo e, entretanto, tinha participado no esforço norte-americano na Guerra da Coreia e na ponte aérea de Berlim136.

Segundo o historiador Andrew DeRoche, durante a Administração Truman as relações com a África do Sul tornaram-se mais amplas, mas também mais desafiantes devido à ascensão do Partido Nacional e à intensificação do apartheid. Este facto colocou a política norte-americana perante um enorme dilema: se por um lado a aproximação a Pretória alienava os negros e os africanos, por outro, Pretória, com um regime profundamente anticomunista, era muito útil naquele momento da Guerra Fria. Apesar das reservas quanto a uma associação com um regime racista, a Administração Truman elevou a sua legação em Pretória a embaixada, absteve-se várias vezes nas condenações na ONU, negociou um Pacto de Assistência Mútua (janeiro de 1951) e, em 1952, vendeu-lhe armamento no valor de cerca de 100 milhões de dólares. Por seu lado, durante os anos 1950 e 1960, a África do Sul vendeu urânio aos EUA no valor de 1 bilião de dólares137. Desde meados dos anos 1950 que havia no Ocidente o receio de que o acesso a minerais estratégicos e a utilização de importantes rotas marítimas fossem condicionados pela influência soviética em África. Também os países de Leste receavam que,

135 Ibidem, p. 71.

136 Cocker, Christopher (1985), NATO, The Warsaw Pact and Africa, New York: St. Martin's Press, p. 71-73. 137 De Roche, Andrew (2003), “Relations with Africa since 1900”, em Schulzinger, Robert D. (Ed.) (2003), A

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se Angola e Moçambique caíssem sob controlo “marxista-leninista”, o Ocidente pudesse intervir militarmente para continuar a usufruir daqueles recursos138.

De acordo com o historiador Thomas Noer, a Administração Eisenhower seguiu a política de H. Truman, tentando ficar “a meio caminho” entre a crítica nas Nações Unidas e o aprofundamento de relações com Pretória. Na questão colonial, a Administração Eisenhower seguiu a aproximação “a Europa primeiro”139. Porém, como nota Cary Fraser, a política de Eisenhower com a África do Sul sofreu uma inflexão depois dos acontecimentos de Little Rock em abril de 1957, quando alguns estudantes negros lograram a integração numa escola vedada a negros, depois de recorrerem à justiça federal. Em 1958, os EUA votaram a favor de uma resolução contra o apartheid na África do Sul. Little Rock é um excelente exemplo da relação entre política interna e política externa, porém, adianta C. Fraser, Eisenhower não estava firmemente determinado a introduzir as mudanças necessárias para ultrapassar a ambiguidade com Pretória140. Na realidade, depois da sua participação na 2ª Guerra Mundial e do apoio durante a Guerra da Coreia, a África do Sul tornou-se um importante elemento para o Ocidente no âmbito da Guerra Fria. Pretória pretendia ter uma participação ativa na defesa de África, auxiliando o Ocidente, nomeadamente os EUA e a Grã-Bretanha, na luta contra a expansão do comunismo em África e no Médio Oriente. Procurando o reconhecimento do Ocidente no seu papel para a defesa do continente, Pretória pretendia obter apoio de Londres e de Washington para modernizar as suas forças armadas. Além do mais, a aceitação pelas potências do Atlântico credibilizava internacionalmente o país apesar da instauração do apartheid em 1948. Este terá sido um dos principais objetivos para que Pretória tivesse proposto em 1950 a realização da Conferência de Nairobi.

Apesar da desconfiança em relação às pretensões de Pretória, o Governo Português não queria ficar de fora de qualquer acordo de cooperação que mantivesse a relevância de Portugal em África. Por essa razão, pretendia explorar o valor estratégico dos seus territórios no controlo das rotas marítimas que circundavam o continente e que ligavam o Índico ao Atlântico Sul. Sem nunca o ter

138 Cocker (1985), Ob. Cit., p. 187.

139 Noer, Thomas (1985), Cold War and Black Liberation: The United States and White Rule in Africa, 1948-

1968, Columbia: University of Missouri Press, p. 60.

140 Fraser, Cary (2000), “Crossing the Color Line in Little Rock: The Eisenhower Administration and the Dilemma of Race for US Foreign Policy”, Diplomatic History, (24), pp. 257-264.

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expressado, o Governo Português não perdia a esperança que essa valorização estratégica permitisse a sua inclusão na OTAN, um ponto que foi sendo recorrentemente tentado desde a fundação da Aliança até à queda do regime em 1974, como adiante se verá.

Até à formação da Federação da África Central britânica em 1953, a África do Sul era o principal parceiro de Portugal naquele continente. A partir de 1953, Portugal teve de contar com mais um país que “representava os valores do Ocidente”, que tinha fronteiras políticas com Angola e Moçambique e que não escondia que os portos portugueses no Índico e no Atlântico Sul eram a sua única saída para o mar. Deste facto geográfico, foi surgindo a ideia de um estreitamento de relações que obrigavam Lisboa a “manter-se alerta” quanto à ameaça de “ideias confederativas”141.

Ao mesmo tempo que pretendia manter-se em contacto com os “seus vizinhos brancos” para proteger os seus interesses e não perder nenhum acontecimento político relevante, o esforço diplomático do Governo Português estava orientado na entrada na ONU e no alinhamento que podia seguir com as potências coloniais, a França, a Bélgica e a Inglaterra. Este era um mecanismo de salvaguarda na proteção do “Império Colonial”, porque se adivinhava uma ofensiva diplomática contra os países que possuíam territórios não autónomos. Por essa razão, Lisboa não pretendia assumir nenhuma posição com a África do Sul nem com a Federação sem saber o “que pensavam” esses seus parceiros142.

Apesar da realidade geográfica impelir Lisboa para uma aproximação à África do Sul, o fortalecimento do apartheid sul-africano introduziu um significativo obstáculo entre os dois países. Portugal, que a partir de meados de 1950 se assumia como um país pluricontinental e multirracial, tinha muito a perder se fosse visto como um importante parceiro da África do Sul143. Todavia, as considerações estratégicas relacionadas com a defesa das “províncias” tiveram mais peso do que a questão racial. Neste período, dois acontecimentos facilitaram a aproximação que se iria verificar a partir de 1960: a crítica feroz de D. Malan à União Indiana depois da “agressão” aos enclaves de

141 AHDMNE – CRM: Cruz, A. De A. Leite, A Ideia Confederativa na África Meridional (Relatório Anual, 1959), pp. 52-55.

142 Silva, A. E. Duarte (1995), “O Litígio entre Portugal e a ONU (1961-1974)”, Análise Social, Vol. XXX, pp. 5-50. Martins (1998), Ob. Cit., pp. 189-206.

143 Sobre a importância da afirmação pública do modo português de estar no mundo e a utilização do luso- tropicalismo, Cf. Castelo, Cláudia (1998), O Modo Português de estar no Mundo. O Luso-Tropicalismo e a

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Dadrá e Nagar-Aveli (1954) e a Conferência de Bandung (1955). Estes dois acontecimentos marcaram uma viragem na ideia de Salazar em relação à África do Sul, uma vez que era evidente que estavam do mesmo lado em relação à preservação dos “valores do Ocidente” em África.

A desconfiança de Lisboa passou, lentamente, a dar lugar à possibilidade de cooperação. A este cenário há que juntar o “abandono de África” pela Inglaterra, pela França e pela Bélgica. Ao mesmo tempo, o eixo do Atlântico tinha-se deslocado de Londres para Washington, uma certeza depois da Crise do Suez (1956). O mundo que se adivinhava estava minado de perigos para o Estado Novo, razão pela qual não devia descurar todas as possibilidades de apoio para o seu objetivo vital: a manutenção do ultramar.

2. As Conferências de Defesa Africana de Nairobi (1951) e de Dacar (1954): Evitar um “Pacto