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3. SOBRE O IRAQUE E A AMBIGUIDADE DO IMPÉRIO

3.6 INVERNO DE 2004: ―OCUPAÇÕES JUSTAS E INJUSTAS‖

A edição de Dissent publicada no inverno de 2004 é uma edição especial, histórica. Trata- se da edição comemorativa de cinquenta anos da revista. Comecemos pelo artigo escrito por Mitchell Cohen, acerca da trajetória histórica de Dissent.

Cohen menciona algumas das ideias e eixos temáticos cobertos ao longo dos cinquenta anos do periódico. Segundo ele:

Verificando os artigos publicados nos últimos cinquenta anos, você encontrará argumentos acerca da natureza do capitalismo, do socialismo, da democracia e do impacto da Guerra Fria. Também encontrará discussões acerca do macarthismo e cultura de massas. Você vai encontrar avaliações das políticas liberais e conservadoras, além de raiva dirigida ao racismo norte-americano e ao desastre do Vietnã. Você vai encontrar descrições dos movimentos políticos e momentos políticos, além de reflexões sobre cultura e as contra-culturas, feminismo, pluralismo e os sentidos da desigualdade social. Você vai encontrar autores

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Membro histórico da oposição à República Popular da Polônia. Falecido em 2004, Kuron (educador, historiador e ativista) chegou a exercer por duas vezes a função de Ministro do Trabalho e de Políticas Sociais.

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Cf. http://www.dissentmagazine.org/issue/winter-2004 Acessado em: 30 de dezembro de 2012.

pensando a respeito do fim do comunismo, o crescimento da globalização e as vicissitudes decorrentes do status de superpoder dos EUA. Cinquenta anos cobrem muita política, contenda e ideias.

Cohen menciona que, para muitos, é estranho que Dissent ainda se classifique como sendo um periódico de esquerda. Estranho porque, após anos de propaganda conservadora, os termos ―liberal‖ e ―esquerda‖ foram intensivamente associados ao que seriam aspectos nocivos da experiência política norte-americana. Acerca deste tópico, Cohen discorre:

Alguns leitores podem achar estranho o fato de que Dissent ainda se intitule um periódico de ideias de ―esquerda‖ e opiniões de ―esquerda‖. A palavra ―esquerda‖ não está em voga nos dias de hoje. É ainda menos popular do que o termo ―liberal‖, e igualmente não estava em voga quando surgiu a primeira edição de Dissent. Conservadores norte-americanos tentaram, por décadas, estigmatizar os termos ―liberal‖ e ―esquerda‖, e obtiveram um sucesso público considerável em fazê-lo. Seus esforços foram facilitados pelo fato histórico de que os EUA – em contraste com boa parte da Europa Ocidental –, nunca tiveram um partido socialista de massas que se distinguisse dos comunistas não-democráticos por um lado e dos conservadores não-igualitários, de outro. Quando você pronuncia a palavra ―esquerda‖, conservadores americanos conjuram imagens dos assassinatos em massa stalinistas com inspirações totalitárias, das implosões de economias nacionalizadas, do apoio a ditadores de terceiro-mundo (gritando ―liberação‖, enquanto se batem com seus críticos) e de acadêmicos esnobes pós-modernos, capazes de justificar quase qualquer coisa a favor do Outro. O quadro geral não é atraente.

Segundo Cohen, a constituição política de Dissent é plural, no que isso se refere aos diversos matizes da esquerda norte-americana. Dissent fora fundada por intelectuais que costumavam se identificar como ―socialistas democráticos‖. Ainda hoje há intelectuais que assim se classificam politicamente e lá escrevem. Cohen também menciona os ―social liberals296‖, os

―social-democratas‖ e a chamada ―esquerda liberal‖ – além, claro, daqueles que rejeitam qualquer tipo de classificação política. Irving Howe, o fundador de Dissent, costumava afirmar: ―preferíamos a socialização das preocupações à socialização dos meios de produção‖.

Cohen discorre ainda acerca das origens intelectuais que animaram o surgimento de

Dissent. Irving Howe, Emmanuel Geltman e Stanley Patrik (todos eles membros fundadores da

revista) tiveram uma trajetória política em comum. Todos os três foram trotskistas – o que, de acordo com Cohen –, os imunizou das ―racionalizações políticas dos partidos comunistas‖. Em seguida, esses intelectuais se rebelaram contra as próprias premissas formativas de suas visões políticas e abraçaram um radicalismo democrático em consonância filosófica com os EUA – assentado, é evidente, no que seriam ―idiomas‖ e ―valores‖ tipicamente norte-americanos.

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Optei por grafar a expressão no original, tendo em vista que não há um análogo simétrico em português.

É precisamente esse tipo de radicalismo, calcado numa ideia de americanismo – isto é, de valores que informariam a experiência história, política e cultural norte-americana –, que caracteriza a orientação política de Dissent (ainda que esta orientação seja de contornos difusos, e muitas vezes, opacos).

Ainda na mesma edição, há um artigo emblemático da posição liberal pró-guerra: A

Friendly Drink in a Time of War, escrito por Paul Berman297. Ele argumenta que embora a Guerra do Iraque estivesse sendo travada por um conservador, ela contava com o apoio de um número significativo de intelectuais identificados com a esquerda política. Berman exemplifica sua posição citando os nomes de alguns europeus que apoiaram a guerra, como Adam Michnik, Václav Havel e mesmo Tony Blair – um trabalhista, porém classificado por ele como ―uma espécie de socialista‖.

Berman caracteriza a Guerra do Iraque como uma ―guerra antifascista‖. Segundo ele, seis motivos principais justificariam o fato de a maior parte da esquerda norte-americana ir na contramão de sua avaliação política.

Em primeiro lugar, Berman menciona a singular falta de carisma de George W. Bush. Para Berman, Bush seria uma figura pública ―particularmente repulsiva‖ – algo que teria ―cegado a esquerda para a percepção da urgência da conjuntura atual‖. Berman aponta ainda que a esquerda nutriria uma espécie de schadenfreude a cada erro político cometido pela administração Republicana.

Em segundo lugar, Berman menciona aquilo que muitos chamam de ―blame America

first‖. Isto é, de acordo com ele, grande parte da esquerda teria a tendência de acreditar que os

problemas enfrentados no plano externo pelos EUA, emanariam, essencialmente, dos próprios EUA.

Em terceiro lugar, argumenta que um sentimento latente de anticolonialismo faria com que a esquerda visse um aliado em potencial no regime Baath iraquiano – ou, ao menos, uma vítima das circunstâncias, explorada pelo império norte-americano.

Em quarto lugar, Berman aponta que, no esforço de exercitar uma atitude de alteridade cultural, a esquerda norte-americana teria chegado a conclusões racistas e etnocêntricas. Isto é:

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Berman (membro do corpo editorial de Dissent e editor contribuidor da New Republic) se notabilizou pela aplicação do conceito de ―totalitarismo‖ às guerras combatidas no pós-11 de Setembro, além ser um de seus mais proeminentes apologetas.

A esquerda não vê porque, muitas pessoas em seus esforços bem intencionados de respeitar as diferenças culturais, concluíram que os árabes, por razões inescrutáveis, gostam de viver sob ditaduras grotescas e não são capazes de nada além disso, ou não estarão prontos pelos próximos quinhentos anos, e árabes liberais devem ser considerados como inautênticos.O que quer dizer, que muitas pessoas, guiadas por seus próprios princípios nobres de tolerância cultural, acabaram por adotar atitudes para com os árabes que só podem ser classificadas como racistas.

Berman lamenta o que seria a decadência dos principais valores da esquerda: o universalismo e a preocupação com as minorias oprimidas. Segundo ele, uma disposição política animada por um espírito universalista contribuiria para que a esquerda se engajasse em um projeto de intervenção no Iraque. Em um dado momento, Berman chega a disparar ironicamente: ―Social-democracia para os suecos! Tirania para os árabes! E isso era para ser uma atitude de esquerda?‖. Com relação às minorias oprimidas, Berman menciona a situação dos curdos iraquianos – que, de acordo com ele, tinham agora a primeira oportunidade política efetiva de insurreição contra um regime despótico que até então os perseguira sistematicamente.

Em quinto lugar, menciona o que classifica como uma tendência geral na esquerda norte- americana de culpar o Estado de Israel por parte substantiva dos problemas no Oriente Médio. E, sendo assim, igualmente uma tendência geral em enxergar a população árabe essencialmente como vítima, e nunca como agressora.

Em sexto e último lugar, ele discorre acerca da incapacidade da esquerda dos EUA em notar o que seriam as similaridades existentes entre o regime Baath iraquiano e o regime nazista. O problema, contudo, é que Berman não esclarece quais seriam essas semelhanças. Uma vez que as supostas similaridades históricas não são evidenciadas, os elementos retóricos destacados por Berman soam como meramente instrumentais – isto é, evocando-se o combate ao nazismo, a ideia de se combater o terror se torna mais persuasiva e a ameaça emanada do regime Baath se torna mais crível, verossímil.

Passemos agora aos argumentos de Michael Walzer, acerca das justificativas morais da intervenção no Iraque.

Em artigo intitulado Just and Unjust Occupations, Walzer discorre sobre os dilemas decorrentes da condução de um processo idôneo de pós-guerra, em território iraquiano. Segundo ele, não há uma relação imediata entre as posições tomadas durante a guerra e as posições que seriam tomadas no pós-guerra. Ou, pelo menos, as primeiras não teriam o poder de determinar as últimas. Isto é, os critérios morais pelos quais a guerra foi pautada não condicionariam as ações que ocorreriam a partir da ocupação efetiva.

ação os EUA deveriam empreender após ter removido Saddam do governo. A primeira, mais modesta, diz respeito à volta imediata das tropas para casa. Já a segunda, menciona a responsabilidade advinda do início da guerra. Isto é, uma vez que tropas tenham sido mobilizadas na intervenção, agora haveria um comprometimento tácito com o bem-estar do povo iraquiano. Mais que isso, segundo essa posição, os EUA deveriam se comprometer com os recursos que garantissem o início de uma reconstrução política e econômica do país.

Quanto a isso, Walzer enumera alguns dos principais objetivos a serem perseguidos, idealmente. Em primeiro lugar, o governo que sucederia o de Saddam deveria ser eleito pelo povo iraquiano – ou ao menos ser popularmente reconhecido como legítimo.

Em segundo lugar, minorias deveriam estar protegidas de qualquer tipo de perseguição política.

Em terceiro, Estados vizinhos igualmente deveriam estar seguros diante de um Iraque pós-Saddam.

E, por último, os mais pobres deveriam estar protegidos da fome e das privações mais extremas. No entanto, a administração Bush focou menos nos referidos objetivos e mais na ideia de que um Iraque baseado em um regime plenamente democrático e federalista deveria ser o principal objetivo a ser buscado – o que, na prática, se mostrou de difícil consecução.

Walzer também se mostrou cético com relação à aparência inicial do chamado ―processo de reconstrução do Iraque‖. Sobretudo no que dizia respeito à distribuição de contratos a companhias politicamente conectadas aos EUA. Walzer temia que a legitimidade do processo de reconstrução saísse minada após esse tipo de expediente conduzido pelo governo norte- americano. Segundo ele:

Uma ocupação justa custa dinheiro, não produz dinheiro. (...) Eles clamam levar democracia ao Iraque, e todos nós esperamos que consigam. Mas com muito mais velocidade e efetividade eles levam ao Iraque o capitalismo de compadrio que hoje prevalece em Washington. E isso mina a legitimidade da ocupação e coloca seus supostos objetivos democráticos em perigo. A distribuição de contratos às companhias norte-americanas com conexões políticas é um escândalo. Mas faria alguma diferença se a ONU estivesse distribuindo contratos a companhias politicamente conectadas à França, à Alemanha e à Rússia? Em ambos os casos, deve haver alguém regulando a conduta das companhias – não apenas suas honestidade e eficiência mas também sua disposição em empregar gradualmente administradores e técnicos iraquianos competentes, bem como em compartilhar autoridade com os mesmos. Uma agência internacional com reputada imparcialidade seria o ideal, mas mesmo reguladores norte-americanos, através de um mandato do Congresso, funcionariam melhor do que se não fosse empregada qualquer regulação. A combinação de unilateralismo com laissez-faire é uma receita para o desastre.

O argumento central de Walzer é o de que a comunidade internacional, de um modo geral, deveria participar ativamente da reconstrução iraquiana. Ainda que a oposição frequentemente levantada por diversos países tenha sido a de que a Guerra do Iraque teria sido uma ―guerra de escolha‖, moralmente e politicamente desnecessária, Walzer argumenta que a participação de diversos agentes da comunidade internacional redundaria no benefício geral do sistema internacional. E se o benefício advindo de um Iraque democrático e estável (ainda que relativamente democrático e relativamente estável) seria compartilhado por diversos Estados, por que não haver um comprometimento ativo e efetivo dos referidos Estados? Essa é a indagação feita por Walzer. Segundo ele, aliás, um antídoto efetivo contra o comportamento unilateral norte-americano no Iraque teria sido o comprometimento dos países integrantes da União Européia, no processo de reconstrução do pós-guerra. Todavia, segundo Walzer, o futuro iraquiano dependia de um equilíbrio particularmente frágil. Se por um lado a União Européia gostaria de compartilhar autoridade sem compartilhar responsabilidade, os EUA gostariam de compartilhar custos sem compartilhar autoridade. Algo politicamente insustentável, portanto.