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3. SOBRE O IRAQUE E A AMBIGUIDADE DO IMPÉRIO

3.7 VERÃO DE 2006: SOBRE ―MUDANÇA DE REGIME‖

Em artigo intitulado Regime Change and Just War, Michael Walzer discorre acerca de como a noção de ―mudança de regime‖ foi frequentemente utilizada como uma causa supostamente justa para se travar a Guerra do Iraque. Em primeiro lugar, Walzer recorda um dos expedientes retóricos frequentemente adotados na defesa da intervenção de 2003: compará-la à mudança de regime ocorrida na Alemanha, no pós-guerra. Walzer recorda que um dos pontos que diferencia as duas experiências históricas e, portanto, invalida a analogia, é o fato de que o que os Aliados fizeram após a vitória da Segunda Guerra Mundial foi restaurar o regime democrático alemão. Algo bem diverso do que seria tentado no Iraque, onde não havia qualquer tipo de experiência anterior nesse sentido.

Outro aspecto evidenciado por Walzer, que diferenciaria as duas experiências, foi o fato de que a mudança de regime ocorrida na Alemanha foi a consequência da Segunda Guerra, e não sua justificativa. Quando Polônia, França e Inglaterra declararam guerra, não estava em questão a mudança ou não do regime político alemão. De acordo com os critérios que fundamentam o

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Cf. http://www.dissentmagazine.org/issue/summer-2006 Acessado em: 30 de dezembro de 2012.

princípio filosófico da Guerra Justa, tratava-se de uma ―guerra justa paradigmática‖. Isto é, tratava-se de uma articulação de resistência a uma agressão armada. Outro aspecto importante ressaltado por Walzer é a ideia de que houve um imperativo moral para que o regime nazista fosse substituído, não somente devido às frentes de batalhas particularmente agressivas que travava, mas principalmente devido ao genocídio que perpetrou.

Walzer prossegue acerca da particularidade da Guerra do Iraque – sobretudo no que se refere à doutrina de ataque preventivo da administração Bush. Segundo ele:

Assim, o caso iraquiano não é similar ao alemão, ao japonês ou ao (hipotético caso) de Ruanda. A Guerra do Iraque não é a resposta a uma agressão ou mesmo uma intervenção humanitária. Sua causa não foi (assim como foi em 1991) um real ataque iraquiano em um Estado vizinho ou mesmo uma ameaça iminente de ataque; nem era um real massacre que estava em curso. A causa foi a ―mudança de regime‖, diretamente – o que significa que o governo norte-americano estava advogando por uma significativa expansão da doutrina de jus ad bellum. A existência de um regime agressivo e assassino, ele argumentou, é uma causa suficiente para a guerra. Mesmo que o referido regime não esteja de fato engajado em qualquer agressão ou assassinato em massa. Em termos mais familiares, tratava-se de um argumento para uma guerra preventiva, mas a razão para um ataque preventivo não foi a percepção padrão de que uma mudança perigosa na balança de poder ―nos‖ deixaria frágeis diante ―deles‖. Foi uma percepção radicalmente nova de um regime mau.

Walzer se posiciona contrário à ideia de que a noção de ―mudança de regime‖, por si, fornecia uma justificativa legítima para a Guerra do Iraque. Segundo ele, uma intervenção militar deve estar a serviço do impedimento de algum mal que está em curso, e não do impedimento de algum mal possível de ocorrer. A intervenção, segundo ele, deve se assentar segundo justificativas concretas e não hipotéticas.

Por fim, Walzer argumenta que para se compreender a Guerra do Iraque, é imperativo que se dê atenção à política de contenção que estava em curso até então. A referida política era composta basicamente de três elementos.

Em primeiro lugar, da prevenção da entrada de armas em território iraquiano – o que afetava igualmente a entrada de produtos farmacêuticos e de alimentos.

Em segundo lugar, de inspeções organizadas pela ONU, a fim de impedir o desenvolvimento de armas de destruição em massa pelo governo de Saddam.

Em terceiro lugar, do estabelecimento das chamadas zonas de exclusão aérea ao sul e ao

norte do território iraquiano.

O problema, entretanto, é que com relação ao sistema de contenção, segundo Walzer, há uma leitura ambígua quanto ao êxito de sua aplicação. Por um lado ele foi exitoso – basta recordar que o regime de Saddam foi impedido de adquirir armas de destruição em massa e

igualmente de perpetrar qualquer tipo de violência em larga escala contra a população iraquiana. No entanto, foi insuficiente sob o ponto de vista da prevenção da guerra.

A causa primária da falha do sistema, de acordo com Walzer, foi a disposição unilateralista norte-americana para a guerra – que a todo o momento a favoreceu, em detrimento da contenção. Todavia, ele discorre a respeito de outro aspecto que serviu, ainda que de forma menos evidente, para minar a aplicação do sistema. Segundo ele, os Estados que se opuseram à Guerra do Iraque, frequentemente o fizeram argumentando que a contenção estava funcionando. O problema é que os Estados que assim argumentavam há muito já não estavam comprometidos com a aplicação multilateral do sistema de contenção.

De acordo com Walzer, a ação militar unilateral norte-americana pode ser entendida como uma consequência da hesitação dos demais Estados em contribuir ativamente para a formação de um sistema de segurança coletiva cuja prioridade fosse a contenção do Iraque. Ele argumenta:

A contenção do Iraque de Saddam começou como um empreendimento multilateral, mas no final foram os americanos que acabaram fazendo quase todo o trabalho. Se houvesse muitos Estados, ou talvez apenas um número um pouco maior, comprometidos com a aplicação do embargo, insistindo nas inspeções, com aviões sobrevoando o norte e o sul do Iraque, a revogação unilateral do sistema de contenção pelo governo dos EUA não teria sido possível (ou, pelo menos, não teria sido fácil como foi). Tivesse sido o sistema de contenção um projeto internacional, o poder norte-americano teria, ironicamente, sido igualmente contido por ele.

Segundo Walzer, portanto, a melhor alternativa para se impedir a ação unilateral dos EUA no conflito de 2003 teria sido o comprometimento do maior número possível de agentes, desde o início, com o sistema de contenção aplicado ao Iraque. Algo que não ocorrera, deixando a intervenção norte-americana com poucos ―freios e contrapesos‖ à sua consecução.