II. REFLEXÃO CRISTOLÓGICA: O SER HUMANO CRIADO E RECRIADO
1. Algumas considerações sobre a Unidade Letiva 2: «Jesus, um homem para os outros»
1.1. Jesus como Messias esperado
Jesus Cristo aparece na História no contexto da esperança messiânica do povo de Israel: «Tudo
isto aconteceu para se cumprir o que o Senhor tinha dito pelo profeta» (Mt 1,22). Esta
afirmação expressada de diversas formas atravessa todo o Novo Testamento, desde Mateus
até ao Apocalipse.
O messianismo do Povo de Israel era algo difuso, de tal maneira que o Messias
esperado podia ser um género de profeta, ou de rei, ou de sacerdote, ou alguém que
inaugurasse os tempos descritos na literatura apocalíptica
128. Bruno Forte observa que todas
estas variantes do messianismo veterotestamentário têm em comum uma tensão entre a
História de Israel e a História de Deus
129. Todas as modalidades de messianismo contêm uma
tensão que se abre à novidade, que se projeta para um futuro de esperança
130. Esta esperança
não se restringe no retorno de um passado mais ou menos idealizado. Leva no seu seio a
promessa de uma intervenção da vontade de Deus na História como nunca antes se viu. Com
estas premissas, percebe-se com clareza que, paradoxalmente, a descontinuidade e a
absoluta novidade do messianismo de Jesus Cristo são uma continuidade em forma de
126 Para verificar a relação entre esta sequência e as metas do Programa de 2014: cf. S.N.E.C., Programa de
Educação Moral e Religiosa Católica, p. 72.
127 S.N.E.C., Estou contigo! Manual do 6º ano. Educação Moral e Religiosa Católica, Secretariado Nacional da
Educação Cristã, Lisboa, abril de 2015.
128 Cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 436, p.122.
129 «Así pues, el mesianismo veterotestamentário expresa la constante tensión entre la historia de Israel y la de
Dios, el cual interviene en ella como señor de la promesa y del futuro» (B.FORTE, Jesús de Nazaret. Historia de Dios. Dios de la Historia. Ensayo de una cristología como historia, Ediciones Paulinas, Madrid 1983, p.80).
cumprimento da esperança messiânica que o Povo de Israel vivia como promessa. Contudo, a
novidade de Jesus é tal que foi preciso modificar consideravelmente o conceito judeu de
Messias antes de ser aplicado a Jesus. Raymond E. Brown afirma que este é o motivo pelo qual
Jesus teve certa relutância para aceitar o título de Messias sem certos esclarecimentos
131.
A profecia do capítulo quinto de Miqueias estabelece uma estreita relação entre o
messianismo e a descendência de David. Trata-se de um Messias ou de um povo messiânico
que submeterá todos os povos à vontade de Deus. É o que o Livro da Sabedoria chama
Βασιλείαν θεοȗ (Sb 10,10), traduzível como «reino de Deus», «reinado de Deus» ou, como na
tradução da Bíblia dos Capuchinhos, «realeza de Deus». Não há em todo o Antigo Testamento
outra passagem que utilize a expressão «Reino de Deus»
132, mas esta aparição em Sb 10,10
está na base do uso da expressão da parte de Jesus Cristo, que acrisolará o conceito com
elementos veterotestamentários e com elementos novos
133.
O desapego com que os livros de Samuel e dos Reis tratam da monarquia tem a sua
origem na ideia de que há de ser Deus a governar. A situação tornou-se mais aceitável quando
David assumiu o trono e se manifestou como humilde servo de Deus. A profecia de Natã (cf.
2Sm 7,8-17), que prometeu uma descendência que havia de ficar eternamente no trono de
David, bem poderia ser apenas um elogio à fidelidade de David, mas a partir do momento em
que a estirpe de David deixou de governar, esta profecia passou a constituir a base da
esperança num rei davídico no final dos tempos
134, claramente manifestada em Zacarias («E
o Senhor reinará sobre toda a terra. Naquele dia, o Senhor será único e o seu nome será
único», Zac 14,9), Daniel (cf. Dn 2,36-45; 7,1-27), Tobite (cf. Tb 13), Ben Sirá (cf. Sir 36,1-17),
Judite («Faz com que todas as nações e todas as tribos reconheçam que Tu és o Deus detentor
de todo o poder e que mais nenhum outro guarda Israel, senão Tu», Jd9,14), etc.
Os tempos messiânicos não estarão marcados apenas pelo rei que há de chegar, mas
também pela transformação do Povo de Deus em Povo Messiânico: «Os justos partilharão
com o juiz divino o poder de julgar e de governar, e “o Senhor reinará sobre eles para sempre”
(Sb 3,8). Por outro lado, o terror dominará os ímpios quando se vejam obrigados a enfrentar
o castigo no juízo final.»
135O Reino de Deus, elemento basilar da mensagem de Jesus, enraíza Jesus Cristo no
coração da profecia messiânica em todos os seus matizes revolucionários, proféticos,
sacerdotais e escatológicos e vice-versa, de tal forma que «só o podemos compreender a
partir da totalidade da sua pregação.
136»
Se observarmos, por exemplo, o evangelho de Marcos, perceberemos que para ele o
Evangelho proclamado por Jesus é a Boa notícia do reinado de Deus. Mas, por vezes, refere o
evangelho de Jesus Cristo como sendo o próprio Jesus Cristo. Esta forma particular de relação
131 Cf. R.E.BROWN, Introducción a la cristología del Nuevo Testamento, Sígueme, Salamanca 2005, p.179. 132 «Apesar de conter apenas um exemplo do "reino de Deus", o AT é sumamente importante como origem do
uso que Jesus faz da mesma» (J. P.MEIER, Un judío marginal. Nueva visión del Jesús histórico. Tomo Il/1: Juan y Jesús. El reino de Dios, Verbo Divino, Estella 1999, p. 302) (tradução própria).
133Ibidem.
134 Cf.J.P.MEIER, Un judío marginal... Tomo Il/1…, p. 304. 135Ibidem, p. 308.
136J.RATZINGER -BENTO XVI, Jesus de Nazaré. Primeira Parte. Do Batismo no Jordão à Transfiguração, Editora