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2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

2.4 O BRINCAR COM AS PALAVRAS

2.4.4 Jogos de alfabetização no contexto da formação continuada de

O intuito de visitarmos os documentos oficiais dos dois programas de formação continuada de professores caminha no sentido de buscar compreender como os jogos para alfabetizar estão aparecendo no conhecimento produzido com e para os professores alfabetizadores. Além disso, buscamos perceber como esses programas abordam o trabalho com a escrita alfabética. Os programas são: “Pró-Letramento: alfabetização e linguagem” (BRASIL, 2008) e “Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa” (BRASIL, 2012).

O “Pró-Letramento: Programa de Formação Continuada de Professores dos Anos/Séries Iniciais do Ensino Fundamental: alfabetização e linguagem” foi criado para melhorar a qualidade da aprendizagem da leitura, escrita e matemática nos anos iniciais do Ensino Fundamental. Entre outros temas, buscou levar aos professores da educação básica conhecimentos sobre as contribuições dos jogos para a alfabetização, o que constitui foco de nosso interesse.

No “Fascículo 5 - O Lúdico na Sala de Aula: Projetos e Jogos”, de autoria de Telma Ferraz Leal, Márcia Mendonça, Artur Gomes de Morais e Margareth Brainer de Queiroz Lima, do material de formação do Pró-Letramento, há um conjunto de relatos de experiência de professoras alfabetizadoras de redes públicas municipais pernambucanas sobre o uso de jogos e brincadeiras no desenvolvimento de habilidades de língua portuguesa, além da análise e discussão dos relatos feitas pelos autores do fascículo.

No fascículo antes mencionado, estão presentes relatos de experiência de duas professoras, cujo foco voltou-se para os jogos que promovem reflexão sobre o sistema de escrita alfabética por meio de brincadeiras com as palavras com o objetivo de favorecer a apropriação da notação escrita e suas relações com os segmentos sonoros das palavras. A escolha das professoras para fazer parte da pesquisa se deu pela presença constante dos jogos (intencionalmente planejados) no cotidiano delas.

Leal, Mendonça e Morais et al. (2008) identificaram que os jogos tinham espaço na rotina didática de modo planejado pela forma como as docentes descreviam a organização das situações de ensino com eles. Essa organização diz respeito ao agrupamento dos alunos para uso coletivo dos jogos, ou seja, elas expressaram a necessidade de alinhar os jogos aos diferentes níveis das crianças, além de familiarizá-los com os materiais e suas regras antes de

partir para o jogo de fato. Todos esses cuidados, segundo os autores, são fundamentais quando da utilização dos jogos com fins didáticos. Além disso, pode ser necessário realizar ajustes no momento da realização desses jogos, o que pressupõe estar atento às dificuldades apresentadas no momento da brincadeira (LEAL; MENDONÇA; MORAIS et al., 2008).

Nos relatos da experiência com os jogos da professora 1 “A Corrida das Palavras” e da professora 2 “Jogo das Vogais”, foram evidenciadas as contribuições desses recursos para a promoção de uma atitude reflexiva sobre a língua. À medida que as crianças jogavam e se divertiam com a brincadeira, uma série de descobertas era feita e compartilhada com as professoras e os colegas.

Do ponto de vista do fazer docente, os jogos permitem rearranjos e modificações que passam pela ordem dos saberes desenvolvidos no próprio momento pedagógico e à luz das experiências formativas e de formação profissional e mesmo pré-profissional dessas professoras, como expressou a professora 1, ao afirmar: “Acredito que esse jogo poderia ser também adaptado para outros níveis de alfabetização, ampliando o grau de dificuldade: faltando letras, em algumas palavras, ou ainda palavras que os alunos pudessem corrigir ortograficamente” (LEAL; MENDONÇA; MORAIS et al., 2008, p. 31), ou seja, a didatização dos jogos pode extrapolar aquilo que se encontra prescrito em suas regras quando o professor faz valer sua inventividade e assume a necessidade de constante reinvenção didática e pedagógica.

Os dois relatos de uso dos jogos revelam experiências de didatização adequadas do artefato jogo com fim de promover a reflexão de aspectos do sistema de escrita alfabética. É o que podemos perceber na fala da professora 2.

Todos os jogos estimulam os alunos a refletirem sobre o sistema de escrita alfabética e os fazem avançar nas suas hipóteses. O que eu acho interessante é que eles não percebem que é uma atividade de alfabetização, na hora em que estão jogando. Discutem se alguém quiser ser o “espertinho” e passar na frente da jogada de outro colega, dizem que o colega errou e muito mais. Porém, quando o jogo termina, eu reflito com eles sobre o que eles aprenderam no jogo e aparecem respostas valiosíssimas, tais como:

“Eu descobri que as palavras que rimam terminam igual”; “Aprendi que a palavra cachorro é escrita com CH”; “Aprendi que o PA não é a letra A, é o PA de Paulo”.

Ver as crianças refletindo sobre a palavra, sobre o que aprenderam, confirma a importância do professor mediar e diversificar as formas de aprendizagem na sua rotina de sala de aula (LEAL; MENDONÇA; MORAIS et al., 2008, p. 33).

O fato de as crianças não classificarem o jogo como atividade de alfabetização, mas mesmo assim apresentarem elementos que comprovam habilidades de reflexão sobre a língua, construídas a partir do jogo, revela que a professora conseguiu garantir que tanto a dimensão lúdica quanto a educativa (KISHIMOTO, 2011) estivessem presentes sem que uma anulasse a outra, favorecendo o aprendizado significativo de forma lúdica e prazerosa. Além disso, o extrato reforça o argumento de que os jogos podem ser recursos privilegiados de reflexão sobre a língua.

Nos Cadernos de Formação do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa, também identificamos alguns apontamentos com relação ao uso pedagógico de jogos didáticos de alfabetização. As discussões contidas nesses cadernos, além de retomar questões básicas e fundantes daquilo que vem sendo produzido como conhecimento acerca do brincar com a língua, lançam novas questões que despertam para a necessidade de aprofundamento de estudos e descobertas nesse campo.

Criado em 2012, o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (Pnaic) constituiu um compromisso firmado pelos governos Federal, Estaduais, Municipais e o Distrito Federal para garantir que todas as crianças fossem alfabetizadas até os oitos anos de idade, ao término do 3º ano do ensino fundamental, tendo em vista o alarmante número de crianças brasileiras que chegavam ao 5º ano do ensino fundamental sem dominar a leitura e escrita de forma satisfatória, de acordo com o Censo Demográfico de 2012. Nessa conjuntura, o programa é encarado como uma política aprofundada e diferenciada por reunir, além da formação continuada de professores, a distribuição de materiais didáticos e de apoio pedagógico, sistematicidade na avaliação e gestão, controle e mobilização social (SILVEIRA et al., 2016).

Para a análise dos documentos do Pnaic, buscamos os cadernos da formação em Língua Portuguesa realizada em 2013. No conjunto dos cadernos, interessou-nos principalmente aqueles que têm o tema ludicidade como central nas discussões (Unidade 4) dos três anos do ciclo de alfabetização: Ludicidade na sala de aula – Ano 1, Vamos brincar de construir as nossas e outras histórias – Ano 2, e Vamos brincar de reinventar histórias – Ano 3.

Brainer et al. (2012), no caderno do Ano 1, fazem sugestões com relação às diferentes possibilidades de organização e agrupamento das crianças em situações de uso de jogos de acordo com a intenção didática de cada situação de ensino. Quanto a isso, afirmam ser possível propor um mesmo jogo para toda a turma ou vários jogos diferentes, simultaneamente, de acordo com o nível de apropriação do sistema de escrita alfabética das crianças. Dessa forma, é possível diversificar as atividades propostas e as estratégias de agrupamento das crianças,

conforme podemos comprovar no extrato do relato de experiência a seguir, presente no caderno do Ano 1.

Um tipo de situação que realizo acontece da seguinte forma: organizo pequenos grupos de crianças de acordo com o nível de leitura e escrita, tendo cada um sua vez. Acompanho o desenvolvimento das jogadas, intervindo conforme o grau de dificuldade que os jogadores apresentam. Muitas vezes, utilizo algum jogo que tem na escola e mudo as regras de acordo com as necessidades. É comum reinventar o uso de um jogo já vivenciado. Costumo perguntar a opinião da turma quando o jogo termina (MATURANO, 2012, p. 32).

A professora também expôs os encaminhamentos didáticos desenvolvidos por ela em uma situação de uso do jogo “Troca-letras”. Nessa ocasião, a docente dividiu a turma em dois grupos e realizou o jogo com um grupo por vez, em dias diferentes, enquanto o outro grupo realizava uma atividade diferente.

O “Troca-letras” foi usado primeiro com o grupo que apresentava mais dificuldades. Antes de começar a partida, informei que seria uma escrita diferente, sem usar lápis. Então, distribuí as cartelas com figuras e solicitei a cada integrante do grupo a escrita do nome da sua figura com as fichas das letras. Terminadas as escritas espontâneas, chegou o momento das correções, nas quais coletivamente as crianças iam tentando descobrir a grafia correta do nome de cada desenho da rodada, contando com minhas intervenções. Eu ia intervindo de modo a levá-los à reflexão sobre a escrita e oportunizando a leitura a partir das pistas oferecidas (MATURANO, 2012, p. 34-35).

Ainda segundo Brainer et al. (2012), no caso do uso dos jogos voltados para a aprendizagem do SEA, o critério da heterogeneidade para a organização das crianças carece de atenção especial, pois, quando os conhecimentos sobre o sistema de escrita alfabética são fundamentais para avançar no jogo, as crianças podem ficar frustradas à medida que não conseguem vencer o jogo. Para que isso não ocorra, outra possibilidade “é organizar duplas ou grupos, em lugar de realizar a competição individual. Desse modo, a criança participa coletivamente, podendo aprender pela resposta do colega, além de ter chance de fazer parte dos ganhadores do jogo” (BRAINER et al., 2012, p. 16).

Ferreira, Rosa e Cavalcante (2012), no caderno do Ano 2, chamam atenção para o brincar no processo de aprendizagem da língua portuguesa. Para promover esse brincar com finalidade didática, são apresentados alguns recursos, como os textos da literatura infantil, textos rimados e jogos de palavras da tradição oral. Esses últimos, segundo as autoras, são recursos privilegiados na aprendizagem do sistema de escrita alfabética, pois antecedem o

trabalho de decodificação do texto escrito, facilitando o desenvolvimento da leitura individual e autoral. Além desses, apontam também os jogos fonológicos, recursos para refletir sobre os segmentos sonoros das palavras e suas representações escritas, ou seja, estabelecer relações eficientes entre letras e fonemas.

É possível ainda encontrar nesse livro sugestões de brincadeiras para realizar em sala de aula, como a Barca Fonológica, que trabalha os sons iniciais das palavras; a Forca, com foco no conhecimento das letras e formação de palavras; Baralho Fonológico, o qual é indicado para refletir sobre as semelhanças sonoras e gráficas nas palavras; Jogo das duas palavras, no qual as crianças devem ater-se às pistas gráficas para identificar entre o par de palavras qual corresponde à figura de uma delas, e o Caça letras, também com o objetivo de formar palavras.

No caderno do Ano 3, Rosa, Brainer e Cavalcante (2012) apresentam um relato de experiência de uma sequência didática com o tema “Vamos brincar de reinventar histórias”, no qual mostram como a professora mobiliza jogos e brincadeiras aliados aos objetivos de ensino de diferentes componentes curriculares. No fragmento abaixo, vemos diferentes estratégias de ensino da língua portuguesa mobilizadas pela professora alfabetizadora:

Para introduzir o tema “Vamos brincar de reinventar histórias” a turma ouviu a música “Criança não trabalha” (Arnaldo Antunes e Paulo Tatit – CD Palavra Cantada, Canções Curiosas). Após ouvir a canção e interpretá-la, escrevemos com o alfabeto móvel o nome dos brinquedos e brincadeiras que apareciam na música, depois contamos o número de letras e sílabas dessas palavras. Ainda escrevemos uma lista com o nome das brincadeiras preferidas da turma. Havia na lista as palavras “pipa” e “pião” e como um aluno havia chamado atenção para a semelhança entre o som das sílabas iniciais das duas palavras, aproveitei a oportunidade e pedi que dissessem outras palavras iniciadas por PI e as registrei, sempre questionando os alunos sobre quais letras deveriam usar para escrever as palavras ditadas por eles: piada, pia, picada. Não havia planejado, ou seja, não estava previsto na sequência, mas lembrei do jogo “Bingo das sílabas iniciais” e brincamos com o grupo, o que foi muito divertido, porque eles ajudaram uns aos outros chamando a atenção do colega quando este não havia percebido que na sua cartela havia uma figura cujo nome iniciava com a sílaba chamada (ROSA; BRAINER; CAVALCANTE, 2012, p. 10).

Os direcionamentos da professora com relação à semelhança sonora das sílabas iniciais das palavras permitiram aos alunos refletirem sobre aspectos básicos para a compreensão do funcionamento do sistema de escrita alfabética, como compreender que as palavras são compostas por unidades sonoras (sílabas) que podem aparecer em palavras diferentes e, consequentemente, palavras diferentes podem possuir unidades sonoras iguais, o que desenvolve a consciência fonológica (BRANDÃO et al., 2009).

Ante esse cenário, apresentaremos, na próxima seção, um pouco do que já foi produzido e compartilhado no âmbito acadêmico sobre os jogos de alfabetização a partir do estado do conhecimento realizado. Esse mergulho permitiu termos um panorama de algumas das reflexões já sistematizadas sobre a temática a fim de melhor situarmos o nosso objeto de estudo.

2.5 JOGOS DE ALFABETIZAÇÃO: O QUE APONTAM AS PESQUISAS DO ESTADO