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4 ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS DADOS

4.3 JOGOS DIDÁTICOS DE ALFABETIZAÇÃO: ASPECTOS DA

4.3.4 A título de síntese: uma visão geral das unidades e habilidades

4.3.4.1 Reflexão fonológica

Morais e Silva (2020) apresentam um percurso evolutivo no desenvolvimento de habilidades de consciência fonológica36, tendo em vista que a realização de algumas delas é mais complexa que outras, indo desde habilidades que não necessariamente requerem ensino explícito para serem desenvolvidas pelas crianças, como, por exemplo, separar palavras em suas sílabas orais e contar as sílabas de palavras orais, até habilidades que demandam um trabalho sistemático e sequencial.

Ao final da lista mencionada anteriormente, consta a habilidade de identificar a presença de uma palavra dentro de outra (palavra), mas Morais (2019) esclarece que essa habilidade não fez parte de uma tarefa experimental nas pesquisas nas quais se envolveu ou em estudos do seu conhecimento realizados por outros estudiosos no português brasileiro ou em outros idiomas. Logo, a indicação dessa habilidade posteriormente às demais não está relacionada ao nível de dificuldade relacionada a ela. De acordo com o autor, a inclusão da habilidade de identificar palavras inteiras dentro de outras palavras maiores na lista de habilidades relacionadas à reflexão fonológica decorre da experiência acumulada junto a crianças da faixa etária de cinco e seis anos, ou seja, do último ano da educação infantil e primeiro ano do ensino fundamental, na qual se tem observado o entusiasmo das crianças quando são postas para “brincar de detetive” e identificar palavras contidas no interior de outras palavras.

No conjunto de jogos por nós analisados, a categoria que reúne as habilidades de reflexão fonológica apresenta maior incidência (71%) e contempla muitas das habilidades apresentadas por Morais e Silva (2020), listadas no início desta seção. Nessa direção, as habilidades contempladas nessa primeira categoria e a quantidade de jogos nelas presente são: a) identificar palavras quanto ao número de sílabas, enfocada em três (3) jogos; b) produzir palavras com o mesmo número de sílabas, enfocada em um (1) jogo; c) identificar palavras que começam com a mesma sílaba (aliteração), enfocada em cinco (5) jogos; d) produzir palavras que começam com a mesma sílaba (aliteração), enfocada em um (1) jogo; e) identificar palavras que rimam, enfocada em cinco (5) jogos; f) produzir palavras que rimam, enfocada em um (1)

36 Essas habilidades de reflexão fonológica estão listadas na seção 2.4.2, página 53 em ordem crescente de dificuldade.

jogo; g) identificar palavras quanto às semelhanças sonoras nas sílabas orais final de uma palavra e inicial de outra, enfocada em um (1) jogo; h) produzir palavras orais a partir de segmentos menores ou mesmo o nome inteiro de outras palavras, enfocada em um (1) jogo; i) identificar o fonema e/ou a letra iniciais de palavras, enfocada em dois (2) jogos e j) identificar partes que compõem palavras dentro de palavras maiores, enfocada em dois (2) jogos.

Entre os jogos que se propõem a identificar palavras quanto ao número de sílabas, identificamos o “Batalha de palavras”, do conjunto de Jogos do Ceel. Morais (2015) afirma ficar surpreso com o fato de as pesquisas sobre consciência fonológica ignorarem o papel de habilidades como as de identificação e produção de palavras maiores que outras no processo de compreensão da escrita alfabética, tendo em vista que, para o autor, essa é uma habilidade essencial para ajudar a crianças a estabelecer relação entre as partes da palavra (segmentos sonoros menores) e o todo (a palavra). Ao longo das análises por nós realizadas, ficou claro que comparar palavras quanto ao número de sílabas a fim de identificar qual é a palavra maior pode contribuir significativamente para aquelas crianças que ainda associam palavras às características daquilo que designam (significado) e não aos sons das palavras (significante). Ou seja, ajuda as crianças a superarem o fenômeno designado de “realismo nominal” e focalizar, como indica Soares (2019), o significante e não o significado das palavras.

A habilidade de identificar palavras que começam com a mesma sílaba (aliteração) é mobilizada, por exemplo, no jogo “Mercado”, do conjunto de Jogos do Trilhas. Por outro lado, a habilidade de identificar palavras que rimam está presente, por exemplo, no jogo “Ache a rima”, do conjunto de Jogos do Programa Criança Alfabetizada.

De acordo com Freitas (2003), a consciência fonológica envolve o desenvolvimento de diferentes habilidades relacionadas à consciência da sílaba, a consciência de elementos intrassilábicos e a consciência fonêmica, cujo desenvolvimento, conforme a autora, permite às crianças refletirem conscientemente sobre os sons da fala. No que se refere à consciência de rimas e aliterações – habilidades enfocadas nos dois últimos jogos mencionados –, Freitas (2003) constatou que, mesmo as crianças em nível pré-silábico da escrita, conseguem identificar e produzir rimas e aliterações, mas essa capacidade evolui conforme a criança progride quanto à hipótese da escrita.

Segundo a autora supracitada, entre essas tarefas (identificação e produção de rimas e aliterações), a identificação de palavras que compartilham essas semelhanças sonoras (rimas e aliterações) se mostrou mais fácil para as crianças em relação à produção de palavras com as mesmas semelhanças sonoras, sobretudo a identificação de aliterações. O grupo de crianças investigado por Freitas (2003) apresentou variação no que se mostrou mais difícil de realizar.

Nos níveis iniciais de compreensão da escrita (pré-silábicos e silábicos), em ordem crescente de dificuldade, as crianças apresentaram melhor desempenho em: 1. identificar sílaba inicial; 2. identificar rima; 3. produzir rima; e 4. produzir sílaba inicial. Já nos níveis mais avançados da escrita (silábico-alfabéticos e alfabéticos), em ordem crescente de dificuldade, as crianças apresentaram melhor desempenho em: 1. identificar sílaba inicial; 2. produzir sílaba inicial; 3. identificar rima; e 4. produzir rima.

Nos dados apresentados por Freitas (2003) é curioso o fato de a produção de semelhanças sonoras nas sílabas iniciais tenha sido mais desafiador para as crianças em hipóteses iniciais de compreensão da escrita do que produzir rimas, enquanto nos dois últimos níveis de compreensão da escrita a produção de aliterações tenha se mostrado mais fácil que a identificação de rimas. Em outras palavras, de acordo com os achados da pesquisa de Freitas (2003), conforme avançam em relação à compreensão da escrita, as crianças desenvolvem maior desenvoltura para identificar e produzir palavras iniciadas com o mesmo som do que para identificar e produzir palavras que rimam.

Para Freitas (2003, p. 166), “pode-se supor que, aos poucos, as crianças perdem o contato com brincadeiras e atividades que envolvem rimas”. Isso explicaria, segundo a autora, a maior dificuldade para resolver atividades envolvendo rimas apresentada pelas crianças em hipóteses mais avançadas de compreensão da escrita. Para nós, esse é um dado que chama atenção para importância de promover o brincar com as palavras e sua sonoridade, através de textos e jogos que manipulam ludicamente as semelhanças e diferenças sonoras entre as palavras, de modo que essas brincadeiras sejam também direcionadas à realização de análises metafonológicas, aliando, conforme defendemos aqui, o brincar e o aprender.

As habilidades de produzir palavras com o mesmo número de sílabas, produzir palavras que começam com a mesma sílaba e produzir palavras que rimam estão relacionadas ao jogo “Trilha animada” do conjunto de Jogos do Programa Criança Alfabetizada. Já produzir palavras orais a partir de segmentos menores ou mesmo do nome inteiro de outras palavras é a habilidade enfocada no jogo “Bichos malucos”, do conjunto de Jogos do Trilhas.

Conforme apresentamos no início dessa seção na lista apresentada por Morais e Silva (2020), as habilidades que envolvem produzir (dizer) palavras estão sempre após aquelas que envolvem contar, comparar e identificar. Logo, evocar de memória palavras que partilham determinada semelhança sonora tem se mostrado mais desafiador para as crianças do que identificar essas mesmas palavras entre grupos de palavras ou imagens (MORAIS; SILVA, 2020).

O movimento inverso, segundo os autores anteriormente mencionados, no sentido de ajudar as crianças que apresentam dificuldade em produzir palavras com determinado pedaço sonoro e tornar a atividade menos difícil, é igualmente possível.

Se as crianças ainda têm dificuldade, por exemplo, de dizer palavras que começam com “o mesmo pedaço” (sílaba) que “quiabo”, podemos, para facilitar, combinar uma brincadeira em que vão pular ou bater palmas toda vez que nós falarmos uma palavra que começa igual àquela... e dizemos “quilo”, “quieto”, “quilombo” e “quitanda” no meio de outras (“peteca”, “banana”, “guitarra", “sacola” etc.) (MORAIS; SILVA, 2020, p. 13-14).

Nesse sentido, se as atividades que envolvem produzir palavras que compartilham determinadas semelhanças sonoras exigem dos aprendizes esforço cognitivo maior para a realização do desafio implicado na atividade, esse nos parece um bom indicativo para promover a progressão das aprendizagens construídas pelos alfabetizandos e propor a realização de jogos que envolvem a produção de palavras quando já se mostrarem capazes de realizar a identificação de palavras com essas semelhanças sonoras.

A habilidade de identificar palavras quanto às semelhanças sonoras nas sílabas orais final de uma palavra e inicial de outra é promovida pelo jogo “Passo a passo” do conjunto de Jogos do Trilhas. No manual de Jogos do Trilhas, a criação de jogos como este apresentado anteriormente é atribuída ao escritor inglês Lewis Carroll. Na descrição do jogo “Passo a passo”, ele é apresentado como um jogo no qual

as crianças brincam com as palavras, buscando semelhanças entre os sons, o que favorece que elas observem e atuem sobre a estrutura sonora da língua. Enquanto jogam, realizam um processo de análise da palavra, ao isolar a sílaba oral final, para buscar a nova palavra e, ao isolar a sílaba oral inicial, para juntar com a palavra anterior (BRASIL, 2011, p. 20).

Logo, a análise que os jogadores deverão realizar para encadear as palavras leva-os a atuar sobre os sons menores das palavras, buscando as semelhanças desses sons em diferentes posições nas palavras. Não se trata nem de identificar rimas, nem tampouco aliterações, mas é uma atividade complexa e interessante de reflexão metalinguística.

A habilidade de identificar o fonema e/ou a letra iniciais de palavras é enfocada em dois (2) jogos, e um deles é o jogo “Bingo da letra inicial”, do conjunto de Jogos do Ceel. Essa é uma atividade interessante que, além de promover a aprendizagem das letras e seus sons correspondentes, focaliza os sons mínimos das palavras. Para Morais (2012), esse é um exemplo de atividade significativa sobre análise fonêmica, tendo em vista que o alfabetizando se

deparará com transformações radicais ocasionadas por uma única letra/fonema diferente nas palavras, pois é preciso observar e perceber as correspondências grafofônicas para realizar o desafio do jogo, ou seja, identificar a letra que completa as palavras.

A identificação de fonemas iniciais em palavras ou sílabas (em lugar de segmentação de fonemas), conforme indica Soares (2019), é a atividade mais adequada para compreender o princípio alfabético, por exemplo, em atividades que ajudam a criança a perceber a repetição de um fonema em palavras diferentes ou mudança de um único fonema em palavras semelhantes, como ocorre nos exemplos apresentados por Soares (2019, p. 214) sobre esses dois contextos:

percepção de que um mesmo segmento – um mesmo fonema – aparece em

diferentes palavras, representado pela mesma letra ou grafema (como em faca, furo, figo, fogo, fera ...) ou a percepção de que um único som – um único

fonema – diferencia palavras que só se distinguem por esse fonema,

representado por letras diferentes (como em faca, maca, jaca, vaca ...).

A habilidade de identificar partes que compõem palavras dentro de palavras maiores é mobilizada nos jogos “Palavra dentro de palavra” do conjunto de Jogos do Ceel e “Nomes escondidos” do conjunto de Jogos do Programa Criança Alfabetizada. Sobre o desafio imbricado nesse tipo de proposta, Morais (2019, p. 139) expõe:

O brincar de “detetive que descobre palavras dentro de palavras” tem um efeito de prazerosa surpresa e ajuda nossos aprendizes a explorarem o princípio gerativo de que “com mesmas partes podemos formar novas palavras”, constatando tal princípio elevado ao seu grau máximo: existem palavras já prontas dentro de outras palavras que já estão aí, no mundo (das palavras), e, se formos curiosos, podemos “pescá-las”.

As duas propostas de jogos anteriormente apresentadas propõem basicamente o mesmo desafio – encontrar palavras inteiras dentro de outras palavras maiores –, mas apresentam algumas diferenças tanto no que se refere ao modo de jogar, quanto ao nível de dificuldade de cada um, em decorrência da presença da palavra escrita nos cartões. No jogo do Ceel apenas em um dos conjuntos de fichas há presença da palavra escrita. Já no jogo do Trilhas, as palavras correspondentes às figuras aparecem nos dois conjuntos de fichas, o que o torna menos desafiador se comparado ao jogo do Ceel. Independentemente dessas diferenças, brincar de “detetive” e procurar palavras escondidas dentro de outas palavras é uma brincadeira muito atrativa para as crianças. Enquanto brincam, os alfabetizandos refletem sobre as semelhanças sonoras e gráficas entre palavras diferentes, assim como é possível compreender que a sequência de sons de uma palavra pode aparecer contida em outra palavra.