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O JUIZ, O CASO CONCRETO E A EMOÇÃO: COMO LIDAR COM ESSAS VARIÁVEIS?

“RESERVA DO POSSÍVEL”

4 A INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO NA CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE NO BRASIL

4.4 O JUIZ, O CASO CONCRETO E A EMOÇÃO: COMO LIDAR COM ESSAS VARIÁVEIS?

O drama do paciente levado ao conhecimento do Poder Judiciário de forma individualizada, torna difícil ao julgador apreciar, com isenção, os efeitos da decisão que irá proferir. A carga emocional que envolve tais processos é bastante acentuada. Ali se encontra um juiz que, como ser humano, sente-se envolvido pelo sofrimento que a situação representa e não deseja ser tomado como partícipe de um eventual desfecho trágico que se posta como uma das possibilidades factíveis no horizonte do enfermo.

Nos casos envolvendo a tutela do direito à saúde, em especial nas situações extremas, é normal que o juiz aja emocionalmente. Como não dispõe de conhecimentos técnicos e geralmente é apresentado pelo demandante um relatório médico que sinaliza como única alternativa de cura ou de sobrevida para o paciente o tratamento ou medicamento indicado, o juiz não costuma considerar os custos, muitas vezes acentuados, do procedimento médico requerido e tende a deferir a antecipação de tutela, tratando o direito à saúde de forma absoluta. Quando confrontado com o lado financeiro desse direito erigido ao patamar de absoluto em sua decisão, costuma se valer de argumentos estereotipados, como a existência de corrupção endêmica na gestão dos recursos estatais, aplicação de verbas em atividades que considera não essenciais como propaganda governamental e outras similares.

A tranquilidade de consciência que o juiz pensa obter ao encampar uma tese de defesa do direito à saúde que desconsidere os seus custos, é falsa. Os recursos financeiros do Estado não são infinitos e a capacidade contributiva dos cidadãos é limitada. Logo, é evidente que não há a possibilidade real do Estado acompanhar integralmente os avanços da medicina, garantindo a todos, indistintamente, o acesso a qualquer medicamento ou tratamento.

A decisão do juiz que pensa estar assegurando a vida daquele paciente, cujo drama chegou ao seu conhecimento por meio de uma demanda individual, pode significar a morte de diversos outros anônimos que perecerão porque os recursos que poderiam lhe ter salvo as vidas foram utilizados, muitas vezes, para custear uma aventura experimental destinada, supostamente, a garantir a vida de uma pessoa específica.

As demandas judiciais envolvendo o direito à saúde também precisam ser avaliadas sob um outro ângulo: a rejeição da morte como um processo natural no desenrolar da vida humana. A morte parece não ser vista como parte integrante do processo normal do existir e sim como um intruso que reclama o mais intransigente combate. Para postergá-la - uma vez que uma

vitória sobre ela ainda continua sendo impossível - vale lançar mão de qualquer promessa que a medicina - acompanhada de uma indústria farmacêutica sedenta por vultosos lucros - traga para o paciente ou sua família, ainda que isso represente sofrimentos terríveis, especialmente para pacientes terminais, que veem uma existência dolorosa sendo prolongada, muitas vezes contra a sua vontade.

Blanco (1997, p. 63-76) acentua que a morte deixou de ser vista como a finalização do processo natural de existência, assumindo, culturalmente, a figura de inimiga a ser combatida pelos médicos sem trégua ou limites. Acrescenta, ainda, que falta aos profissionais de saúde uma educação sólida a respeito da ocorrência da morte como um fenômeno natural, integrante do processo de existir. Isso tem levado, segundo ele, a um quadro de utilização da tecnologia médica em situações que não trazem qualquer alento para o enfermo, a não ser a postergação de uma morte inevitável. Por isso, defende ser necessário que os profissionais de saúde deixem de encarar a morte como uma inimiga, passando a enxergá-la como o encerrar natural de uma existência.

As tentativas de prolongamento da vida têm custo elevado para o sistema público de saúde. Não raras vezes, pacientes terminais acometidos por moléstias graves como o câncer buscam junto ao Poder Judiciário o acesso a drogas de custos elevados, sem qualquer comprovação de eficácia real, baseados apenas em promessas, algumas delas oriundas de profissionais inescrupulosos a serviço de gananciosos laboratórios farmacêuticos. Por mais que seja justificável esse ato de desespero dos pacientes ou de seus familiares, o juiz precisa ser consciente de que sua decisão pode comprometer a funcionalidade do SUS, prejudicando pacientes com perspectivas reais de cura e que deixarão de ter assistência médica adequada porque os recursos que poderiam ser utilizados para isso foram remanejados para o custeio de uma aventura médica.

Rosa (2010, p. 55) faz referência às dificuldades do juiz que leva em consideração as implicações financeiras de suas decisões envolvendo o direito à saúde. Segundo ele,

Resistir a este movimento de satisfação de todas as demandas [envolvendo saúde], todavia, é ir contra a maré das ‘Almas Belas’ (Zizek), de gente que em nome do politicamente correto, da aceitação das ditas evoluções sociais, aceita deferir toda-e- qualquer-pretensão para não pousar de reacionário, totalitário e conservador. Aceita o jogo do mercado, fabricando e vendendo decisões conforme a moda da estação e atendendo a todo-e-qualquer pleito.

A atuação do juiz, ao apreciar demandas envolvendo pleitos de assistência terapêutica, é bastante árdua. Existe uma forte carga emocional que acompanha demandas dessa natureza e

o magistrado é, antes de tudo, um ser humano exposto às mesmas mazelas e dores que afligem a humanidade. Ao julgar pleitos dessa natureza, ele é levado a pensar nos seus pais, filhos ou companheiros e uma pergunta inevitável vem à sua mente: e se um dos seus entes queridos estivesse naquela situação? A dor, a tristeza e toda a mescla de sentimentos nebulosos que acompanha as demandas por assistência terapêutica, mais do que em outros casos, sensibiliza de forma acentuada o julgador, sendo-lhe mais fácil aplacar as inquietações internas que lhe acometem deferindo qualquer pleito de medicamento ou tratamento que lhe é apresentado. Analisando esse quadro, Rosa (2010, p. 54), faz as seguintes considerações:

A sensação primordial de desamparo é a dor que movimenta os pleitos judiciais. Enfim, busca-se que o Estado, via Poder Judiciário, possa evitar o encontro com o inevitável. Assim, o pedido deduzido perante o Poder Judiciário é banhado por um discurso humanitário e de cumprimento do Direito Fundamental à Saúde, como se a extensão do batimento cardíaco, por máquinas, pudesse, por si, ser qualificada como ‘vida digna’. Enfim, se as práticas de ‘Distanásia’ podem ser qualificadas como uma demanda de saúde, a pergunta a ser feita é se toda e qualquer demanda pode ser satisfeita num mundo de escassez? A demanda por diminuir o sofrimento e prolongar a vida pode ser um paradoxo. Enquanto, por um lado, pretende-se que a vida seja boa, de outro lado, em qualquer circunstância - mesmo se respirando por aparelhos e sem condições de se retomar uma vida boa -, o prolongamento acaba sendo sinônimo de vida! Esta constatação atende interesses não ditos que precisam ser invocados. Diretamente: é preciso que o discurso latente se faça ouvir, a saber, uma confusão de registros, nos quais se adia, aparentemente, o encontro com a perda e o luto.

Por mais que seja difícil para o juiz resistir a carga emocional que acompanha as demandas por assistência terapêutica, é fundamental que nele esteja impregnada a consciência de que o seu ato de conceder, de forma indiscriminada, o atendimento dos pleitos que lhe são trazidos, não representa um ato de heroísmo e nem significa que ele está agido para assegurar o prolongar de uma vida, pois o seu comportamento pode representar a privação de muitos outros indivíduos necessitados de acesso a serviços de saúde pública, que deixarão de ser atendidos por falta dos recursos financeiros realocados pela decisão judicial.

Talvez o melhor antídoto para o juiz decidir com serenidade as demandas por assistência terapêutica seja o conhecimento adequado dos mecanismos de funcionamento e financiamento do SUS. Enxergando o sistema público de saúde de forma global, o magistrado perceberá que as implicações de sua decisão irão muito além daquele caso individual que lhe foi levado para apreciação.

É importante repisar mais uma vez que a gestão do sistema de saúde envolve um planejamento complexo. Com o orçamento disponível, os gestores avaliam quais os procedimentos voltados ao atendimento do maior número possível de pessoas poderão ser custeados dentro do exercício financeiro. Ações preventivas são delineadas. Procedimentos

curativos são avaliados e, após isso, chega-se à conclusão a respeito da forma mais adequada de investimento nas ações de saúde pública.

Quando o juiz, sem conhecimento do conjunto do sistema público de saúde começa a interferir na forma de alocação dos recursos disponíveis, com a finalidade de atender a pretensões individuais, ele cria dificuldades gerenciais em todo o sistema, impondo aos gestores o remanejamento de recursos para o custeio da despesa não prevista, o que pode levar à implosão de todo o planejamento anteriormente efetivado.

Com a interferência judicial por meio das demandas individualizadas voltadas à tutela do direito à saúde, a gestão dos recursos públicos alocados para assistência sanitária da população entra num contexto de casuísmo, no qual quem acessa o Poder Judiciário é privilegiado com ações de saúde que não seriam garantidas em nenhum lugar do mundo, enquanto os recursos utilizados para o atendimento dessa ordem judicial, fora de um contexto de planejamento, pode ensejar a morte de inúmeros outros indivíduos que não tiveram tal privilégio e que necessitam de terapias mais simples e eficazes.

Assim, é necessário que o juiz leve em consideração que aquele drama presente nos autos colocado para sua apreciação não é único e nem maior do que outros vivenciados por anônimos. Os casos que chegam ao Judiciário são, não raras vezes, encabeçados por incluídos socialmente, que têm acesso a bons advogados e são beneficiários de planos privados de saúde que, dada a peculiaridade do tratamento ou medicamento almejado, não são cobertos pela assistência suplementar privada. Com isso, retiram-se recursos que poderiam ser utilizados na atenção básica de saúde por anônimos que padecem miseravelmente longe da visão do julgador, para atender a um caso em particular, às vezes sem perspectivas reais de sucesso curativo.

A insistência numa proteção absoluta ao direito à saúde, tal como vem sendo sustentada pelo Judiciário brasileiro, pode contribuir para que esse direito exista apenas para poucos, em detrimento de todos os demais cidadãos que, em decorrência dos recursos insuficientes e indevidamente remanejados pelo Judiciário, não terão acesso a ações básicas de assistência à saúde.

O medo da morte, especialmente na cultura judaico-cristã, é natural e os indivíduos tendem a buscar o prolongamento de sua existência vital. Para isso, qualquer promessa médica que surja é um alento, principalmente para pacientes terminais ou portadores de moléstias incuráveis. Essas terapias tidas como inovadoras geralmente têm custos elevados e eficácia duvidosa. O juiz deve estar atento a isso e não permitir que o apelo emocional da demanda contamine o seu julgamento.

Por tudo o que se expõe, ainda que se reconheça como difícil para o juiz agir de forma isenta em face de um caso concreto em que se reclama assistência terapêutica, é fundamental que ele considere os efeitos globais de sua decisão sobre o sistema público de saúde, pois somente ao agir assim ele estará contribuindo para que o direito à saúde, com alcance universal e em condições de igualdade seja um horizonte factível e não uma quimera que se dissipa a cada decisão judicial que descontrói o planejamento do SUS e tumultua o sistema público de saúde.

4.5 PROPOSIÇÃO DE UM CAMINHO PARA A RACIONALIZAÇÃO

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