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2 CONSERVAÇÃO URBANA SUSTENTÁVEL DE CIDADES PATRIMÔNIO

3.4 Julgamento dos Envolvidos: processos subjetivos e intersubjetivos

Valores e significados, autenticidade e integridade são variáveis resultantes de julgamentos intersubjetivos, frutos da relação dos sujeitos envolvidos com os símbolos patrimoniais. Esta relação é que conformará a significância cultural a ser

conservada à posteridade, baseada em uma seleção dos objetos (artefatos) e processos que têm valor à determinada coletividade.

Os julgamentos intersubjetivos ocorrerão frente aos atributos materiais, quando são tangíveis, ou não materiais, quando intangíveis. Porém, esta separação é pouco sensível, quando da seleção dos valores patrimoniais a serem conservados, pois os valores são qualidades que acrescem valor às demais qualidades existentes no patrimônio (Frondizi 1971).

Um julgamento é uma decisão do sujeito (ou dos sujeitos) ou conclusão baseada em indicadores e probabilidades, quando os fatos não estão totalmente apurados ou claros (Albercromby apud Caple 2000, 7) quando há incertezas. Logo, observa-se a contingência temporal e contextual deste processo.

Embora possa parecer lógico supor que o julgamento é feito com base na seleção do melhor resultado provável de uma gama de opções analisadas; o uso de métodos menos lógicos são, frequentemente, mais utilizados. O processo de interpretação inerente aos julgamentos é normalmente feito inconscientemente, e só efetiva-se conscientemente quando há um número de opções com probabilidades semelhantes de sucesso ou fracasso (Caple 2000, 8).

Diversas técnicas são usadas para melhorar a natureza do julgamento de um determinado tema. Uma das mais usadas e com melhores resultados tem três passos importantes: a “quebra” do assunto em questões menores; a comunicação das provas e deduções feitas em cada etapa deste procedimento; e o desenvolvimento de um modelo do problema (Caple 2000, 10).

Segundo Caple (2000), houve pouca exploração das técnicas de julgamento no âmbito da conservação patrimonial. A abordagem de construção de um modelo sofre com a natureza única de cada objeto, e facilita a construção de uma gama diversificada de modelos para o julgamento dos envolvidos com o patrimônio como a mais adequada nesses contextos.

Quanto ao julgamento na conservação urbana sustentável, existem três perguntas ao julgar se o patrimônio está bem conservado ou não; e se a conservação sustentável tem sido exercida durante um determinado período de tempo (UNESCO 2008): 1) foi mantida a significância?, 2) foi mantida a integridade? 3) foi mantida a autenticidade?

Estes julgamentos não podem depender de uma avaliação objetiva da significância, integridade e autenticidade para fins de orientação quanto às decisões sobre a conservação, uma vez que os conceitos são qualitativos, ou seja, “variáveis”, pois não podem ser “medidas” versus as normas quantitativas, como é o caso das variáveis utilizadas na análise científica físico-material. O julgamento pode simplesmente declarar se as variáveis têm-se mantido ou não, ou se ocorreram mudanças no patrimônio, que afetou a percepção da significância, da integridade e da autenticidade de modo positivo (bom) ou negativo (mau).

O filósofo Alessandro Ferrara (1998) analisando o julgamento do povo sobre a autenticidade, também usa o conceito de phronesis40

A primeira refere-se à construção da identidade do indivíduo que é compartilhada com outros. A segunda é sobre a autorrealização, que exige o conhecimento dos outros, e a terceira condição refere-se à reflexão (ou inter- julgamento) subjetiva e sua validade. O raciocínio de Ferrara (1998) sobre o julgamento da autenticidade pode ser estendido para o julgamento da significância,

, porque esse tipo de julgamento é indispensável para avaliar se algo é autêntico ou não, uma vez que não se pode simplesmente recorrer ao objetivo científico (episteme) ou conhecimento prático (práxis) para sustentação desse tipo de avaliação (Flyvbjerg 2004). Ferrara considera que a autenticidade requer uma validação baseada em um julgamento intersubjetivo, embora não ignorando o pluralismo e a diferença subjacentes a ela. É por isso que ele sugere a noção de “autenticidade reflexiva”. Assim, enquanto ela é subjetiva – uma vez que lida com uma busca individual – é, também, inerentemente intersubjetiva, isto é, relacionada com a consciência coletiva de uma comunidade, visto que pressupõe três condições.

ou valores, e da integridade, pois estes também exigem uma validação baseada em um julgamento intersubjetivo, sem ignorar, novamente, o pluralismo e a diferença subjacente a isso. Muñoz Viñas (2005) enfatiza, nesse sentido, que

Inter-subjectivism in conservation can be viewed as a consequence of agreements among the subjects for whom objects have meanings. Furthermore, the responsibilities for the conservation of an object fall on the affected people – or their representatives; it is their duty to preserve or restore those objects, and it is for them that conservation is performed (Muñoz Viñas 2005, 153).

A Intersubjetividade na conservação pode ser encarada como uma conseqüência dos pactos entre os sujeitos envolvidos, para os quais os objetos têm significados. Além disso, a responsabilidade de conservação de um objeto recai sobre as pessoas afetadas, ou os seus representantes; é seu dever preservar ou restaurar esses objetos, e é para eles que a conservação é realizada (Muñoz Viñas 2005, 153, tradução livre).

Em termos práticos, o julgamento das três principais condições, que afirmam se o patrimônio tem sido bem ou mal conservado, é da responsabilidade das pessoas cuja vida é afetada pelo patrimônio e seus significados. Os stakeholders podem gerar e serem impactados por efeitos tangíveis e intangíveis, de diferentes formas e magnitudes, dependendo do grau do seu envolvimento com o objeto patrimonial. Portanto, os envolvidos são pessoas com direitos sobre o que fazer com o patrimônio e, nos sítios urbanos, são considerados basicamente a partir de 04 (quatro) grupos: os especialistas, residentes, grupos de referência cultural e visitantes.

Os especialistas são aqueles que têm autoridade sobre o patrimônio, devido à: (1) relações de curadoria, (2) contribuições para o seu significado e (3) a sua capacidade de intervir sobre os atributos materiais e não materiais devido à sua especialidade (Michalski 1994; Leigh et al. 1994). Segundo Clavir (2002, p.43) o especialista tem um papel fundamental na conservação sustentável que é o de reconhecer e trabalhar com a intersubjetividade, entendendo que o patrimônio é valorizado de forma diferente por indivíduos e grupos, e a partir disso procurar identificar o máximo de consenso social que pode ser alcançado nas decisões referentes à conservação patrimonial. Podem ser gestores envolvidos com a conservação patrimonial, mas não devem ser aqueles que conduzem o processo de avaliação da conservação.

Os especialistas podem ser divididos em dois grupos. O primeiro é o grupo de especialistas locais, ou seja, aqueles que têm conhecimento específico sobre o lugar e fizeram alguma contribuição intelectual e prática para sua compreensão. Não há nenhuma necessidade de que sejam moradores, nem viverem próximos dali. O segundo é o grupo de especialistas externos, que têm o conhecimento global sobre conservação de sítios patrimônios da humanidade e trabalham com instituições internacionais de conservação.

No caso dos espaços urbanos – em que o número e os tipos de objetos são muitos – os residentes, especialmente os de longa data41, são envolvidos importantes

para a conservação sustentável do sítio. Eles tendem a manter as suas propriedades, lutam por melhores espaços urbanos, atraem outros usos urbanos, tais como comércio e serviços locais, mantém laços com a comunidade e as tradições culturais locais. Eles são o componente essencial do genius loci dos sítios urbanos. Manter e ampliar o número atual de residentes é objetivo principal das políticas e programas de conservação urbana42

Existem sítios em que a significância cultural é dependente da presença ou atividade, ou origem, de grupos culturalmente importantes, tais como: ordens religiosas em locais sagrados (por exemplo, Kandy/ Sri Lanka e Axun/ Etiópia), bairros étnicos (por exemplo, bairros judeus e Chinatown), ofício ou locais de produção específicos (por exemplo, relógios em La Chaux-de-Fonds e Le Locle/ Suisse e Saltaire/ França) ou grupos específicos (por exemplo, os afro-brasileiros em Salvador/ Brasil) (Serageldin et al. 2001). Estes grupos de referência cultural atribuem significados, e são os guardiões destes nas áreas onde vivem, trabalham ou realizam seus rituais.

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Finalmente, outra importante parte envolvida são os visitantes que procuram lugares que possam fornecer novos significados e experiências autênticas as suas

41 Na literatura o período de 30 a 40 anos é considerado como referente a uma geração. Como as primeiras

cidades patrimoniais foram inscritas na WHL há 30 anos, considera-se como “longa data” na pesquisa a metade desse período temporal, 15 anos.

42 Nos residentes estão englobados os comerciantes, artesãos, ou quaisquer outras atividades que os moradores

possam desenvolver no sítio urbano patrimonial. Como grupo de stakeholders, os sujeitos que praticam estas atividades, não foram considerados em separado em função do referencial consultado.

vidas (Jamal e Hill 2004). A promoção do turismo tem sido por diversas vezes a força motriz por trás de iniciativas para conservação dos sítios urbanos de interesse patrimonial (Orbaşlí 2000).

Os stakeholders tendem a desempenhar um papel crescente na gestão da conservação do patrimônio, uma vez que as decisões neste campo devem ser alcançadas por meio de acordos entre os sujeitos envolvidos. De acordo com a abordagem contemporânea, as interpretações e decisões no campo da conservação patrimonial são baseadas na negociação, discussão e consenso, contingente e contextual, entre os envolvidos (Avrami et al. 2000; Staniforth 2000; Cameron et al. 2001).

Portanto, referir-se à Conservação da significância cultural trata-se dos valores e significados comuns a vários indivíduos (pluralidade de indivíduos); aqueles que passam por processos de julgamento e validação intersubjetivos (Zancheti et al. 2009) frente aos objetos e processos de conservação. A investigação dos valores relevantes à conservação deve ser feita em grupos de indivíduos da mesma comunidade, e estes devem ser plurais, heterogêneos, mesmo nos subgrupos de especialistas, visitantes, e outros.