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2. A REPRESENTAÇÃO DO LOUCO E DA LOUCURA NAS IMAGENS DE QUATRO FOTÓGRAFOS BRASILEIROS DO SÉCULO

2.1 Alice Brill Alice Brill fotografou o Hospital do Juquery no ano de 1950.

2.1.3. Para além do Juquery

A implantação de um novo modelo terapêutico no Juquery, que envolvia a atividade criativa em Aleliê, constituiu o ambiente imediato das imagens de Alice Brill. Porém, o Juquery não foi o único lugar a desenvolver projetos nesse sentido e a desencadear importantes mudanças no mundo da arte. O trabalho desenvolvido por Nise da Silveira no hospital psiquiátrico de Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro, tem relevância incontestável nas discussões levadas adiante por figuras como Mário Pedrosa e Frederico Morais que, em grande parte, ajudaram a renovar o campo das artes a partir dos anos 50.

Em torno de 1950, o crítico de arte Mario Pedrosa propõe uma nova forma de abordagem das produções de pacientes psiquiátricos, fato que implicou no surgimento de novos pressupostos para a apreensão dos sujeitos/autores destes trabalhos.

De acordo com Glaucia Villas Boas, os trabalhos plásticos desenvolvidos no Engenho de Dentro entre os anos de 1946 e 51, que chamaram a atenção de críticos como Mário Predrosa e artistas como Almir Mavignier, Abraham Palatnik e Ivan Serpa, não tiveram pouca relevância para o desenvolvimento do concretismo carioca4.

O Ateliê do Rio de Janeiro apresentou algumas diferenças em relação ao Ateliê de São Paulo. Uma das principais era que os internos iam espontaneamente ao Ateliê, ou

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A [...] experiência sui generis do ateliê deslocou o eixo da crítica de arte dos meios acadêmicos, oficiais e literários para os meios terapêuticos, científicos e jornalísticos, fazendo da relação entre arte e loucura o centro do debate sobre o processo criativo e a formação do artista; além disso, propiciou a conversão de jovens artistas plásticos da arte figurativa à arte concreta, redefinindo o seu papel e possibilitando a escolha entre abraçar ou abandonar a missão de pintar os “retratos do Brasil”. Finalmente, a história do Ateliê do Engenho de Dentro leva a questionar os marcos convencionais de origem do movimento concretista no eixo Rio de Janeiro–São Paulo, geralmente atribuídos ao prêmio concedido a Max Bill na I Bienal de São Paulo em 1951, ou ao manifesto do grupo paulista Ruptura de 1952, vinculando o concretismo às relações de Mario Pedrosa, Almir Mavignier, Abraham Palatnik e Ivan Serpa entre si e com a arte virgem. Cf. Pedrosa, 1950, apud VILLAS BOAS. 2008:198

eram convidados por Almir Mavignier dentre uma população de 1500 individuos na época. Mavignier

[...] proibia as revistas de arte, para que não houvesse influências de reproduções de pintores famosos. Satisfazia assim não apenas uma concepção sobre o desenvolvimento do artista – a de que ele deve buscar em si próprio as fontes de sua inspiração –, que foi elaborando vida afora, como atendia, naquela circunstância, ao desejo de Nise da Silveira de preservar e

cultivar as imagens configuradas pelos esquizofrênicos (VILLAS BOAS, 2008:203).

Assim, não era incentivado o contato com influências externas, mas um fazer mais endógeno. Estes trabalhos foram levados a diversas exposições nas quais os autores não estiveram presentes. Muitas delas ocorreram em Congressos médicos, onde as obras eram vistas como expressões do inconsciente de seus autores, que também não eram vistos como artistas. Para Nise da Silveira, eram sujeitos em processo de individuação, que expressavam sem barreiras os estados inconscientes. O fato de ter analisado criteriosamente e guardado as obras de seus pacientes aponta para a abordagem predominantemente terapêutica da doutora Nise.

A fala de Pedrosa em relação aos trabalhos dos internos de Engenho de Dentro, porém, se alinha mais ao discurso estético de Osório César do que ao discurso terapêutico de Silveira, contribuindo para um questionamento relacionado à origem das duas expressões. Pedrosa organizou ao redor de si um grupo de artistas interessados nessas discussões. Lygia Pape comenta que, no ano de 1948, eram frequentes as visitas que Mario Pedrosa fazia aos domingos ao Ateliê do Engenho de Dentro. Segundo ela, Pedrosa “[...] era o guia do grupo e o acompanhavam Ivan Serpa, Abraham Palatnik, Décio Vitório, Geraldo de Barros. Lá, naquele antro anônimo, fermentavam e surgiam, aos olhos extasiados do grupo, universos novos de Rafael ou Leafer [...], Carlos, Fernando Diniz, do próprio Emygdio e outros” (PAPE, 1980:48).

A fala de Lygia Pape contém um elemento precioso: as identidades nomeadas dos internos do ateliê se contrapõe ao antro anônimo destinado à caracterização dos demais internos. Esta oposição, este destaque, esta condição de autor/artista, efetivamente movia

aqueles sujeitos de seu anonimato. A aproximação de Mário Pedrosa com esta população teve por base o interesse acadêmico do autor. O trabalho dos internos corroborava uma tese sua

[...] sobre a criação artística, que levava em conta as lições da Psicologia da Forma. A partir da perspectiva psicológica da percepção, Pedrosa discutia a universalidade da organização da boa forma, considerando que a intuição e as estruturas inatas próprias de todo e qualquer indivíduo possibilitavam a percepção da boa forma, que se fazia expressar em obras objetivamente construídas (VILLAS BOAS, 2008:204).

Esta foi explicitada em Da Natureza Afetiva da Forma de Arte, texto entregue como material em concurso para a cátedra de História da Arte da Faculdade de Arquitetura da Universidade do Brasil em 1949. Pedrosa declarava que “[...] o artista deve buscar na força expressiva da forma a possibilidade de reeducação da sensibilidade do homem, de modo a fazê-lo transcender a visão convencional” (ARANTES, 1991:XII). Por outro lado, “ [...] a relação do crítico com os internos artistas que frequentaram o Ateliê também foi de importância central para o desenvolvimento de suas teorias” (VILLAS BOAS, 2008:214). Ao “[...] mitigar as inquietações dos jovens, Pedrosa golpeava duplamente os adeptos dos padrões acadêmicos e dos padrões da arte moderna, investindo em sua autoridade como crítico de arte e abrindo caminho para o programa moderno concretista”, prossegue o autor (VILLAS BOAS. 2008:215). Ou seja, a relação entre ele e os trabalhos plásticos dos internos, bem como o modo com o qual estabeleceu relações com os artistas que frequentavam o Ateliê, fundamentou-se em contestar, construir e comprovar questões relacionadas à forma e aos processos de criação, sistematizando teorizações que contribuíram para os questionamentos no campo da arte no pós guerra, alterando definitivamente o cenário artístico nacional. O crítico de arte via no trabalho dos internos, ricos plasticamente, uma possibilidade de confirmar suas teorias. Assim, o “louco” se apresentava para Pedrosa e o grupo de artistas de seu convívio como a comprovação de que era possivel fazer arte e criar formas independentemente de uma aprendizagem e do conhecimento prévio dos códigos plásticos e compositivos5.

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Sergio Milliet terá postura diversa à de Mário Pedrosa, como se pode constatar no artigo Arte e Loucura publicado no jornal O Estado de S. Paulo. Aí é possível perceber a distinção que Milliet faz entre os elementos estéticos presentes em uma obra, para ser considerada arte, e outros como os elementos históricos

Uma série de exposições foram realizadas no interior do circuito das artes da época com trabalhos de pacientes, tanto do Engenho de Dentro, quanto do Juquery. Esta dinâmica revela que havia conhecimento mútuo sobre as atividades desenvolvidas nos dois hospitais, bem como trocas e influências entre as iniciativas paulistas e cariocas. O contato entre os grupos pode também ser aferido através de artigo publicado na revista paulista Habitat, no qual são descritos os trabalhos realizados pelos internos do Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro.

A polêmica fundamental que subjazia às discussões ocorridas no período consistia na própria delimitação dos critérios pertinentes para a caracterização do artístico. Essa delimitação se pautava em alegações acerca da não necessidade de treinamento técnico para a realização de uma obra de arte autêntica, da valorização da forma, debates sobre os “[...] limites entre a normalidade e a anormalidade, entre arte e razão, entre academicismo e experimentação. Discutiam-se questões de autoria e do estatuto do artista. Que obras poderiam ser nomeadas de arte?” (VILLAS BOAS, 2008:206).

Entre 1946 e 1950, quatro exposições veiculando os trabalhos produzidos nos hospitais psiquiátricos do Engenho de Dentro e do Juquery foram realizadas em São Paulo, Rio de Janeiro e França. Quanto ao número de exposições realizadas após 1930, nas quais foram veiculados trabalhos plásticos de pacientes psiquiátricos produzidos no Rio de Janeiro e em São Paulo, é possivel verificar que “[...] existe uma concentração de eventos em torno de alguns períodos históricos: entre os anos de 1946 a 1960 e entre os anos de 1986 a 2000 sendo que na década de 1990 parece se encontrar um crescimento bastante significativo deste tipo de evento no Brasil” (GONCALVES, 2004:85). O primeiro período compreendido aproximadamente entre o final da segunda guerra e o golpe militar brasileiro e o segundo se constituindo a partir da abertura democrática, na década de 80.