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1. ORIGENS: HISTÓRIA DA REPRESENTAÇÃO DO LOUCO E DA LOUCURA

1.1 A representação iconográfica do louco em produções visuais do ocidente Ao longo dos séculos, a loucura foi compreendida e representada de diferentes

1.1.2 Maneiras de representar a loucura e seus ícones

Alguns elementos na descrição do “louco” podem ser acessados não apenas nas imagens, mas também em palavras que o designaram. Igualmente como produções da cultura as palavras contém, organizam e condensam significados que também podem estar presentes nas imagens dedicadas à representação do “louco” e da loucura. Abaixo, apresentaremos algumas destas designações a fim de termos evidenciadas através delas articulações algumas articulações de significados dedicadas à loucura.

Alguns significados para “louco” derivam da raiz Mat

[...] que pode ter diversas origens etimológicas. Poderia ser uma alusão ao jogo de xadrez no qual há a situação do cheque mate. No francês significa ‘fosco, abafado, indistinto’ e ainda o ‘cheque mate’ do xadrez. Do árabe mat significa morto e em italiano matto (louco,doido). A palavra francesa mat vem do baixo latim, começando a se fixar no século XI. O verbo latino que lhe deu origem é o verbo madere, estar úmido. Mat é contração de maditus, particípio passado de madere, que traduzo por umedecido, no sentido de "estar tocado", "um pouco embriagado". Esse sentido inicial de embriaguez foi se perdendo, passando mat a designar o que não tem polimento, brilho, ou que o perdeu. Lado mat de um objeto, em francês, é o lado que não brilha, o opaco. Nesse sentido, falamos de uma fotografia

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Para Pinel as doenças mentais eram ocasionadas por tensões sociais e psicológicas excessivas de causa hereditária, ou como conseqüência de acidentes físicos. Pinel descreveu as alucinações e diversos tipos de psicose e implementou programas de atividades dirigidas, ao perceber que alguns alienados mantinham estruturas de pensamento racionais conservadas. Publica em 1798 Classificação Filosófica das Doenças ou Método de Análise aplicado à Medicina e em 1801 Alienação Mental, duas importantes obras sobre a questão da loucura.

mate, esmaecida, que não tem nenhuma cor, fosca, sem luminosidade. Som mat é um som abafado. Mat poderá ser também, em francês, aflito, abatido. A palavra aparece também através do árabe mat no sentido de ‘não poder se mover do lugar em que se encontra sob pena de ser morto’. Em árabe e persa, temos shah mat ou ‘o rei está morto’. Daí, o xeque- mate do lance do xadrez. Lembremos ainda que em italiano encontramos

matto, ou seja, pessoa dominada por impulsos irracionais, que provoca

mais hilaridade que apreensão ou aversão pelo seu estado; falamos também em italiano de matto como privado de sentido ou como de algo muito intenso. Matto pode ser também adjetivo usado para designar uma parte do corpo não sadia de todo. Por último, lembremos que em português temos a palavra matusquela, que ou quem não é bom da cabeça, doido (VASQUES).

Há outros significados que decorrem de Fol. John Southworth refere a “[...] palavra do latim medieval para fool, follis, teve o significado original clássico como um saco de couro ou uma bolsa cheia de ar; tal como bexigas ou ‘baubles’ dos inocentes” (SOUTHWORTH, 1998:6). Em inglês “louco” é

[...] designado por The Fool (Le Fou ou Fol, em francês). Em latim, follis é um balão cheio de ar [...] . O verbo latino é follere, fazer o vai-e-vem de um fole (follis). No inglês, fool é o que age com falta de bom senso, uma pessoa estúpida. A palavra designa também, no inglês, o bufão profissional ou aquele que, descontrolado, não sabe administrar seu tempo, seu dinheiro. Tanto em francês quanto em inglês, fou ou fool pode indicar uma pessoa de alegria muito exuberante, extravagante. É desse universo semântico que sai a palavra folia, divertimento, dança, brincadeira, com o sentido de loucura, porque o cérebro de um folião era comparado a um saco vazio (follis) (VASQUES sem data).

Jocker também é uma das nomeações do “louco”. Na etimologia da palavra “[...] curinga em inglês é joker, que se liga a jeu, giuoco, jogo, em francês e italiano respectivamente. O verbo latino é jacere, atirar, lançar. Jactabilis em latim é móvel, aquele que se movimenta com facilidade” (VASQUES), jogar significa “[...] passatempo, festejamento, alegria, entretenimento alegre, [...] competição na qual opera ou a sorte, ou a força, ou a destreza ou o engano, que se faz mais do que tudo a fim de recreação” (PIANIGIANI, Dicionário Etimológico).

Há ainda um conjunto de nomeações derivadas de Buf, a

[...] palavra bufão vem, na seqüência, do antepositivo buf, do verbo bufar, soprar, que significa também grotesco (bufo é sapo, em latim). Bufa é também ventosidade anal silenciosa e geralmente fétida. Buffa, em

italiano, deu zombaria, burla. Daí, ópera-bufa, ópera de origem italiana (séc.XVIII) ligeira, satírica, espirituosa. O bufão às vezes toma o nome de bobo (este provavelmente originário de balbus, latim, gago, que fala mal, aturdido), indivíduo geralmente grotesco (anão, corcunda), que desde a Antigüidade reis e poderosos mantinham ao pé de si (VASQUES, sem data).

As imagens também concatenam e organizam significados. Abaixo apresentaremos alguns elementos de identificação do “louco” e questões relativas à loucura que, atravessando os séculos, foram re-acessadas e re-articuladas através dos tempos. Não constam deste levantamento todas as formas de articulação existentes, mas as que se mostram mais significativas ou que foram acessadas nas fotografias em estudo neste trabalho.

Em sua agressividade. Na Grécia, o bastão foi um elemento iconográfico

relacionado à loucura. A este em geral se agregam atributos fálicos. No Salmo de Barlow, numa Bíblia do século XIV, aparece uma “[...] imagem de potencial poder destrutivo do “louco” como percebido pelas clérigos: a vara com bexiga na ponta simula o movimento de Saul que aponta a si mesmo a espada” (SOUTHWORTH, 1998:4).

O bastão (e a vegetação) apareceu em algumas pinturas de Giotto na caracterização da loucura como pode ser visto na série de afrescos realizada em 1306 na Capella Scrovegni (Capela Arena) em Pádua.

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Fig. 24. Giotto. “Loucura”. Capela de Arena, Pádua, c.1305 Fig.25. Giotto. “Desespero”. Capela de Arena, Pádua, c.1305

Fig.26. Giotto. “Ira”. Capela de Arena, Pádua, c.1305 Fig.27. Giotto. “Inconstância”. Capela de Arena, Pádua, c.1305

O bobo da corte também foi recorrentemente representado segurando objetos de luta, o que pode ser compreendido como uma referência à efetiva situação de vulnerabilidade que este se encontrava em função do ciúme gerado por sua proximidade ao rei. Em quase

[...] todas as ilustrações medievais do bobo da corte que sobreviveram, ele é representado com uma arma – massa, marrote (vara com a miniatura da cabeça do bobo na extremidade superior), lâmina, adaga ou espada. O bastão pode ser acolchoado e a adaga ou a espada (como aos atores romanos) feitas apenas de madeira, mas o índice da agressão – ou, pelo menos, preparação para uma efetiva auto defesa – permanece (SOUTHWORTH, 1998:5).

O “[...] chapéu de pontas (coxcomb), familiar no Renascimento como um emblemático identificador dos bobos e da loucura, serviam como aviso da mesma assertividade” (SOUTHWORTH, 1998:5), ou seja, desta periculosidade. O chapéu de pontas reaparece séculos depois em Bruegel já no alto Renascimento. A presença de um cachorro (o cachorro raivoso) junto à figura do “louco” pode também referenciar esta agressividade.

O “louco”, como furioso, agressivo possuidor de uma força física descomunal aparece no poema de Ludovico Ariosto “A loucura de Orlando”28 de 1516. Sua figura também agrega elementos de inconsequência quando enfrenta situações absurdas e de alto risco, como também faz o “louco” representado no tarô muito próximo aos abismos

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Publicado pela primeira vez em 1532 e baseado no romance de Matteo Maria Boiardo intitulado Orlando enamorado de 1495.

Fig.28. Ludovico Ariosto. “Orlando furioso”, Gioli de Ferrara. Canto 23. Hougton Library, Universidade de Harvard, 1543.

Fig.29. (detalhe) Ludovico Ariosto. “Orlando furioso”. Valgrisi, Canto 24. The Beinecke Rare and Manuscript Library, Universidade de Yale, 1556

A intensidade das emoções, a mobilização causada pelos sentimentos afetivos/amorosos, vai ser um elemento de interesse no século XIX. Alguns artistas do Romantismo vão re-acessar esta iconografia como Gustave Doré em “Ruggiero Resgatando Angélica” de 1879 e Ingres em “Angelica salva por Ruggiero” de 1819.

Em alguns livros de emblemas aparece o tipo colérico, furioso e relacionado à ira. Na figura do “Collerico” em Ripa, a figura “…possui o atributo de um guerreiro, com tocha e espada. Chamas são visíveis na tocha à direita e o leão, associado com este humor rosna à esquerda” (KROMM, 1984:66).

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Fig.30. “Colérico” em Iconologia de Cesare Ripa. Amesterdam, Beinecke Rare Books and Manuscript Library, Yale University, 1644

Fig.31. “Anger” em Iconologia de Casare Ripa. Ilustração referente à Figura 59 na edição de 1709 (Londres) Fig.32. “Ira” em Iconologia de Casare Ripa. Ilustração referente à edição de 1764-67 (Itália)

Uma gravura “La Rue aux Ours” de Jean Le Paultre mostra um homem conturbado que avança para uma estátua da virgem e o menino enquanto um grupo de citadinos observa horrorizado. Nesta imagem há uma associação clara entre o “louco” e estados alterados de fúria.

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Fig.33. Jean Le Paultre. “La Rue aux Ours”, 1661 Fig.34. (detalhe) Jean Le Paultre. “La Rue aux Ours”, 1661

Na escultura de terracota de Pieter Xavery “Two Madmen” de 1673 (Fig.35), são apresentados dois homens, ambos com a musculatura bem definida. Um deles tem os pés acorrentados, denotando sua periculosidade e está sentado num tronco de árvore, no qual se apóia pelos calcanhares, puxando com a mão esquerda sua vestimenta e segurando a barba com a mão direita. Atrás deste o segundo, no chão, com os braços acima da cabeça.

O “louco” agressivo (Fig.36) em conjunto ao “louco” melancólico também aparece nas esculturas de 1673 de Caius Gabriel Cibber como uma encomenda aos portões de entrada do Hospital de Bethlem (Londres).

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Fig.35. “Two Madmen” de Pieter Xavery, 1673

Fig.36. “Raiva” de Caius Gabriel Cibber. The Bethlem Royal Hospital Archives and Museum, c.1676

Há duas versões da escultura de Ciber dedicada à “Raiva” ou ao “louco” agressivo. Uma delas em terracota29, feita como um estudo, e a escultura definitiva que ficou nos portões do hospital por diversos anos. Ambas apresentam um homem forte, deitado, apoiado em um dos braços. Em ambas as esculturas30 a corrente e a força muscular evidenciam a agressividade e periculosidade deste estado.

Goya fez diversos trabalhos nos quais representou a figura do “louco”. A figura do “louco” por ele realizada e que se encontra no Coll. A. Stolin na França foi descrita por Kromm da seguinte maneira: é um

[...] louco de aparência bestial e olhos selvagens, está coberto apenas por alguns trapos. Suas mãos parecem estar atadas ou acorrentadas atrás de si e uma grade é visível no canto superior direito. As paredes da cela são escuras com sombras enquanto o louco é diretamente iluminado de uma fonte desconhecida. Sua aparência é grosseira e bruta e ele parece fazer uma careta enquanto olha ferozmente para o lado (KROMM, 1984:92)

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Escultura em terracota de Caius Gabriel Cibber, Raving Madness, c.1676. Staatliche Museum, Berlin.

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A escultura em terracota ainda assim parece conter mais elementos de descrição da agressividade como o rosto mais agressivo e a cabeça mais ereta. Na escultura em pedra a cabeça que pende para trás e as sobrancelhas caídas indicam também sofrimento

Aqui a bestialidade, o selvagem, a brutalidade, a ferocidade e a desadequação aparecem como índices importantes de descrição do “louco” o que pode se visto em outros de seus trabalhos como na figura intitulada “The Idiocy” do Álbum H, que “[...] pode estar vestindo algum tipo de camisa de força. [...] seus braços estão amarrados as suas costas e ele agacha no chão” (KROMM, 1984:92) ou na obra “Yard of Lunatics” (Fig.37) na qual entre os asilados está um “[...] prisioneiro, ou mais adequadamente, um lunático, cruza seus braços sobre seu peito e pende levemente para frente sobre suas pernas afastadas. O contorno quebrado dos seus ombros dá a impressão de que ele está vestindo uma pele de animal” (KROMM, 1984:93), o que o aproximaria da descrição atrelada ao selvagem.

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Fig.37. Francisco Goya, “Yard of Lunatics”. Dalas, Meadows Museum, 1794 Fig.38. (detalhe) Francisco Goya, “Yard of Lunatics”. Dalas, Meadows Museum, 1794

Fig.39. Goya. Louco Furioso (Coll Ian Woodner, New York)

Uma representação do Álbum G retoma a caracterização do “louco” em posse de um bastão indicando ao mesmo tempo sua agressividade e periculosidade. Esta figura “[...] tem os mesmos olhos hipotálmicos que possuem a maioria das demais figuras do “louco” produzidas por Goya. Ele segura um bastão com as duas mãos e está pronto para bater com ele” (KROMM, 1984:93).

Entre as imagens do Álbum G há uma, “Louco Furioso” que representa o “louco” visto de fora do espaço destinado aos “loucos”. Nesta está representado um

projetam através das aberturas de uma grade em treliça. Não parece que ele esteja vestido. Freneticamente desesperado, ele olha para cima enquanto fala ou se abaixa. Ele pode estar tentando escapar ou se esticando para alcançar os visitantes. Sua expressão e gestos de fúria combinam com a composição, trazem a ele a ideia de animal enjaulado como a imagem do insano, a correlação virtual à ideia de que a loucura é a regressão ao comportamento animal (KROMM, 1984:91)

Na imagem “Louco africano” também de Goya (destruído em Berlin 1945) um “louco” “[...] está dentro de sua cela próximo à grade através da qual a silhueta de uma outra pessoa é visível. Ele tem o cabelo desgrenhado, uma barba, e os olhos arregalados olham para baixo ao chão da cela. Sua roupa é improvisada e provavelmente fornecida pelo asilo” (KROMM. 1984:91). Kromm comenta que nesta séria diversas das imagens tem as mãos atrás das costas “[...] numa posição que sugere estarem amarradas ou possivelmente o uso de camisas de força” (KROMM, 1984:91), o que é evidenciado das representações que Goya faz no Álbum C, onde os prisioneiros estão geralmente explicitamente acorrentados.

Uma das ilustrações de L’hummo di Genie de Cesare Lombroso de 1917 é a representação de um insano realizada por um pederasta alcoólatra institucionalizado. Lombroso descreve a imagem como sendo representativa de um momento de ataque, os olhos revirados, o cabelo desarrumado e os braços estendidos. A imagem apresenta uma cabeça em semi-perfil, dentes a mostra, testa franzida, marcas faciais ao redor da boca. Veste uma boina por baixo da qual à altura da testa aparecem fios de cabelo. A linha dos ombros se eleva acentuadamente atrás da nuca.

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No decorrer do século XVIII a representação da loucura feminina passa por transformações31, adquirindo maior agressividade. Um exemplo desta agressividade relacionada à loucura feminina é a obra “Mad Woman” de Robert Edge Pine. Nesta uma mulher se encontra em uma cela na qual há correntes

[...] presas na parede e no pulso da mulher. Seu torso está praticamente nu, ela veste o que parece ser a pele de um animal sob o qual roupas mais claras são visíveis. Feixes de palha estão presos em seus cabelos que tem em cima e em baixo um pedaço de tecido. Sua face é longa e estreita e especial ênfase é dada a sua enorme selvagemmente arregalados olhos. Seu braço direito se estende através do seu corpo cobrindo um dos seios e com o braço esquerdo ela traz as correntes que a prendem. Reminiscente do ato de desenhar a espada, este gesto, combinado com seu medo e raiva, tem uma afinidade com as imagens dos de temperamento colérico, especialmente como foi representado por artistas dos países baixos (KROMM, 1984:81).

A representação feminina da loucura também ganha novas possibilidades. De praticamente inexistente nas representações de grupos dentro dos asilos, ela passa a ocupar lugar de destaque. Tomada de agressividades, seu corpo também se revela em novas posturas como na “Glance in an Asylum” de Bonaventura Genelle.

Em seu caráter selvagem, ligado aos instintos e à natureza. O “louco” como

selvagem também vai gerar uma série de ícones de identificação relacionados aos instintos, aos animais e à natureza. Segundo Kromm, o homem “louco” foi até o século XVII descrito primordialmente como “[...] um tipo medieval de homem selvagem que é tipicamente visto num estado regressivo sugestivo de bestialidade” (KROMM, 1984:26). Uma das origens desta aproximação é de fato o romance medieval de Ywain no qual o personagem principal, após enlouquecer por ciúme, “[...] migra através da floresta, criando medo por onde era visto” (GILMAN, 1982:2).

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Embora pouso frequente, a figura da louca, até o século XVIII, é apresentada em gestos mais melancólicos e sempre de forma erotizada, seminua, acessível à observação, sendo sua demência geralmente referente ao sofrimento por amor.

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Fig.41. “Glance in an Asylum” de Bonaventura Genelle. De uma série de gravuras publicadas em 1868 baseadas num desenho de 1850 intitulado The Life of the Artist, Kunstable, Hamburg

O “louco” como selvagem se assemelha à descrição bíblica de Nebuchadnezzar no velho testamento. Nebuchadnezzar, rei “louco” da babilônia, “[...] de diversas maneiras o antecessor de imagens posteriores da loucura, foi frequentemente representado no final do século dezoito na arte britânica. Banido da civilização em função de sinais de orgulho e idolatria, Nebuchadnezzar perambulou o pais por sete anos, e durante esse tempo ele assumiu diversas características de bestialidade” (KROMM, 1984:82). Na descrição de Gilman, Nebuchadnezzar foi “[...] conduzido aparte dos homens e comia grama e bois, e seu corpo era úmido com o orvalho dos céus, seus cabelos eram crescidos como as plumas de água, e suas unhas como garras de pássaro” (GILMAN, 1982:2).

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Fig.42. “Nebuchadnezzar” de William Blake. Gravura em cor, tinta e aquarela sobre papel. Tate Galery London, c.1795- 1805

Esta forma de representação do “louco” parece se relacionar com a ideia de fusão, aderência ou identificação deste humano à natureza ou campo dos instintos. Na figura do bobo esta relação às vezes aparece quando junto a ele é descrita uma clave e feixes de palha na cabeça. O “louco” selvagem, que vive na floresta, também esteve presente no Livro das horas32, geralmente vestido com uma roupa de folhas, barba abundante e segurando um galho ramificado na extremidade. A “[...] imagem do galho bifurcado nas imagens do homem selvagem pode apontar a implicações relacionadas ao ícone da divisão simbolizado pela letra Y na idade média” (GILMAN, 1982:11), significando as escolhas e os caminhos seguidos.

A aderência entre loucura e natureza aparece no século XIX. Odilon Redon produz em 1885 seis litogravuras intituladas Hommage a Goya, dentre as quais a prancha três tem por título “Madman in a Bleak Landscape”33. Neste trabalho, um “louco” com “[...] uma longa barba está com seus braços cruzados sobre seu peito, uma posição usada por Goya em sua representação dos “loucos”. Atrás dele há uma arvore gigante que parece estar dividida em diversas partes: à capa fluida e as pernas magras do homem parecem repetir a configuração da árvore” (KROMM, 1984:94).

Ofélia de Shakespeare foi uma personagem da peça Hamlet que no final do século XVIII e início do século XIX apresentou elementos da natureza na descrição da loucura feminina. Tão forte foi o movimento de recepção neste período que a loucura representada através de ramos, galhos secos e flores ficou definitivamente naturalizada. Embora a peça tivesse sido escrita entre 1599 e 1601 e dela se tivesse, até esta época, valorizado mais a loucura de Hamlet do que de Ofélia, no final do século XVIII a presença da mulher nos asilos e a figura feminina como atração e ameaça no Romantismo trouxe à tona a atenção a esta personagem.

As pinturas que se dedicam a Ofélia geralmente apresentam-na na cena em que se encontra defronte à Rainha e ao Rei depois da morte do pai (Cena IV,5, quando apresenta sinais de loucura) ou na situação do seu afogamento, que no texto é narrada por

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Livro de horas é um tipo de manuscrito iluminado que circulou na Europa durante a Idade Média. Cada livro de continha textos, orações, salmos e ilustrações Em sua forma original o livro de horas serviu como conteúdo de leitura litúrgica para determinados horários do dia.

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Gertrudes (Cena IV,7).

Robert Edge Pine, filho de John Pine e amigo de Hogarth, parece ter sido o primeiro a representar uma cena de loucura de Ophelia. As primeiras representações da personagem a representaram junto flores ou palha (Fig.43). De acordo com “[...] Peter Raby, a representação tradicional de Ofélia inclui o cabelo longo, um véu preto jogado no chão com flores selvagens, somados ainda com o padrão da palha no cabelo” (apud KROMM, 1984:80). O véu preto no chão foi decorrente de algumas encenações da peça na década de 20 do século XIX nas quais a atriz Harriet Smithson utilizou um véu negro como índice do luto da personagem pela morte do pai. A interpretação de Smithson parece ter gerado uma moda à la folle que consistia no uso de um véu negro, com “[...] feixes de palha elegantemente entrelaçados nos cabelos”(KROMM, 1984:80), sendo que sua performance se propagou por diversas representações a partir de então, como pode ser visto em uma gravura de Delacroix de 1834 (Fig.44).

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Fig.43. “Ophelia” de John Hamilton Mortimer, 1775