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CAPÍTULO 2 POLÍTICA CRIMINAL E PREVIDÊNCIA SOCIAL

2.1 Do bem jurídico-penal: noções iniciais

O estudo do bem jurídico tornou-se hoje um dos principais pontos de destaque na doutrina, tanto nacional quanto estrangeira. Como bem ressaltou Manuel da Costa Andrade “talvez poucas expressões sejam mais caras e ocupem mais espaço na literatura contemporânea votada à política criminal e à dogmática jurídico-penal do que a expressão bem jurídico”1.

Desde a formulação elaborada por Birnbaum, em seu artigo intitulado Ueber das Erforderniss einer Rechtsverletzung zum Begriffe des Verbrechens mit besonder Rücksicht auf den Begriff der Ehrenkränkung2 de 1834, no qual, pela primeira vez na literatura jurídico- penal abordou-se uma teoria sobre o bem jurídico-penal, a busca por uma análise político- criminal e dogmática da referida categoria penal dominou os estudiosos das mais variadas escolas penais3.

1 ANDRADE, M. C. A nova lei dos crimes contra a economia (dec.-lei nº28/84, de 20 de janeiro) à luz do conceito de bem jurídico. In: CORREIA, E. et al. Direito penal econômico e europeu: textos doutrinários. Coimbra: Coimbra, 1998, p. 389. v. I.

2 “Sobre a necessidade de uma violação ao direito para o conceito do crime com especial consideração ao conceito de injúria” (tradução livre).

3 Birnbaum defende que “constitui-se crime, imputável ao homem, segundo a natureza das coisas, a lesão ou o pôr em perigo determinado bem garantido uniformemente a todos por parte do Estado”. Birnbaum, Archiv des Criminalrechts, p.179 apud SOUZA, Paulo Vinícius Sporleder de. Bem jurídico-penal e engenharia genética

humana: contributo para a compreensão dos bens jurídicos supra-individuais. São Paulo: Revista dos Tribunais,

2004, p. 48, nota 10. Para ele, “se se quer tratar o delito como lesão, o essencial é, e ponho o acento nisso, relacionar necessariamente este conceito com a sua natureza; não com um direito, senão com um bem [...] é sempre o bem, não o direito, o que se vê diminuído” (BIRNBAUM apud HORMAZÁBAL MALARÉE, 1992, op. cit., p. 27 apud GOMES, L. F. Norma e bem jurídico no direito penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 74). A construção de Birnbaum, em que pese não se refira de forma direta ao bem jurídico, introduz na seara penal a noção de que a ofensa se dirige a um bem, e não propriamente a um direito subjetivo, como até então vinha sendo defendido pelos doutrinadores. Dessa maneira, a lesão ou o perigo afeta o bem, enquanto realidade material, bem esse que vem amparada pelo direito.

Para Birnbaum a questão decisiva reside no fato da tutela penal objetivar a defesa de um bem existente no mundo do ser (da realidade), ou seja, protege-se um objeto material importante para o ser humano diante da possibilidade de uma ação delitiva4. Ao substituir como objeto da tutela penal a noção de direitos subjetivos pela idéia de bem, essa construção possui como conseqüência a proteção, por meio da tutela estatal, de bens jurídicos. Esse pensamento, como se observou no decorrer do desenvolvimento histórico, serviu de base para construções mais precisas e científicas acerca do bem jurídico, notadamente por Liszt e Binding5.

4 No mesmo sentido discorre Paulo Vinícius Sporleder de Souza, para quem Birnbaum procura “[...]

fundamentalmente, identificar critérios materiais e definir objetivamente o que na realidade é ofendido por uma ação delitiva qualquer. Contestando a abstração teórica tendente à categoria genérica dos direitos subjetivos, que propugnava o crime como violação de direitos subjetivos, afirma Birnbaum que os comportamentos delitivos não afetavam direitos senão bens; o objeto jurídico da tutela jurídico-penal corresponderia, portanto, à ofensa de um bem e não à violação do direito subjetivo de outrem, direito este centrado precipuamente nas relações humanas reconhecidas juridicamente. Neste sentido, há uma transformação de ofensas pessoais-subjetivas para ofensas de ‘coisas exteriores’. Todavia, não se encontra na obra de Birnbaum nenhuma definição precisa do exato

significado de ‘bem’ como objeto da ofensa, motivo pelo qual era preciso deduzir-se tal compreensão de forma tácita” (SOUZA, 2004, op. cit., p. 49).

5 Evandro Pelarin observa que isso se deu em virtude de sua referência sistêmico-social e visão intra-sistemática e acrítica, fazendo-o depender da norma (PELARIN, E. Bem jurídico-penal: um debate sobre a

descriminalização. São Paulo: IBCCRIM, 2002, p. 57). Em sentido oposto Paulo V. S. de Souza assevera que “como ele (Birnbaum) afirma: ‘Pertence à essência do poder do Estado garantir, por igual, a fruição de certos bens a todos os homens que nele vivem’. Podemos concluir que Birnbaum procura de certa forma estabelecer uma concepção de bem jurídico para além do sistema jurídico e, por isso, crítica, todavia assentada em fundamentos jusnaturalistas” (SOUZA, 2004, op. cit., p. 54). Segundo Luiz F. Gomes, duas direções metodológicas apareceram no âmbito do positivismo: (i) o jusnaturalismo positivista de Binding e; (ii) o

positivismo naturalista de Liszt. Em conseqüência, a indagação passou a residir na solução entre buscar-se o bem jurídico na realidade social ou tê-lo como produto do direito positivo, decorrente da vontade exclusiva do legislador (GOMES, 2002, op. cit., p. 76-77). Com a publicação de “Die Normen” (“As normas” – tradução livre) de Karl Binding, em 1872, a formulação sugerida por Birnbaum reforça-se de conceitos técnicos e precisos, adquirindo nítido traço normativo, quanto ao conteúdo, bem como precisão terminológica e conceitual (SOUZA, 2004, op. cit., p. 55). Para Binding o bem digno de proteção legal depende do juízo de valor

estabelecido pelo legislador. É este quem elegerá a atuação protetiva do Direito Penal sobre determinado bem ou interesse. Assim, para Binding, fica excluída a possibilidade de identificação de bens suscetíveis a danos antes do seu enquadramento pelo legislador. É a este que caberá sentir a necessidade de intervenção penal ante a possibilidade de danosidade social.

Binding adota um posicionamento exacerbadamente legalista, na medida em que identifica bem jurídico-penal com os objetos considerados valiosos pelo legislador, ou seja, somente será considerado bem jurídico-penal aqueles bens que encontrarem respaldo no ordenamento jurídico positivo, representado por uma relação de absoluta congruência entre a norma e o objeto de tutela, sendo que somente a norma será considerada fonte reveladora dos bens jurídico-penais6.

Verifica-se, assim, que o pensamento de Binding caracteriza-se pela construção de uma noção de bem jurídico-penal intra-sistemática e acrítica, posto competir, em caráter exclusivo, à lei a incumbência de eleger os bens jurídicos a proteger7. Tal construção propiciou o desenvolvimento de teorias reducionistas da noção de bem jurídico-penal, criando o terreno fértil para sua utilização, por exemplo, pela doutrina nacional-socialista alemã, segundo a qual o delito consistia em uma traição ao povo, uma infração de deveres, afastando qualquer indagação quanto a efetiva lesão ao bem jurídico, ou seja, não perquirindo da danosidade material8.

Franz von Liszt, por sua vez, ao conceber em seu sistema a noção de bem jurídico, ao invés de partir de uma conceituação positivista, em que a atuação protetiva do Direito Penal dependeria da vontade do legislador, entende existir uma situação pré-jurídica, onde se identifica a dignidade penal do bem ou do interesse. Sua construção possui caráter de reação contrária ao tratamento científico formal da norma conferido por Binding, mediante o desenvolvimento de uma teoria na qual se erige uma dimensão material do injusto penal, bem como se vislumbra o bem jurídico-penal como limitador da ação do legislador9.

6 SOUZA, 2004, op. cit., p. 57. A lei penal estabelece quais são os delitos puníveis e como deverá ser graduada a respectiva pena. Já a norma cria o direito a sujeição, que pode ser concretizado de duas formas: a constrição ao cumprimento (constrição física) e a constrição assecuratória (constrição psicológica). Pode-se, pois, concluir que os bens jurídicos para o sistema de Binding são os “deveres de obediência e sujeição“, os quais não se encontram na lei penal, mas sim na norma jurídica. É certo que, conforme dito acima, a norma precede ao bem jurídico, ressaltando-se que o que motiva a proteção são os efeitos do ato, ou seja, qual o valor social que ele envolve. No mesmo sentido, Luiz Regis Prado assevera que o bem jurídico para Binding “[...] vem a ser a garantia das expectativas normativas principais contra a sua fraude” (PRADO, L. R. Bem jurídico-penal e constituição. 3. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 33).

7 Maria C. F. da Cunha leciona que o conceito de bem jurídico-penal de Binding “abandona qualquer pretensão de legitimação material, de limite à liberdade criminalizadora/descriminalizadora do legislador, qualquer função orientadora e crítica [...] Para Binding não há direitos inatos, são sempre criados pela lei, atribuídos e não simplesmente reconhecidos” (CUNHA, M. C. F. Constituição e crime: uma perspectiva da criminalização e da descriminalização. Porto: Universidade Católica Portuguesa, 1995, p. 51. (Estudos e monografia)).

8 PELARIN, 2002,op. cit., p. 67. Luiz F. Gomes também destaca que “essa concepção, ainda que com sensíveis nuances, está presente até hoje na configuração da política criminal praticada pelos Estados que se caracterizam não só pela liberdade com que contam de selecionar o valor ou o interesse objeto da tutela, senão, sobretudo, pela abstração tendencional da pessoa humana como centro de desenvolvimento do Direito penal. É, por conseguinte, uma concepção abstracionista e tendencialmente autoritária” (GOMES, 2004, op. cit., p. 77). 9 PRADO, 2003, op. cit., p. 35.

Nesse passo, os bens e interesses antes de serem categorizados como tais pelo ato frio e pragmático do legislador, são eleitos pelo homem integrado em sociedade. Tratam-se, pois, de requisitos essenciais ao homem ou à comunidade. Os bens jurídicos são, assim, criações da própria vida, que o direito encontra e a que assegura proteção jurídica, isto é, consubstanciam-se em interesses juridicamente protegidos10.

10 Nesse ponto merece destaque a observação de Paulo V. Sporleder, para quem “enquanto a virada de Birnbaum pode ser qualificada como uma ‘revolução cega’, por ter sido operada em nível predominantemente político- criminal dogmático, a teoria de Liszt, ao ter-lhe ‘dado olhos’, eleva agora aquela categoria também a um patamar superior-extra-sistemático, transformando o bem jurídico-penal em verdadeiro conteúdo da política criminal legislativo-dogmática, significando um fundamental critério legitimante da atividade legislativa do poder de punir” (SOUZA, 2004, op. cit., p. 65). Questão não resolvida por Liszt, todavia, diz respeito à definição dos critérios para eleição dos interesses vitais dignos de proteção e, por conseqüência, de elevação à categoria de bem jurídico-penal, o que o torna, de qualquer modo, afeito a um juízo de valor do Estado. Maria C. F. da Cunha assinala que “em relação a Liszt o problema colocar-se-á na falta de apresentação de um critério mais preciso que permita individualizar quais os concretos ‘interesses da vida dos homens’ que deverão ser qualificados como bens jurídico-penais e quais aqueles que não merecem tal qualificação ou não carecem de tal protecção [...] Assim, a sua concepção fornecerá um critério teoricamente válido, mas carecido de concretização” (CUNHA apud PELARIN, 2002, op. cit., p. 60, nota 70). Luiz Flávio Gomes, por sua vez, afirma que “se para Binding o conceito de bem jurídico é exclusivamente jurídico, uma criação livre do legislador (intra-sistemático), para Von Liszt não existiria essa liberdade absoluta porque o interesse vital que o Direito transforma em bem jurídico está presente nas relações sociais. De qualquer modo, como cabe à norma a missão de elevar o bem da vida à condição de bem jurídico, não há dúvida de que se está diante de um juízo de valor do Estado. A tese de Von Liszt, por isso, como conclui Hormazábal Malarée, ‘conduz, ainda que por uma via oblíqua, objetivamente, à mesma situação que a de Binding quanto ao objeto de proteção do Direito penal [...] O Estado, conforme a tais teses, constitui-se no árbitro absoluto regulador da conduta dos indivíduos e no conformador e defensor de um modelo social’” (GOMES, 2002, op. cit., p. 78). Pelarin ainda adverte que “o não escalonamento de quais os bens fundamentais a serem apanhados pelo direito penal, ou a falta de critérios dessa seleção, pode ser visto como a falha das concepções positivistas, que, na extremidade do legalismo, leva à autorização desmedida da criminalização, pois interessa apenas a vontade do legislador, ainda que sem compatibilidade com os bens carentes de proteção” (PELARIN, 2002, op. cit., p. 84).

No início do século XX, surgem as orientações espiritualistas que, influenciadas pela filosofia neokantiana, desenvolveram no âmbito penal a concepção metodológica ou teleológico-metodológica de bem jurídico11.

O bem jurídico penalmente protegido para os neokantistas consiste nos próprios valores. A norma existe por referência a um valor, valor esse que a norma visa tutelar. Desse modo, o bem jurídico para o Direito Penal neoclássico é uma realidade externa ao Direito Positivo, representada pelos próprios valores metajurídicos, enquanto valores abstratos e ideais da ordem social, os quais são juridicamente protegidos por uma norma legal. É, pois, uma concepção teleológico-metodológica12.

Luiz Flávio Gomes recorda que como conseqüência tanto do positivismo acrítico (legalista), quanto do relativismo típico do neokantismo, tornou-se concreta a instrumentalização política do bem jurídico, o qual não somente vem a perder totalmente sua capacidade limitadora do ius puniendi, bem como progressivamente vai se esvaziando, porquanto os objetos da proteção penal não existem em si, senão enquanto produtos de um pensamento jurídico específico13.

11 PRADO, 2003, op. cit., p. 36-37. O neokantismo basicamente se desenvolveu em duas grandes escolas filosóficas. Uma, a de Marburgo, fundada principalmente na Crítica da Razão Pura de Kant, de caráter acentuadamente lógico, representada por H. Cohen (1842-1918), P. Natorp (1854-1924) e R. Stammler (1865- 1938). Outra, a de Baden ou Escola Sudocidental Alemã, fundada principalmente na Crítica da Razão Prática de Kant, inspiradora da Filosofia dos Valores, representada por W. Windelband (1848-1915), H. Rickert (1863- 1936), E. Lask (1875-1915), H. Münsterberg (1863-1916) e B. Bauch (1877-1942). A Escola de Marburgo acerca-se mais do racionalismo, pois que deduz da forma do conhecimento toda a sua matéria e não admite, portanto, nada alógico ou pré-lógico; a Escola de Baden está mais próxima do realismo, posto que entende que o conhecimento não cria, arrancando-os de si mesmo, os objetos, mas os reconhece como são objetivamente postulados. Entretanto, o objetivo, o transcendente não é um ser, uma realidade, mas um dever ser, um valor. Do sujeito individual depende unicamente o ato de reconhecimento deste objeto, não seu valor. O pensamento neokantista possui três características básicas. Em primeiro lugar, com o neokantismo as ciências culturais passaram a possuir um método próprio, referido a valores, passando a ser relevante não o objeto em si, mas sua valoração, o que torna igualmente importante a análise do sujeito dessa valoração (orientação a valores). Em segundo, o neokantismo, embora institua como método a referência a valores, não define quais seriam esses valores, possibilitando que qualquer axioma (valor) fosse utilizado para se chegar à conceituação de Direito (relativismo axiológico). Por fim, o neokantismo fixou a distinção entre dois métodos, um para as ciências da natureza (método naturalista-causal) e outro para as ciências culturais (método valorativo), caracterizando um dualismo metodológico. Contudo, os neokantistas viam essa distinção de forma estanque, não sendo possível para eles a inter-relação entre esses dois métodos, ou seja, para as ciências da natureza só seria possível a utilização do método causal (naturalista) e, para as ciências culturais, só o método valorativo.

12 Outra idéia fundamental iniciada com o neokantismo é a idéia do bem jurídico vinculado. Partindo desta concepção, somente pode ocorrer um reconhecimento de um bem jurídico a partir das finalidades a que ele é chamado a cumprir. Assim, bem jurídico passa a ser compreendido como aquilo que busca uma determinada finalidade, a qual constitui um valor. “Conforme a diretriz do neokantismo, é o bem jurídico entendido como um valor cultural, sendo que ‘sua característica básica é, pois, a referência do delito ao mundo do ‘valorativo’, em vez de situá-lo diretamente no terreno do ‘social’. Procura-se vinculá-lo à ratio legis da norma jurídica – no sentido teleológico de cada tipo penal – o que acaba por convertê-lo em um simples método interpretativo. A essência da noção de bem jurídico tutelado deriva, de modo necessário, dos limites da descrição legal respectiva e não reside na natureza dos bens e valores que a determinaram” (Ibid., p. 37-38).

Nesse cenário insere-se a construção teórica inscrita na obra Die Einwilligung des Verletzten, de 1919, de autoria de Honig, que passa a conceber o bem jurídico-penal como simples produto do reflexo jurídico, melhor, como originário da norma, se mesclando à própria razão de ser desta14. Desse modo, “o conceito de bem jurídico não tem existência prévia à das próprias prescrições penais, não se confundindo com os substratos da realidade em que os valores poderão assentar; a sua origem é normativa”15.

14 Manuel da Costa Andrade destaca que “o bem jurídico converte-se, assim, numa categoria omnicompreensiva

à qual se reconduzem todos os elementos relevantes da factualidade típica, inclusive as modalidades de acção e as atitudes pessoais do agente. A esta concepção de bem jurídico extremamente espiritualizado e juridificado no sentido imanente ao (e decorrente do) direito positivo se associam para além de HONIG, autores como

HEGLER, GRÜNHUT, SCHWINGE, ZIMMERL, RADBRUCH, etc., e, entre nós, EDUARDO CORREIA. Em síntese, segundo a formulação de HONIG, o bem jurídico é o ‘fim reconhecido pelo legislador nas prescrições penais na sua formulação mais breve’, ‘aquela síntese categorial com a qual o pensamento jurídico tenta captar o sentido e o fim das singulares prescrições penais’. E acrescenta: ‘Mas precisamente porque síntese, o objecto da tutela é apenas um produto da reflexão especificamente jurídica. Isto é: os objectos da tutela não existem como tais, só ganham vida no momento em que nós consideramos os valores da comunidade como objecto do escopo das disposições penais’” (ANDRADE, 1998, op. cit., p. 392-393).

15 CUNHA apud PELARIN, 2002, op. cit., p. 79. Em decorrência dessa construção, tem-se um esvaziamento do conteúdo do bem jurídico-penal, o qual passa a ser mero reflexo normativo, deixando de atuar como barreira- limite à criminalização, isto é, como regulamentador do poder punitivo estatal, estando livre de qualquer fundamento exterior. “Tal concepção acaba por renunciar a qualquer possibilidade crítica de cunho trans ou extra-sistemático no sentido de estabelecer limites ao poder legislativo-punitivo [...] Por novamente tornar-se intra-sistemático, o conceito perde sua ligação com a política criminal legislativo-dogmática sendo insuficiente assim para ser visto ‘como padrão crítico de aferição da legitimidade de criminalização’” (SOUZA, 2004, op. cit., p. 67-68). Luiz Flávio Gomes assinala que “a noção de bem jurídico, nesse período, resulta ‘espiritualizada’ ou ‘volatilizada’. É supérflua porque o bem jurídico já não revela a essência do delito, seu substractum, senão exclusivamente a ratio da lei. O conceito mesmo de delito se transforma para ser concebido como mera lesão à norma ou violação de um dever. O que importa, nesta concepção, não é o que está na essência da norma (o bem jurídico protegido), senão a vigência (formal) da própria norma” (GOMES, 2002, op. cit., p. 79-80). “O bem jurídico adquire caráter finalístico, surgindo por uma indagação teleológica em torno da norma incriminadora” (FRAGOSO apud SOUZA, 2004, op. cit., p. 66.

Terminada a Segunda Grande Guerra Mundial e abaladas as bases de sua estrutura jurídica, constituída pelo positivismo e pelo neokantismo, abrem-se as portas para que na teoria do injusto se proceda a uma profunda revolução, mediante o acolhimento da teoria finalista16.

Toda a estrutura da teoria finalista possui como fundamentos as abordagens fenomenológicas e ontológicas. Assim, o sistema finalista tenta superar o dualismo metodológico do neokantismo, negando o axioma sobre o qual ele assenta: o de que entre ser e dever ser existe um abismo impossível de ultrapassar.

Welzel desenvolve a teoria finalista, que estabelece uma teoria da tutela penal baseada em critérios (valores) de natureza ético-social, valores elementares que se originam “na consciência jurídica existente formando o substrato ético-social positivo das normas jurídico-penais, cuja incumbência reside, portanto, na garantia do respeito a tais valores” 17.

Segundo Welzel,

[...] a missão primária do direito penal não é o amparo presente dos bens jurídicos; isto é, o amparo da pessoa individual, da propriedade e outros, pois é ali, precisamente, aonde, por regra geral, chega a sua ação tarde demais. Principalmente do amparo dos bens jurídicos individuais concretos está a missão de assegurar a real validade (a observância) dos valores do atuar ou agir segundo o pensamento jurídico. Eles constituem o mais sólido fundamento sobre os quais se apóia o Estado e a sociedade. O simples amparo de bens jurídicos somente tem uma finalidade negativo-preventiva, policial-preventiva. Em compensação, o papel mais profundo que exerce o