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CAPÍTULO 2 POLÍTICA CRIMINAL E PREVIDÊNCIA SOCIAL

2.4 Síntese conclusiva

Considerando, pois, todo o acima exposto, isto é, a construção dos critérios político-criminais (e os princípios deles decorrentes) legitimadores da intervenção penal, cabe mencionar que os mesmos, embora ainda não representem critérios positivos para a eleição dos bens jurídicos merecedores a necessitados de uma tutela penal (aptos a permitir a elaboração de um rol exaustivo de bens a serem tutelados pelo Direito Penal), consubstanciam-se em legítimos critérios negativos (indicadores das condutas que não merecem ser tuteladas pela esfera penal)94.

Ditos critérios negativos funcionam, em verdade, como parâmetros de deslegitimação (muito mais que de fundamentação) no processo de escolha dos bens jurídico- penais, atuando como limites ao legislador e conferindo ao intérprete a possibilidade de alegar ser ilegítima determinada tipificação por ofensa a estes critérios.

Assim, os critérios político-criminais ora delineados devem nortear as opções legislativas, bem como devem acompanhar todo o processo de interpretação e aplicação legal, possibilitando que não ocorra um afastamento das categorias de dignidade e carência de tutela penal no plano da concretização do tipo penal95.

Cabe, nesse particular, asseverar que grande parte da doutrina converge em torno de algumas premissas antes formuladas, as quais são sinteticamente apontadas: (i) a missão do Direito Penal em um Estado constitucional e democrático de direito é a de proteção de bens

94 Luiz Flávio Gomes assevera que "[...] ainda que o conceito em questão não possa cumprir o milagre ou a mágica de oferecer uma completa e indiscutível enumeração (uma lista fechada) dos bens jurídicos (função positiva, numerus clausus), seria um grande equívoco supor ou afirmar sua inutilidade ou absoluta ineficácia político-criminal, porque, diante do legislador, é certo que pode cumprir dois papéis (duas funções ou dois limites) muito relevantes: (a) o primeiro é de natureza indicativa, é dizer, em decorrência do princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos, hoje se reconhece (indicativamente) que somente os bens existenciais (individuais ou supra-individuais) mais importantes para o ser humano, é dizer, os que são indispensáveis para o desenvolvimento da sua personalidade merecem ser contemplados em uma norma como objeto de proteção (e, por conseguinte, da ofensa) penal; b) o segundo é de caráter negativo, no sentido de que estamos em condições de afirmar, com boa margem de segurança, ao menos quais bens não podem ser convertidos em objeto da tutela (e da ofensa) penal: a moral, a ética, a religião, a ideologia, os valores culturais como tais etc." (GOMES, 2002, op. cit., p. 55).

95 No mesmo sentido Yuri Carneiro Coelho, para quem “este juízo, de proteção de bens jurídicos considerados fundamentais à convivência pacífica da sociedade, é delegado ao legislador em um primeiro momento, quando este avaliará se a conduta que pretende criminalizar terá por função a proteção de um bem jurídico,

representativo de um valor constitucional relevante, e se, naquele momento, revela-se adequada a utilização da tutela penal daquele bem jurídico. Igualmente importante será a análise sistemática a ser efetivada pelo poder judiciário, ao se deparar com o tipo penal analisando se o bem jurídico tutelado no corpo daquele tipo penal tem dignidade constitucional suficiente para ser considerado legítimo e não violar o princípio da liberdade e do respeito à dignidade da pessoa humana, como núcleo fundamental do Estado Democrático de Direito” (COELHO, 2003, op. cit., p. 107-108).

jurídicos e não a tutela da moral96, da ética, da religião, de uma determinada ideologia ou subcultura, cabendo ao Estado tolerá-las e respeitá-las; (ii) que o princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos deve cumprir tanto uma função político-criminal (de lege ferenda) como dogmática (de lege lata); que constitui um limite ao legislador assim como ao intérprete e aplicador da lei; (iii) que sua função não é exercida só de forma indicativa (orientativa), senão sobretudo de modo negativo; (iv) que a Constituição e os princípios da ofensividade e intervenção mínima configuram importantes limitações negativas que não podem ser extrapoladas pelo legislador97.

Resta assente, desse modo, que nem todo bem jurídico exige proteção penal, mas apenas aqueles que forem considerados dignos penalmente. Também há que se observar que a conduta a ser criminalizada tem de ofender, de modo a causar um grave dano social, o bem jurídico penalmente tutelado. Por fim, se impõe que a tutela seja necessária, não se mostrando suficientes outros meios de defesa menos agressivos. Ainda, deve a tutela penal mostrar-se adequada e suficiente.

96 Alice Bianchini, citando Mir Puig, assinala que isso não significa que os bens jurídicos não possam ser bens morais, "mas exige que tenham algo mais que os façam merecedores de proteção jurídico-penal" (PUIG, 1996 apud BIANCHINI, 2002, op. cit., p. 35).

97 GOMES, 2002, op. cit., p. 59-60. Marcelo R. da Silva destaca que "[...] o bem jurídico serve, quando menos, para dar forma e conteúdo ao tipo criminal, e também para sistematizá-lo de maneira concatenada e organizada dentro dos estatutos penais. Porém não é só. Não podemos olvidar sua função hermenêutica, conferindo substrato imprescindível à interpretação teleológica da norma [...] A mera identificação formal entre a conduta abstrata (prevista na lei) e a real (efetivamente praticada) não basta ao perfazimento do crime. O bem jurídico é ponto de partida obrigatório tanto ao legislador, ao elaborar a norma, quanto ao operador do Direito, ao aplicá-la; é o que efetivamente os ata enquanto equacionadores das divergências eclodidas no seio da comunidade, sob pena da mais completa e absoluta subversão dos sistemas social e legal” (SILVA, M. R. Fundamentos

constitucionais da exclusão da tipicidade penal. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 11, p. 173-174, out./dez. 2003). Yuri C. Coelho, por sua vez, afirma que “o princípio da intervenção mínima estabelece que o direito penal só deve atuar quando for necessária a proteção de bens jurídicos considerados fundamentais à convivência pacífica em sociedade e somente quando formas menos gravosas de intervenção não sejam

suficientes para evitar a lesão ao bem jurídico [...] ocorre que a necessidade de intervenção penal apenas nestas circunstâncias se faz necessária, em face da possibilidade de incorrermos no grave erro de transformar o direito penal em um instrumental apenas simbólico” (COELHO, 2003, op. cit., p. 113).

Ainda, em que pese existir um relativo consenso sobre ser o fim do Direito Penal a proteção de bens jurídicos, tal assertiva ainda repousa, não obstante todos os critérios acima delineados, em fundamentos inseguros. Desse modo, a busca por uma materialização da teoria do delito e do próprio bem jurídico consiste atualmente em um dos problemas ainda não solucionados do Direito Penal98.

Na tentativa, pois, de contribuir para esse debate, será analisada no próximo capítulo a figura típica descrita no artigo 168-A, § 1º, inciso I, do Código Penal, objetivando sua efetiva materialização, isto é, sua inserção nos paradigmas da nova teoria do delito sob o prisma da proteção de bens jurídicos essencialmente relevantes.

Tendo por certo que o bem jurídico Previdência Social99 se mostra relevante, uma vez que, apenas para demonstrar sua essencialidade, no ano de 2005 foi dependido com o pagamento de benefícios pela Previdência Social o total de R$146.010.130.000,00 (cento e quarenta e seis bilhões, dez milhões, cento e trinta mil reais) e apenas em junho de 2006 foram gastos R$12.430.879.000,00 (doze bilhões, quatrocentos e trinta milhões e oitocentos e setenta e nove mil reais) para a manutenção de 24.036.145 (vinte e quatro milhões, trinta e seis mil e cento e quarenta e cinco) de benefícios100, será analisado se e em quais circunstâncias a tutela penal se mostra autorizada e legítima, de modo a se verificar se a figura

98 L. R. Prado assevera que "[...] os bens jurídicos devem ser suscetíveis de concretização [...] a concretização deve ser tida como um critério de criminalização que alude antes à necessidade de que a distância prospectiva entre o comportamento incriminado e o interesse final tutelado não seja tão ampla de molde a impedir de revelar este último na concretude do primeiro" (PRADO, 2003, op. cit., p. 103). Márcia D. L. de Carvalho, por sua vez, defende que “se [...] o conteúdo da tipicidade é o bem jurídico, se só a partir dele se pode dar um conteúdo ao injusto, ele se torna, então, o ponto de união entre dogmática e política criminal, isto é, entre teoria do delito e realidade social. Ao lado de sua função garantidora, indicando o que e por que se protege e por isto se sanciona, apresenta uma função material, qual seja, a de fornecer conteúdo ao injusto, isto é, à tipicidade e à

antijuridicidade” (CARVALHO, M. D. Fundamentação constitucional do direito penal. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1992. p. 35). F. Munõz Conde, em estudo sobre os princípios político-criminais que

fundamentam os delitos socioeconômicos, afirma que "mi conclusión fundamental es que el Derecho Penal Económico es, sin duda, una parte importante del moderno Derecho Penal y quizás una de las que tenga más futuro, pero mientras no se demuestre lo contrario, son las categorías y principios generales del Derecho Penal en su conjunto las que deben emplearse para resolver sus problemas. Una vez más, el rigor de una buena Dogmática orientada polícitocriminalmente a las consecuencias puede ser más fructífera que muchas reformas coyunturales que atrapadas por el signo de la época intentan dar respuestas puntuales a problemas que no son problemas específicos de hoy, sino de ayer, de mañana y de todos los tiempos” (MUÑOZ CONDE, F. Principios politicocriminales que inspiran el tratamiento de los delitos contra el orden socioeconômico en el proyecto de código penal espãnol de 1994. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 11, p. 20, jul./set. 1995). A. Copetti também analisa o problema, concluindo que "numa perspectiva acrítica e conservadora, a dogmática tradicional tem criado sérios problemas à concretização da teoria do bem jurídico dentro dos parâmetros do Estado Democrático de Direito, e, por conseqüência, à própria pragmatização do direito penal vigente, ao buscar constantemente um critério positivo de identificação dos bens jurídicos que demandam a proteção penal, atendendo a um modelo da filosofia ontológica de busca de legitimação apriorística das proibições e sanções” (COPETTI, 2000, op. cit., p. 103).

99 Assertiva que será melhor enfrentada no item 3.1.1.

100 Dados obtidos em consulta ao Boletim Estatístico da Previdência Social (BEPS) de junho de 2006 (BRASIL. Ministério da Previdência Social. Boletim Estatístico. Jun. 2006. Disponível em:

delitiva prevista no artigo 168-A, § 1o, inciso I, do Código Penal atende aos critérios político- criminais acima delineados101.

101 Denota-se aqui, de modo inequívoco, a correlação da pesquisa com a área de concentração do curso de mestrado (Direito Obrigacional Público e Privado), sob dois aspectos essenciais: a) direito à segurança social, no qual se insere a Previdência Social, por meio do qual o Estado se vê obrigado a estabelecer condições sociais mínimas para uma digna manutenção dos indivíduos e suas famílias (obrigação do Estado – público); b) compatibilização do delito de apropriação indébita previdenciária (espécie do gênero direito penal tributário) com a função legitimadora do bem jurídico-penal, mediante a aplicação dos critérios político-criminais de dignidade penal e carência de tutela penal, com vistas a diferenciá-lo do ilícito fiscal, caracterizado pelo descumprimento pelo contribuinte de uma obrigação fiscal imposta pela legislação extra-penal (obrigação do particular/contribuinte – privado).

CAPÍTULO 3 DA TIPICIDADE MATERIAL DO DELITO DE