2.3 Principais teses de Lutero e suas repercussões
2.3.1 Justificação pela fé
A doutrina da Justificação pela fé destaca-se entre os assuntos defendidos e debatidos
por Lutero e sempre esteve presente em toda a sua trajetória religiosa, angustiando-o na sua
busca pelo entendimento da vida cristã. Segundo Timothy George (1993, p. 64), “o
protestantismo nasceu da luta pela doutrina da justificação pela fé somente. Para Lutero, essa
não era simplesmente uma doutrina entre outras, mas ‘o resumo de toda a doutrina
cristã’[...]”; Quentin Skinner (1996, p. 290) chega a considerar que nessa doutrina da
justificação sola fide reside o cerne da teologia de Lutero.
Essa doutrina é baseada no versículo escrito na carta do apóstolo Paulo12
aos
Romanos, que diz: “Visto que a justiça de Deus se revela no evangelho, de fé em fé, como
está escrito: O justo viverá por fé13
”, e é desenvolvida ao longo de sua vida. Autores que
12 O apóstolo Paulo nasceu em Tarso (cidade da Cilícia, atual Turquia) e foi educado por Gamaliel “segundo a
exatidão da lei dos seus antepassados” (Atos 22:3). Após um período de perseguição à igreja, ele se converte perto de Damasco e inicia seu trabalho missionário. Há consenso sobre sua autoria em vários livros da Bíblia, como as cartas aos: Romanos; Coríntios (1ª e 2ª epístola); Gálatas; Efésios; Filipenses; Colossenses;
Tessalonicenses (1ª e 2ª epístola); Timóteo (1ª e 2ª epístola); Tito e Filemom (Bíblia de Estudos Genebra, 1999, p.1665). Lutero debruça-se em um estudo profundo da teoria paulina, afirmando serem as cartas de Paulo as que melhor apresentam a essência da vida cristã.
escrevem a biografia de Lutero relatam que a reflexão sobre esse texto bíblico sempre o
acompanhou, desde a época em que se preparava para o sacerdócio. Contudo, ele não a
estabeleceu rapidamente, mas ela “desenvolveu-se ao longo de anos, sendo influenciada por
várias correntes de pensamento na baixa Idade Média e passando por diversas mudanças
fundamentais” (GEORGE, 1993, p.70).
Mediante a fé o homem estabeleceria um relacionamento direto com Deus, seria
elevado a Deus. De acordo com Lucien Febvre (1976, p. 62), essa formulação da justificação
pela fé,
[...] de aparência inerte, vemos na verdade o que ela encerra de energia e de dinamismo. Vemos o que ela contém, em potência, de alegre confiança, de entusiasmo, de invencível segurança; vemos nas vésperas dos acontecimentos de 1517 o que ela exprimia para um Martinho Lutero: a convicção de ter Deus por ele, com ele, e nele [...].
Entre as idéias e linhas de influências que mudaram o pensamento de Lutero, ao longo
dos anos, sobre a justificação somente pela fé, de acordo com Timothy George (1993)
destacam-se: o nominalismo14
; o misticismo alemão15
e os escritos de Santo Agostinho16
,
teorias que, conforme o desenvolvimento de seus estudos e reflexões, acabou por descartar até
14
Nominalismo: atitude filosófica que admite que nenhuma substância metafísica se esconde por trás das palavras: as pretensas essências nada são além de palavras sou signos que representam coisas sempre singulares (DUROZOI, G.; ROUSSEL, A. Dicionário de Filosofia). “A ruptura de Lutero com os conceitos nominalistas de mérito e graça constituiu passo fundamental no desenvolvimento de sua doutrina da justificação” (George, 1993, p.6-8)
15
Misticismo: atitude ou doutrina segundo a qual existe uma ordem de realidades sobrenaturais que só podem ser alcançadas por uma intuição alheia à experiência sensível e ao conhecimento racional. Foi possível observar que a experiência mística se multiplica em particular nos momentos de crise – econômica e cultural – favoráveis a um individualismo em que cada um busca por si mesmo seu próprio caminho de salvação. (DUROZOI, G.; ROUSSEL, A. Dicionário de Filosofia). “Durante algum tempo, Lutero abraçou a doutrina mística da synteresis
Gewissen, consciência, a essência básica da alma (Seelenabgrund) que era a base antropológica da união mística.
(...) Todavia, à medida que aumentava a conscientização de Lutero acerca da completa incapacidade do pecador salvar-se a si mesmo ou de manter qualquer postura justa perante Deus, ele passou a questionar a noção de
synteresis. (...) Mesmo tendo Lutero continuado a usar certos termos místicos em sermões e comentários
posteriores, sua rejeição da doutrina da synteresis foi um passo decisivo em direção ao seu novo entendimento da justificação.” (George, 1993, p. 69-70)
16 A mais importante das transformações do pensamento de Lutero sobre a justificação “envolveu a redefinição
da justificação numa estrutura não-agostiniana. (...) Lutero avaliou sua postura definitiva quanto à justificação
vis-à-vis Agostinho dessa forma: ‘Agostinho chegou mais perto do sentido Paulino do que todos os estudiosos,
mas não alcançou Paulo. No começo eu devorava Agostinho, mas quando a porta para Paulo abriu-se e entendi o que era realmente a justificação pela fé, descartei-o’.” (Idem, p. 70)
chegar à conclusão final de sua doutrina de que somente a fé justifica (Sola fides justifiate),
idéia que se tornou central em seu pensamento.
Da crença nessa doutrina provém todo o seu combate e posição contrária às
indulgências e às boas obras como pré-requisito para a salvação e também à ação dos padres
como mediadores entre o fiel e Deus. A certeza de que somente pela fé alguém poderia ser
justificado foi de encontro às práticas e interesses da Igreja, ou seja, “a doutrina da
justificação caiu como bomba na paisagem teológica do catolicismo medieval. Ela arrasou
toda a teologia dos méritos e, na verdade, a base penitencial-sacramental da própria igreja”
(GEORGE, 1993, p.73).
Afinal, como concluiu Geoffrey Elton (1982, p. 15), “se a justificação do homem
dependia exclusivamente da infusão da Graça de Deus na alma do crente, não havia
necessidade dum clero, único capaz de desempenhar atos sacramentais, através dos quais
(como a Igreja ensinava) se abria a via para a entrada da Graça no homem”.
Em relação às boas obras, Lutero defende que de nenhuma maneira alguém pode ser
justificado por elas, mas que elas devem vir sempre acompanhadas da fé, sendo, pois, o fruto
do que caracteriza a própria justificação pela fé.
Dessa maneira, o homem poderia obter a salvação somente pela fé, sendo suas
próprias obras – seja oração, jejum, mortificação ou obras de caridade – insuficientes para
alcançar a justificação que dependia de uma entrega pessoal à mensagem do que ele chamava
de Palavra de Deus.
Além disso, como ressalta Marc Lienhard (1998, p. 198), o tema da justificação pela fé
apresentou conseqüências evidentes na forma de se abordar os problemas socais e na própria
concepção de engajamento do cristão, pois, já que a perfeição consiste na fé, todos os