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Juventude: diálogos entre unidade e diversidade, situação e representação

CAPÍTULO 1: A CONSTRUÇÃO DO ESTUDO DE CASO

1.3 Aportes teóricos iniciais

1.3.1 Juventude: diálogos entre unidade e diversidade, situação e representação

Muito já foi dito e dentro do que foi dito, conforme vimos na introdução deste estudo, encontra-se uma enorme polifonia e diferentes caminhos para se penetrar nesse denso e complexo território.

Para Debert (2000), o modo como a vida é periodizada e o tipo de sensibilidade investida na relação entre as diferentes faixas etárias são, na antropologia, uma dimensão central para a compreensão das formas de sociabilidade em diferentes contextos e em sociedades distintas. A análise das categorias e dos grupos de idade, e nestes, a juventude, seria parte importante das etnografias preocupadas em dar conta dos tipos de organização social, das formas de controle de recursos políticos e das representações sociais (DEBERT, 2000).

Ainda que considere os argumentos de autores como Giddens (2002) Moody (1993), dentre outros, que defendem a ideia de que no contexto atual, denominado por alguns de pós-modernidade, as divisões etárias, a ideia de ciclo da vida e as sucessões das gerações perderam o sentido, Debert (2000) reitera que as idades ainda são uma dimensão fundamental na organização social. Ela argumenta que “a incorporação de

mudanças dificilmente se faria sem uma cronologização da vida”. E considera um “exagero supor que a idade tenha deixado de ser um elemento fundamental na

definição do status de uma pessoa” (DEBERT, 2000, p.57).

Debert (2000) pondera que na atualidade (pelo menos no cenário brasileiro), as idades tornam-se um mecanismo cada vez mais poderoso e eficiente na criação de mercados de consumo, na definição de direitos e deveres e na constituição de atores políticos, sobretudo porque perderam qualquer relação com os estágios de maturidade física e mental (DEBERT, 2000). Desse modo, entende que a juventude como uma das fases do curso da vida apresenta no contexto contemporâneo, junto com a velhice e a infância, maior visibilidade e importância político-social e no campo do simbólico.

Neste estudo, dado o caráter polissêmico que o termo juventude apresenta, definimos por trabalhar com a categoria juventude a partir de referenciais amplos, entendendo-a como um processo mais amplo de constituição de sujeitos, cujas especificidades marcam a vida de cada um (GOMES e DAYRELL, 2002).

Como posto por Dayrell (2005), “não é fácil construir um referencial de

juventude que consiga abranger a heterogeneidade do real”. Ainda mais no caso deste estudo, que lida como vivências e representações juvenis em diferentes temporalidades, o “real” é sempre mais complexo e múltiplo do que qualquer teoria consiga abraçar.

Machado Pais (2003) identifica duas perspectivas distintas nos estudos sobre a juventude: a primeira denominada de geracional em que a juventude é tratada como uma fase da vida. A juventude, assim, se caracterizaria pelas transformações do indivíduo numa determinada faixa etária, na qual completa seu desenvolvimento físico e enfrenta mudanças psicológicas. Por outro lado, o autor destaca, essa dimensão biológica que “tende a ser universal” é compreendida, vivida e significada diferentemente, dependendo do grupo social. Nessa perspectiva, enfatizam-se os aspectos mais uniformes e homogêneos, que comporiam uma cultura juvenil, unitária, específica de uma geração definida em termos etários. Essa vertente englobaria tanto os estudos sobre socialização quanto sobre gerações.

Uma segunda perspectiva, denominada classista, considera a juventude em sua diversidade, como um “conjunto social necessariamente diversificado, em razão das

diferentes origens de classe” (PAIS, 2003, p. 49). Por esse foco, as culturas juvenis seriam sempre culturas de classe.

Também nessa perspectiva, na atualidade, enfatizam-se as distinções entre os jovens, considerando, além da posição de classe, as distinções postas pelos pertencimentos de sexo/gênero, raça/etnia, como também localização geográfica, cenário urbano ou rural, dentre outros fatores de distinção. O risco dessa vertente, de acordo com o autor, é “cair na mera pluralidade”. Esses estudos enfatizam que diferentes fatores incidem sobre a condição juvenil. Conforme posto por Margullis e Urrest (1996), além da diferenciação posta pela classe social que incide na condição de usufruir de uma moratória social, posta aos jovens das camadas médias e altas e não a populares, “a juventude depende também do gênero, do corpo processado pela

sociedade e da cultura: a condição de juventude se oferece de maneira diferente ao homem e a mulher. (...)” (MARGULLIS e URREST, 1996, p.27).

Assim, dividida entre as duas correntes, a juventude ora se apresenta como um conjunto homogêneo, ora como um conjunto heterogêneo. Essas polaridades, segundo Pais, não ajudariam na compreensão das questões postas à juventude na contemporaneidade. No primeiro caso, quando esse conjunto é considerado como conjunto social, e no segundo caso, quando é considerado pelos atributos sociais. A

grande dificuldade estaria, segundo Pais (2003), na forma como se dá a passagem entre uma dimensão e outra, do universal para o específico, o que faz com que alguns estudos acabem por enfatizar apenas a pluralidade.

Ele propõe uma terceira via, em que a juventude passa a ser compreendida em uma perspectiva mais ampla, conjugando a unidade e a diversidade que a categoria comporta. E a solução para ele estaria em estudar a juventude pelo prisma das culturas juvenis, pois esta perspectiva permitiria enfatizar os aspectos mais homogeneizantes e ao mesmo tempo a diversidade.

Para tornar ainda mais complexo o campo dos estudos sobre juventudes, Margullis e Urrest (1996) identificam uma outra tendência, em abordagens culturalistas mais recentes, que consideram a juventude apenas na perspectiva da dimensão simbólica. Essa corrente “culturalista” enfatizando o aspecto significativo, estético, muitas vezes incorrendo no risco de desvinculá-la das condições materiais e sócio- históricas, que condicionam seu significante. Para os autores essa perspectiva leva a um empobrecimento da capacidade de análise das dimensões juvenis.

Criticando essa tendência “culturalista”, Margullis e Urrest (1996) afirmam que a matéria da juventude é sua cronologia. Pensar a juventude implicaria necessariamente em manter uma base cronológica, pois sem a base cronológica a juventude perderia sua especificidade. Assim, é preciso considerar que, além de ser constituída pela cultura , a condição juveniltem também uma base material vinculada com a idade. Desse modo, os autores consideram importante, nos estudos sobre juventude, não desconsiderar essa base material, ou seja, um modo particular de estar no mundo, de encontrar-se alojado em sua temporalidade, de experimentar distâncias e durações.

A cronologia, e nesta a condição etária, porém, não é pensada apenas como

“fenômenos da ordem do biológico vinculados com a idade: saúde, energia, etc”, mas, sobretudo, como “fenômenos culturais articulados com a idade”. Desse modo, deslocam o critério etário do campo do biológico, que tem a idade “como categoria estática”, para uma consideração da idade como processada pela história e pela cultura: o tema das gerações.

Considerando, nesta pesquisa, o alerta de Margullis e Urrest (1996) para o risco de uma superestimação do caráter simbólico da juventude, ao estudá-la separadamente da análise das materialidades histórica e social em que são produzidas e reproduzidas, não há como negar que a dimensão simbólica é parte da “condição juvenil” e assim, do mesmo modo como não se deve desconsiderar a cronologia na compreensão da

juventude, não se pode desconsiderar a dimensão simbólica da juventude, sob o risco de não compreender os fenômenos juvenis estudados.

No campo simbólico, conforme nos lembra Levi e Schmitt (1996), cada sociedade plasma diferentes imagens sobre o ser jovem e a juventude, projetando essas imagens sobre os sujeitos cronologicamente jovens, estabelecendo lugares sociais, funções, papéis e status distintos. Mesmo não sendo uma invenção moderna, como indicam também os estudos de Eisentadt (1975) e Davis (1990), nas sociedades modernas ocidentais, considerando os estudos de Ariès (1981), Hobsbawn (1995) e Savage (2009), a juventude e o ser jovem passam a adquirir novos e distintos sentidos e significados.

Para Savage (2009), desde o último quartel do século XIX que se pode mapear “muitas e conflitantes tentativas de definir o status do jovem”, passando pelos terrenos da política, em diferentes tentativas de “arregimentar adolescentes para as forças

nacionais”, pelos terrenos da “cultura”, “a partir de visões proféticas, artísticas, que

refletiam o desejo dos jovens de viverem segundo suas próprias regras”, até uma “vitória” do jovem como consumidor, na sociedade americana da pós-Segunda Guerra Mundial, com a criação do Teenager.

Os estudos de Stanley Hall (1898) sobre a adolescência são considerados por Savage o marco da cristalização de uma visão da juventude como uma fase de transição entre a condição de criança, caracterizada pela extrema dependência, e a vida adulta, caracterizada pela plena autonomia. Como momento de maturação biológica e sexual, caracterizada pela puberdade, e maturação social, caracterizada pela capacidade de inserção no grupo social e plena adaptação à vida adulta.

Nesse âmbito tomou força a idéia de moratória social, ou seja, um tempo de espera, um tempo suspenso, em que, associada ao processo de socialização realizado pelas instituições sociais, principalmente a família, a escola (e a religião), o sujeito jovem se prepararia para a plena inserção na vida social e no status de adulto.

Essa imagem passa a fazer parte da representação do ser jovem e dos sujeitos jovens. A ela associam-se imagens de transitoriedade, de indefinição, de preparação, de tempo de espera, de “descompromissos” e “adiamento das responsabilidades”.

Para Margullis e Urrest (1996), essa noção de moratória social, e as imagens a ela associadas, na prática é vivida apenas por uma pequena parcela da juventude em cada sociedade. Desse modo, deixa-se “à margem”, ou “de fora da juventude”, um grande contingente de jovens que, ao não se ver refletido nessa imagem da juventude e

do ser jovem, passa a não se reconhecer como jovem, e o pior, a não serem vistos ou contemplados nos estudos sobre juventude, por constituírem o que os autores denominam de jovens-não juvenis, ou seja, sujeitos cronologicamente situados na faixa etária considerada jovem, mas que não portam os signos da juventude.

Nas sociedades contemporâneas complexas o termo juventude deixou de ser considerado um atributo exclusivo dos sujeitos situados na faixa etária jovem, para ser um estilo de vida, um projeto perseguido por diferentes sujeitos, independentemente do critério etário. Características antes relacionadas à juventude e a cultura jovem, tais como incerteza, mobilidade, transitoriedade, abertura para a mudança, parecem ter se deslocado para além dos limites biológicos e adquirido. (MELUCCI,1997)

Após essas considerações, é preciso afirmar que nesta pesquisa buscou-se tratar da juventude abrangendo a complexidade do tema, que conjuga dois pares opostos: unidade/diversidade e condição juvenil/representação.

No primeiro par, pondo em foco o aspecto da unidade, ou pelo prisma da geração, consideramos a juventude compreendida como uma fase da vida, assim como a adolescência, a vida adulta e a velhice, levando-se em conta, porém, que esse conceito ultrapassa os aspectos biológicos que caracterizam essas fases. A juventude, nessa perspectiva, é considerada como um momento determinado da vida, mas que não pode ser reduzido a uma passagem, assumindo importância em si mesmo.

Conjugando a ótica da diversidade, entende-se que todo esse processo é influenciado pelo meio social concreto no qual se desenvolve e pelas qualidades das trocas que proporciona. A diversidade destaca-se pelo trato das diferenciações postas pelas pertenças de gênero, etnia e local das vivências e, também, pela desigualdade das condições socioeconômicas; condição e representação.

Como segundo par de oposto a superar, na constituição dessa cartografia buscou-se pensar a juventude nos campos das vivências e das representações, considerando-se que a juventude se constitui como uma condição social e, ao mesmo tempo, constitui um tipo de representação.

Nos termos de Margullis e Urrest (1996), e de Levi e Schmitt (1996), dentre outros, é preciso distinguir entre condição juvenil, ou seja, os modos como se vive a juventude, considerando-se as pertenças de classe social, gênero, etnia, época, local, dentre outras, e a juventude enquanto signo, ou seja, em relação às imagens e representações “plasmadas” sobre a juventude e o ser jovem.

Importa enfatizar que quando falamos de juventude estamos tratando de conjuntos de representações sociais que vão se construindo e modificando no decurso do tempo e das circunstâncias históricas. Essa característica da categoria “juventude” complexifica o trabalho de quem se aventura por essas paisagens. Captar em um mesmo exercício de investigação a juventude enquanto vivido e enquanto representado é um grande desafio. Ainda mais quando trabalhamos com a memória, dimensão que nos permite acesso a um “vivido re-memorado”, a um artefato do “sujeito rememorante”, resultado do processo de “dobra sobre si mesmo”, podendo esta ser também considerada “um passado representado”. Daí, o pesquisador deve se esforçar para entender seus sentidos, seus significados e os diferentes simbolismos implícitos nos pontos de vista dos sujeitos envolvidos na pesquisa.

Com essa perspectiva, pretendeu-se, a partir da pesquisa empírica, identificar e mapear os modos como os estudantes de uma escola pública municipal de Belo Horizonte, de diferentes gerações, elaboram ou expressam representações sobre o ser jovem em diferentes momentos históricos.

Lidamos todo o tempo com essa imbricação conceitual, buscando, de um lado, mapear nos relatos dos estudantes de diferentes gerações as experiências e vivências “concretas” do tempo de juventude9, ou a ausência delas, que nos permitiram descrever a condição juvenil em cada contexto geracional; de outro lado, considerando as imagens de juventude que emergem dos relatos e nos permitem traçar um painel dos sentidos e significados atribuídos aos termos pelos distintos sujeitos e épocas. Lidamos o tempo todo tanto com a dimensão simbólica quanto com os aspectos fáticos, materiais, históricos e políticos nos quais a produção social da juventude se desenvolve.

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