• Nenhum resultado encontrado

Kristeva, Julia “La productivité dite texte” Sémiotiké Recherches pour une sèmanalyse Paris: Seuil, 1969, p 183.

ressurge a idéia de transição: a passagem da estrutura à “estruturação”, à “estruturalidade da estrutura” (nos termos de Derrida), vai reaparecer com ênfase, já que o grupo se situava na vanguarda, ou melhor, disputava de maneira voluntariosa o espaço à frente desse gênero de movimento, de maneira deliberadamente violenta e estridente, sobretudo na voz de seu editor- fundador - por sinal, a figura mais visível e talvez menos vibrante do grupo, considerando a

30 opinião de alguns de seus principais leitores latino-americanos.

Não era essa, então, a aposta de Roland Barthes, na Universalis em 1973, ao fazer referência à melhor linhagem de escritores modernos: “de Lautréamont à Philippe Sollers”; ou em

Sollers écrivain, de 79. Nem de Foucault (ao menos em “Distance, aspect, origine”, abrindo a Théorie d ’ensemble), nem de Derrida (em La Dissémination, de 72).

*

A máquina dissidente: mortificado o autor, a tarefa de despersonalização necessita continuar em moto-perpétuo. O discurso intelectual setentista apelaria como nunca a uma língua do exílio, a uma dissidência vista desde uma ótica cultural, o que remete ao pensamento de Kristeva.31 Procurando repensar o lugar do intelectual, Kristeva - a exemplo de Sarlo e Piglia, à sua maneira, em Los Libros - proporá, como uma sorte de última tábua de salvação, o perfil de “Un nouveau type d’intellectuel: le dissident”, conforme o título do “manifesto”, já mencionado. Desde o início, o próprio texto manifestário denuncia um certo desencanto, se não desespero, diante da “institucionalização” iminente (o que também vai atingir os latino-americanos em foco).

Seria necessário perguntar, afinal, aos autodenominados dissidentes franceses, como o faz Marx-Scouras: - Mas dissidentes do quê?, já que ocupavam um locus de enunciação privilegiado. Resgata-se em todo caso aí, na tentativa de esclarecer a nova guinada, o maio de 68 que houve e não houve para Tel Quel, porque o grupo apoiava então o Partido Comunista e, sendo assim, colocou-se a princípio na contramão do movimento dos estudantes:

Il était peut-être nécessaire alors que ce fut des futurs chômeurs, des intellectuels en mal d’emploi, des étudiants sans perspectives d’embauche par aucun des “ensem bles” sociaux 30 V. entrevistas, a exemplo de Sarlo, mencionada acima. Para Schmucler, o que tinham era “una soberbia infinita” (p. 6).

31 V. Marx-Scouras, D. The cultural politics ofT el Quel. Li ter ature and the Le f t in the wake o f Engagement, . Pennsylvania: Penn University Press, 1996, p. 180.

contraignant ou en faillite, qui ont affirmé cette fonction dissidente des intellectuels. Sans cela, l’intellectuel occidental a trop de “structures d’accueil” toujours très nationales qui lui permettent de se sentir chez soi. y compris et peut-être même encore mieux, lorsqu’il est “dans l’opposition”.32

“Um espectro ronda a Europa: o espectro dos dissidentes”, propunha Kristeva decalcando o

Manifesto Comunista, com o exagero característico dos manifestos - mas sem poder sequer ser

considerado um, por anacrônico. A escritora telqueliana reafirmaria a necessidade de pôr em jogo identidades e linguagens de indivíduos e grupos, na direção de uma análise dos conjuntos sociais como “impossíveis”, no rastro de Georges Bataille, e mesmo mais do que isto: “S’affirmer comme révélateur de l’impossible”. Ao mesmo tempo, destacaria três tipos de intelectuais em seu raciocínio: o “rebelde” (como ela), o psicanalista (como ela) e o escritor (como ela), sem deixar de discutir, é claro, a posição da mulher, colocando-se contra o feminismo enquanto religião - como o faria o resto de seu grupo.

Entre os escritores, outra vez, a marca do poeta de Un coup de dés, na diaspora das línguas

qui s’écrit en cette littérature pluralisant le sens et traversant les frontières des signes et des langues nationales, qu’illustrent les noms de Kafka, de Joyce, de Beckett, et, à sa manière française, plus restreinte, plus perdue et moins éclatante, mais précurseur néanmoins: Mallarmé.

Mallarmé integraria uma daquelas “grandes générations d’éxilés irreligieux”, a exemplo dos judeus, de Spinoza, das vítimas dos Goulag e de “mim mesma”, Julia Kristeva,

(...) exilée du socialisme et d’une rationalité marxiste, mais considérant que le socialisme - loin d’être une hypothèse impossible pour l’Occident, comme le croient ceux du Goulag - est au contraire une éventualité certaine et donc un interlocuteur. Il s’agit par conséquent de s’attaquer aux verrous de cette rationalité et de cette société comme à l’achèvement d’un cycle historique, et de les démonter patiemment, minutieusement, en partant de la langue jusqu’à la culture et aux institutions. Travail donc de dissidence - de démontage impie et impitoyable des mécanismes de discours, de pensée, d’existence. Cette dissidence suppose une attitude

analytique permanente, d’éveil et de dissolution, qui la met en complicité nécessaire avec les pratiques dissidentes du monde occidental moderne.33

Fruto da carência de alternativas e da própria indecisão, o corte culturalista do novo intelectual postulado por Kristeva reside, basicamente, naquilo que chama de “verdadeira dissidência” - tout simplement, et comme toujours, la pensée, posição analítica que seria afirmação de dissolução e, simultaneamente, travessia de diferenças. Trata-se, ainda uma vez, da intolerável “Morte do Homem”, à qual um já decadente pensamento telqueliano sempre retomará, através dos vetores do “impossível” e do “inominável”, para um sujeito necessariamente em falta:

S’il est vrai que le surgissement dans le discours des femmes et des enfants pose des questions insolubles à la Raison et au Droit, c’est que ce surgissement est aussi un symptôme de plus de la Mort de l’Homme (avec tout ce que cette mort comporte d’intolérable pour les individus et les rationalités classiques). Alors, la seule relève de cette Mort n’est peut-être pas une Résurrection: pour quelle Transcendance, si l’Au-delà s’est incarné dans la Folie?; et encore moins une Renaissance: puisque le Prince éclairé a échoué dans le Bureau Politique ou les Trusts. Mais, par les efforts de la pensée à travers les langues: tenter des relèves multiples du néant, de l’innommable, de l’irreprésentable, dans des excès de langages dont la multitude est la seule marque d’une vie. C’est là le véritable tranchant de la dissidence.34

Esse tardio libelo em prol de uma política da dissidência em Tel Quel (fase pós-chinesa e americanófila) não chegou, portanto, a representar nènhuma novidade para o programa do grupo, já que coincide com a definição de escritor e de escritura que a revista vinha defendendo desde o início - a experiência dos limites, nos termos de Sollers, ou a experiência interior, no dizer de Bataille. Segundo Marx-Scouras, em interpretação bastante condescendente com a operação, “in many respects, dissidence merely highlighted the conjunction between literature and ethics that Tel

Quel had advocated ail along”.35

Surge aí outra questão, a ser desdobrada aos poucos: de que modo se exerce (se se exerce) a noção de dissidência entre os telquelianos latino-americanos, e em que medida estes coincidem com Tel Quel em relação à tese do predomínio da literatura como experiência-limite.

33 Kristeva, J., op. cit., p. 7 (ambas citações). 34 Idem, p. 3-8.

35 Marx-Scouras, D., op. cit., p. 216-17.

*

O primeiríssimo Barthes - aquele pré-vanguardeiro e pré-estrutural da atividade teatral popular - emprega um belo termo burocrático-administrativo-financeiro para definir o lastro de contestação estética e ética permitida pela “burguesia”, o qual parece permanecer válido em relação à trajetória dos escriturários textualistas franceses e, em conseqüência, para a movimentação de valores em curso no texto: aquele de “procuração” vanguardista. Essa procuração, voltada à destruição controlada das formas envelhecidas e a periódicas empreitadas de recauchutagem de valores, seria um tipo de teto máximo, significando ao mesmo tempo um rígido limite e uma forma peculiar de mecenato, o qual de tempos em tempos salvaria a arte da mera arte pela arte. “Le mot même d’avant-garde, dans son étymologie, ne désigne rien d’autre qu’une portion un peu exubérante, un peu excentrique de l’armée bourgeoise”, afirmava Barthes em “A l’avant garde de quel théâtre?”36 Lembrando Lévi-Strauss, o vanguardista seria uma espécie de pajé: “il fixe l’irrégularité pour mieux en purifier la masse sociale”. Mas o pharmakon receitado pelo feiticeiro é diluído - vale dizer, malvertido - e servido em pequenas doses deferidas pelo processo civilizatório: “Rimbaud annexé par Claudel, Cocteau académicien ou le surréalisme infusé dans le grand cinéma, l’avant-garde poursuit rarement jusqu’au bout sa carrière d’enfant prodigue: elle finit tôt ou tard par réintégrer le sein qui lui avait donné, avec la vie, une liberté de pur sursis”.

Há no artigo, contudo, outras valiosas verdades demonstradas après coup: rememorando as aporias do grupo surrealista diante do engajamento político, parece-lhe que, “à peine conquise par l’évidence des tâches révolutionnaires, l’avant-garde renonce à elle-même, accepte de mourir”, o que não séria menos certeiro para o beco-sem-saida em que se coloca o telquelismo no decorrer dos anos 70. Pode-se concluir, então, que a vanguarda deseja morrer, tal qual dizia precocemente e talvez contra si mesmo, entre nouveau réalisme e nouveau roman, Roland Barthes.37

*

Os debates da hora indicam, ao menos aparentemente, uma guinada de um marxismo- leninismo “ortodoxo”, apesar da mixagem com o freudismo, a um presente (isto é, “em tomo de

36 Texto publicado em Théâtre Populaire, 1956. Essais critiques. Paris: Seuil, 1964, p. 80. 37 Barthes, R., op. cit., p. 81-2.

70”) engajamento acrítico à maolatria, como diziam os franceses, plenamente assumida a partir das “Posições do Movimento de Junho de 1971”, que deixou mortos e feridos: em meio a uma grande discussão via revistas e jornais, do Le Monde a La Nouvelle Critique (do Partido Comunista Francês) a Promesse,38 Jean Ricardou e Jean Thibeaudeau deixam o grupo e, principalmente, dá-se o rompimento político de Tel Quel com Derrida, tido como mais um “dogmático-revisionista” ao apoiar a união da esquerda francesa contra não apenas o centro e a direita mas também o “perigo amarelo”. Desse modo o grupo da revista retoma ao que havia criticado, e na verdade se encontrava apenas reprimido, no movimento surrealista dos anos 30: um certo excesso de crédito em um regime totalitário com atrativos estéticos e propagandísticos irresistíveis durante certo espaço- tempo.

*

“Tel Quel a toujours été attaqué. Cependant, pour comprendre la violence depuis quelque

temps redoublée de ces attaques, il faut aller directement au fait suivant: la revue est en plein fonctionnement, non seulement matériel - augmentation du tirage, influence croissante (surtout à l’étranger, puisqu’une édition italienne paraît ces jours-ci) - mais surtout théorique, à l’intérieur d’un développement de plus en plus serré de sa réflexion. Vous savez de quelle idéologie profondément réactionnaire, décadente et pour tout dire exténuée, la ‘littérature’ est, dans notre société, le symptôme actif Bien entendu, ce symptôme renvoie à l’ensemble de l’idéologie bourgeoise qui ne manque pas ‘d’écrivains’ destinés à mimer son passé classique romantique ou naturaliste: cela va du stendhalien agité à l’esthète crépusculaire, en passant par toutes les variantes d’un fonctionnariat multiple. Pour une telle économie, il s’agit de comprendre ce que Tel Quel signifie: l’annonce d"une dévaluation"...

Philippe Sollers39

*