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3 PRESSUPOSTOS TEÓRICOS DA PESQUISA

3.1 LÍNGUA, DIALETO E VARIEDADE

Rajagopalan (1998) assinala que não é nada simples “distinguir entre categorias conceituais nebulosas como ‘língua’ e ‘dialeto’. [...]. Quando uma língua é submetida a uma análise de microscópio, percebe-se que é infinitamente diversificada”9 (RAJAGOPALAN, 1998, p. 23). Quais seriam, pois, os critérios para diferenciar um conceito do outro?

Ferreira et al. (1996) apresentam dois conceitos de língua, entre os inúmeros existentes, que interessam aqui. O primeiro, de uso mais comum, é o de língua como uma noção político-institucional, ou seja, um sistema linguístico abstrato que, por razões políticas, econômicas e sociais, adquiriu independência tanto funcional como psicológica para seus falantes, e que é normatizado por meio de instrumentos próprios, como gramáticas e dicionários. O segundo conceito se refere ao uso do termo ‘língua’ numa perspectiva histórica, relacionado à noção de dialeto, mas aí se entra num terreno mais delicado, dada a dificuldade de estabelecer fronteiras entre essas duas realidades.

O Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (HOUAISS, 2001), por exemplo, define ‘dialeto’ como qualquer variação regional de um idioma que não chegue a comprometer a inteligibilidade mútua entre o falante da língua principal (a variedade mais amplamente utilizada) e o falante do dialeto. Entretanto, Rajagopalan (1998) lembra que “critérios formais e funcionais (e portanto ‘puramente lingüísticos’) tais como semelhanças estruturais e inteligibilidade mútua mostram-se, como se sabe, lamentavelmente insuficientes quando se trata de distinguir uma língua de outra” (RAJAGOPALAN, 1998, p. 24), já que, na maioria das vezes, a diferença entre línguas não é linguística, mas religiosa e geopolítica. Como

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exemplo, o autor cita o caso das línguas hindi e urdu, que são semelhantes – e, em muitos aspectos, idênticas – em sua estrutura, mas distintas política e culturalmente.

Na mesma direção, Ferreira et al. (1996) citam o caso do norueguês e do dinamarquês, que, apesar de partilharem sistemas praticamente idênticos, mantêm “autonomia linguística” pelo fato de a Noruega e a Dinamarca serem Estados independentes, com peso político, econômico e cultural próprio. Ao contrário, o chinês, língua unificada em todo o território político da China por meio de um sistema ideográfico de escrita, não possui identidade linguística real, apresentando sistemas linguísticos tão diferentes quanto o cantonês e o mandarim. Tais realidades, segundo os autores, mostram como as noções de língua e dialeto são relativas10.

Na verdade, mais que diferenças de valor estritamente linguístico entre os dois conceitos, o que há é uma diferença de estatuto. Como afirma Hamel (1988, p. 48), “no existen propriedades estructurales de las formas lingüísticas que permitan fundamentar una clasificación en lenguas, dialectos, jergas. Estas distinciones que se establecen siempre con criterios externos al lenguaje mismo son de orden histórico, geográfico, social”11.

Segundo Coseriu (1982), toda língua histórica é constituída por dialetos:

Um dialeto, sem deixar de ser intrinsecamente uma língua, se considera subordinado a outra língua, de ordem superior. Ou, dizendo-se de outra maneira: o termo dialeto, enquanto oposto à língua, designa uma língua menor incluída em uma língua maior, que é, justamente, uma língua histórica (ou idioma) (COSERIU, 1982, p. 11-12).

A definição coseriana encontra eco na distinção conceitual estabelecida por Chambers e Trudgill (1994), indicando que o dialeto é uma variedade subordinada à língua: “los dialectos pueden así ser considerados como subdivisiones de una lengua en particular”12

(CHAMBERS; TRUDGILL, 1994, p. 19). Já Mouton (2005) apresenta o seguinte conceito: “hablamos de dialecto para cualquier realidad lingüística que no sea normativa”13

(MOUTON, 2005, p. 223). Tais definições, porém, não implicam um valor menor do dialeto em relação à língua, como muitas vezes lhe atribui o senso comum.

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No caso da realidade brasileira, podem ser citadas, nesse sentido, as famílias linguísticas indígenas, que incluem línguas e dialetos muito semelhantes entre si, quase idênticos (Informações disponíveis no site Povos indígenas no Brasil: <http://pib.socioambiental.org/pt/c/no-brasil-atual/linguas/troncos-e-familias>. Acesso em: 21 jun. 2013.).

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[...] não existem propriedades estruturais das formas linguísticas que permitam fundamentar uma classificação em línguas, dialetos, jargões. Essas distinções que se estabelecem sempre com critérios externos à linguagem mesma são de ordem histórica, geográfica, social. [Todas as traduções contidas nesta tese são de responsabilidade de sua autora.]

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[...] os dialetos podem assim ser considerados como subdivisões de uma língua em particular.

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Entre os mitos que envolvem o conceito de dialeto, destacam-se os dois que talvez sejam os mais comuns: o de que se trata de um linguajar sem regras, e o de que é uma língua menor em relação à variedade padrão. Os argumentos para combater esses mitos são, em primeiro lugar, o de que qualquer variedade tem regras próprias, e, em segundo, o de que um dialeto não pode ser uma língua menor, já que não tem valor intrínseco menor (o valor é socialmente atribuído), e também porque um dialeto não é propriamente uma língua, mas uma variedade de língua.

Chambers e Trudgill (1994) comentam as conotações negativas que o termo ‘dialeto’ muitas vezes possui e apresentam sua concepção de dialeto:

En el lenguaje cotidiano un dialecto es una forma de lengua subestándar, de nivel bajo y a menudo rústica, que geralmente se asocia con el campesinado, la clase trabajadora y otros grupos considerados carentes de prestigio. Dialecto es también un término aplicado a menudo a las lenguas que no tienen tradición escrita, en especial a aquéllas habladas en los lugares más aislados del mundo. Y por último también se entienden como dialectos algunas clases (a menudo erróneas) de desviaciones de la norma, aberraciones de la forma estándar o correcta de una lengua. [...] Partiremos, por el contrario, de la idea de que todos los hablantes lo son al menos de un dialecto – de que el inglés estándar es, por ejemplo, un dialecto tan claro como cualquier otra forma del inglés – y de que no tiene ningún sentido suponer que un dialecto cualquier es lingüísticamente superior a otro14 (CHAMBERS; TRUDGILL, 1994, p. 19).

Ao considerarem o inglês padrão um dialeto como qualquer outra variedade do inglês, os autores acabam apontando uma saída para evitar a armadilha de usar um termo a que são atribuídas conotações de várias espécies: considerar qualquer variedade, inclusive a padrão, como dialeto, já que, como mostram Ferreira et al. (1996), a variedade padrão nada mais é do que um dialeto, ou uma das variedades faladas num território, que, por diversos fatores de caráter extralinguístico, adquiriu maior prestígio e se impôs como norma ou língua padrão, recebendo o estatuto de língua oficial. Nesse sentido, vale a orientação de Fishman (1972a), que sugere um termo de caráter mais neutro:

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Na linguagem cotidiana, um dialeto é uma forma de língua substandar, de baixo nível e frequentemente rústica, que geralmente se associa com o campesinato, a classe trabalhadora e outros grupos considerados carentes de prestígio. Dialeto é também um termo frequentemente aplicado às línguas que não têm tradição escrita, em especial a aquelas faladas nos lugares mais isolados do mundo. E, por último, também se entendem como dialetos alguns tipos (frequentemente errôneos) de desvios da norma, aberrações da forma padrão ou correta de uma língua. [...] Partiremos, pelo contrário, da ideia de que todos os falantes o são de pelo menos um dialeto – de que o inglês padrão é, por exemplo, um dialeto tão claro como qualquer outra forma do inglês – e de que não faz nenhum sentido supor que um dialeto qualquer seja linguisticamente superior a outro.

The term variety is frequently utilized in the sociology of language as a nonjudgmental designation. The very fact that an objective, unemotional, technical term is needed in order to refer to ‘a kind of language’ is in itself an indication that the expression ‘a language’ is often a judgmental one, a term that is indicative of emotion and opinion, as well as a term that elicits emotion and opinion15 (FISHMAN, 1972a, p. 15-16).

Chambers e Trudgill (1994) também entendem o conceito de variedade como neutro, aplicado “a cualquier clase particular de lengua que deseemos considerar, por algún motivo, como una entidad individual”16

(CHAMBERS; TRUDGILL, 1994, p. 22). Além disso, como o dialeto é sempre uma variedade de determinado sistema linguístico reconhecido oficialmente como língua, pode-se considerar, então, ‘dialeto’ e ‘variedade’ como sinônimos. Conforme Ferreira et al. (1996), geralmente se considera dialeto de uma língua a variedade linguística que caracteriza determinada zona, embora, novamente, as fronteiras entre os dialetos não sejam tão nítidas, caracterizando-se mais por um continuum dialetal.

Romaine (1994) lembra que, além da conotação geográfica, uma variedade também pode ter uma conotação social, ou seja, enquanto um dialeto regional é uma variedade associada a um lugar, com limites geralmente coincidindo com características geográficas (tais como rios, montanhas etc.), um dialeto social possui limites de natureza social (como, por exemplo, as classes sociais). A autora menciona, ainda, as conotações históricas do termo ‘dialeto’, exemplificando com o caso dos dialetos germânicos, que se constituíram como ancestrais das variedades linguísticas agora reconhecidas como línguas germânicas modernas (inglês, holandês e alemão, por exemplo). No entanto, a autora acrescenta que entidades comumente rotuladas como ‘língua inglesa’ ou ‘dialeto flamengo’ não são discretas, pois qualquer variedade é parte de um continuum no espaço e no tempo social e geográfico. As descontinuidades que eventualmente ocorrem, porém, frequentemente refletem fronteiras geográficas e sociais e fragilidades nas redes de comunicação.

Feitas essas considerações, convém mencionar que, nesta tese, empregam-se os termos ‘língua’, ‘dialeto’ e ‘variedade’ (ou ‘variedade dialetal’) para fazer referência à língua étnica do informante, não importando o seu maior ou menor distanciamento com relação à variedade padrão. Sabe-se que, dentre os imigrantes europeus que vieram ao Brasil, pelo menos os italianos e alemães falavam variedades que não se identificavam com a língua padrão dos

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O termo variedade é frequentemente utilizado na sociologia da linguagem como uma designação não avaliativa. O próprio fato de que um termo objetivo, não emocional, técnico seja necessário para referir a ‘um tipo de língua’ é em si uma indicação de que a expressão ‘uma língua’ é frequentemente de caráter avaliativo, um termo que é indicativo de emoção e opinião, bem como um termo que desperta emoção e opinião.

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[...] a qualquer tipo particular da língua que desejemos considerar, por algum motivo, como uma entidade individual.

respectivos países de origem17. Nas comunidades paranaenses fronteiriças a países da América espanhola, as variedades do espanhol são também reportadas como ‘paraguaio’, ‘argentino’ e ‘portunhol’ (neste caso, derivado do contato entre espanhol e português), e muitos informantes demonstram consciência de que não se trata do espanhol padrão (e nem do português padrão, no caso do portunhol).

O questionário que deu origem ao corpus desta pesquisa mencionava a designação ‘línguas estrangeiras’ para as línguas diferentes do português faladas nas comunidades. No entanto, o termo ‘estrangeira’ não parece definir exatamente o status das variedades usadas no âmbito das comunidades (pergunta-se: essas línguas são estrangeiras para quem? Pode-se dizer que são estrangeiras se são usadas por muitos habitantes dessas localidades?). Entretanto, por falta de um termo que descreva melhor o status das línguas diferentes do português nas localidades, será mantida a designação ‘língua estrangeira’, em alguns casos, a par das designações ‘segunda língua’, ‘língua adicional’, ‘língua não portuguesa’, ‘língua étnica’ e, no caso específico das línguas de origem dos eurodescendentes, ‘língua de herança’, ‘língua de imigração’ e ‘língua alóctone’, além das citadas no parágrafo anterior (‘variedade’, ‘variedade dialetal’ e ‘dialeto’).