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3 DA EXPERIÊNCIA BRASILEIRA

3.1 ANÁLISE LEGISLATIVA

3.1.2 Legislação antitruste

Quando a elaboração deste estudo teve início, o diploma legal que regulava o direito concorrencial no Brasil era a Lei nº. 8.884, de 11 de junho de 1994.

Como destaca Ana Paula Martinez:

os anos 1990 alçaram a defesa da concorrência a um patamar nunca antes atingido no Brasil, fruto do contexto econômico e político liberal que permite, entre outros, o aperfeiçoamento e consolidação da matéria concorrencial na esfera legislativa. O texto da Lei 8.884, de 11 de junho de 1994, foi resultado do trabalho de comissão constituída pela Portaria do Ministério da Justiça 28, de 27 de janeiro de 1993, com o objetivo de ‘estudar e propor o aperfeiçoamento e a consolidação da legislação sobre a defesa da concorrência e abuso do poder econômico, visando à fixação de novo modelo institucional que propicie melhor ação governamental neste campo.121

120 Neste sentido, Dannemann Siemsen Bigler & Ipanema Moreira destaca que “alguns

especialistas defendem que apenas o trânsito em julgado de decisão judicial ensejaria a licença compulsória no Brasil, devido à possibilidade de revisão da decisão administrativa pelos tribunais” (DANNEMANN SEMSEN BIGLER & IPANEMA MOREIRA. Op. cit., 2000. p. 154).

121 MARTINEZ, Ana Paula. Histórico e desafios do controle de concentrações econômicas no

Em linhas gerais, a Lei nº. 8.884, de 11 de junho de 1994 – que revogou a Lei nº. 4.137/62, nº. 8.158/91 e nº. 8.002/90 e deu unidade ao tema da defesa da concorrência no Brasil –, instituiu o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) como autarquia federal vinculada ao Ministério da Justiça e atribuiu competências à então Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça (SDE) e à Secretaria de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda (Seae), que passaram então a constituir aquilo que se passou a chamar de Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC).

Na lição de Celso Fernandes Campilongo:

o controle de concentrações empresariais alçou o direito antitruste, no mundo inteiro, a novos patamares de especulação teórica e capilaridade social. No Brasil não foi diferente. Apesar de estudado e previsto na legislação concorrencial anterior à edição da Lei nº. 8.884/94, apenas depois da edição desse diploma o controle de estruturas tornou-se realidade entre nós.122

No sistema jurídico brasileiro, pode-se afirmar que, tanto no plano constitucional, quanto no da lei ordinária, há nítida preocupação com a concentração empresarial e estruturas monopolistas, fazendo da lei um verdadeiro instrumento garantidor de equilíbrio na ordem econômica.

Segundo Calixto Salomão Filho:

concentração. Org.: GILBERTO, André Marques; CAMPILONGO, Celso Fernandes; VILELA, Juliana Giradelli. São Paulo: Singular, 2011, p. 37.

122 CAMPILONGO, Celso Fernandes. Apresentação. In: GILBERTO, André Marques;

a Constituição de 1988 e a Lei nº. 8.884, de 1994, dão conta dessa tendência, elaborando um verdadeiro código de conduta para os detentores de posição dominante. Assim é que a Constituição tem como ilícito concorrencial central o abuso de poder econômico (artigo 173, § 4º, CF). A lei, por outro lado, estabelece uma série de deveres de comportamento para o detentor de posição dominante, que vão desde a proibição da prática de preços abusivos até a recusa de contratar.123

A única menção expressa à propriedade industrial na legislação antitruste brasileira se encontrava consubstanciada no artigo 21, inciso XVI, da Lei n° 8.884, de 11 de junho de 1994, ao anunciar que “açambarcar ou impedir a exploração de direitos de propriedade industrial ou intelectual ou de tecnologia” poderia configurar infração da ordem econômica.

Novamente, a redação adotada pelo legislador pátrio parece ter sido infeliz ao tipificar a conduta e talvez por isso tenha dificultado a aplicação do dispositivo a casos concretos. Paradoxalmente, não se conhece, no Brasil, nenhum procedimento ou investigação antitruste que tenha por objeto a apuração da única conduta expressamente tipificada pela lei de defesa da concorrência envolvendo propriedade industrial.

Açambarcar possui o duplo significado de “chamar (algo) exclusivamente para si, em detrimento de outros” ou “assenhorar-se ou apropriar-se de algo”124. Configura, portanto, violação da ordem econômica a conduta de determinado agente econômico que se sub-rogue indevidamente na condição de titular de

123 SALOMÃO FILHO, Calixto. Regulação e concorrência (estudos e pareceres). São Paulo:

Malheiros, 2002, p. 49.

direitos de propriedade industrial de terceiro, impedindo seu exercício pelo legítimo detentor.

Note-se, por oportuno, que a legislação de defesa da concorrência não tipificava expressamente o abuso de direitos de propriedade industrial como potencial hipótese de configuração de ilícito antitruste. Não precisaria, a rigor, tê-lo feito, vez que o artigo 21 em questão era meramente exemplificativo e qualquer conduta – incluindo mas não se limitando ao abuso de direitos de propriedade industrial – que tivesse por objeto ou pudesse produzir qualquer dos efeitos listados no artigo 20, caput, do mesmo diploma legal,125 ainda que não listada no artigo 21, caracterizaria violação da ordem econômica. Todavia, tendo em vista o inevitável e crescente reconhecimento da importância do direito da propriedade industrial para o direito da concorrência, não parece mais admissível que a lei antitruste o ignore completamente.

O legislador brasileiro não perdeu outra oportunidade para fazê-lo. Em 30 de novembro de 2011, foi promulgada a Lei nº. 12.529, que estruturou o SBDC e passará a regular a prevenção e repressão às infrações contra a ordem econômica. A nova lei antitruste revoga completamente a Lei n° 8.884, de 11 de junho de 1994, e passará a viger depois de decorridos 180 (cento e oitenta) dias a partir da publicação.

125 “Art. 20. Constituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob

qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados: I – limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa; II – dominar mercado relevante de bens ou serviços; III – aumentar arbitrariamente os lucros; IV – exercer de forma abusiva posição dominante”.

Com efeito, embora tenha optado por manter a mesma redação vazia do artigo 21, inciso XVI, da Lei n° 8.884, de 11 de junho de 1994, retrotranscrito126, a Lei nº. 12.529, de 30 de novembro de 2011, passou a contemplar expressamente o abuso de direitos de propriedade industrial entre as hipóteses de configuração de ilícito antitruste. Nesse sentido, o artigo 36, § 3º, inciso XIX, deste diploma legal estabelece que “exercer ou explorar abusivamente direitos de propriedade industrial, intelectual, tecnologia ou marca” caracteriza infração da ordem econômica.

Melhor sorte não parece ter tido o legislador pátrio ao redigir o dispositivo legal em espeque, que padece de profundas impropriedades teóricas. Marcas são espécies do gênero propriedade industrial. Uma vez mais, não faz nenhum sentido a utilização da conjunção coordenativa alternativa “ou” ao falar de exercício de direitos de propriedade industrial “ou” marca. Perdeu-se, ainda, a oportunidade de aludir expressamente a abuso de direitos autorais. Provavelmente quis o legislador contemplá-los ao fazer referência a direitos de propriedade intelectual e, de fato, o fez. Todavia, a ausência de previsão a respeito no diploma legal anterior estava a demandar do novel maior tecnicidade. Por fim, andou mal também o legislador ao incluir o termo “tecnologia” no dispositivo legal em questão. A expressão “direitos de tecnologia”

126 “Art. 36. Constituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob

qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados: I – limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa; II – dominar mercado relevante de bens ou serviços; III – aumentar arbitrariamente os lucros; e IV – exercer de forma abusiva posição dominante.

§ 3o As seguintes condutas, além de outras, na medida em que configurem hipótese prevista no

caput deste artigo e seus incisos, caracterizam infração da ordem econômica: XIV – açambarcar ou impedir a exploração de direitos de propriedade industrial ou intelectual ou de tecnologia”.

não precisaria ter sido incluída, pois quaisquer direitos de tal natureza seriam contemplados sob o instituto jurídico da propriedade industrial. Se, ao contrário, o termo “tecnologia” é considerado isoladamente, menos sentido faz, vez que eventual abuso na exploração de determinada tecnologia poderia repercutir em outros campos do direito (entre eles, ambiental, civil – no caso de licenciamento de tecnologia, administrativo, regulatório, criminal ou outros), mas não na seara antitruste.

Ante o exposto, a redação mais apropriada para o texto legal teria sido “exercer ou explorar abusivamente direitos de propriedade industrial, direitos autorais ou conexos”. Ainda assim, vale notar que o legislador pátrio deixou para as autoridades de defesa da concorrência e demais operadores do direito o estabelecimento de critérios para que se considere abusivo determinado exercício de direitos de propriedade industrial.

Espera-se, dessarte, que a relevância prática deste texto possa contribuir para a construção de tais critérios, imprescindível para a aplicação curial do direito da concorrência aos institutos jurídicos da propriedade industrial.