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A legitimidade processual dos índios, suas comunidades e organizações para

As relações intersubjetivas têm provocado o surgimento de constantes conflitos, os quais podem ser resolvidos de diversas maneiras. O simples diálogo entre os envolvidos poderá gerar a resolução do caso. Contudo, diante da dificuldade de se chegar a um consenso entre as partes, cabe ao Judiciário exercer seu papel de intermediador e pôr fim à demanda através de uma decisão, a qual deve seguir todos os ritos procedimentais, oportunizando as partes todas as condições para apresentarem seus argumentos e provas.

Entretanto, apesar de o Judiciário representar a decisão final do Estado quanto ao caso em discussão, algumas vezes a decisão proferida não vai ser justa, o que poderá provocar diversos prejuízos aos jurisdicionados que possuam algum tipo de hipossuficiência na relação processual.

Assim, percebe-se que o acesso à justiça possui o enfoque formal, em que representaria tão somente a possibilidade de uma pessoa reivindicar algum direito perante o Estado, através de uma estrutura competente; e o aspecto material, no qual seria o alcance efetivo por parte de alguém à verdadeira solução de um conflito intersubjetivo, com equilíbrio e igualdade.

A CRFB de 1988 apresenta o acesso à justiça como um direito fundamental, eis que se encontra previsto no artigo 5º, inciso XXXV. Conforme o texto “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Caso se faça uma interpretação literal, verificar-se-á que o dispositivo constitucional garante apenas o enfoque formal, contudo, através de uma interpretação sistemática, percebe-se que o cidadão possui direito a

um processo justo.

Capeletti e Garth162 asseveram que a expressão “acesso à justiça” é de difícil definição, mas destacam as duas finalidades do sistema jurídico, conforme já mencionado acima: a primeira de garantir amplo acesso a todos e, a segunda, de produzir resultados justos. Os autores asseveram, ainda, que: “O acesso à justiça pode, portanto, ser encarado como o requisito fundamental – o mais básico dos direitos humanos – de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir, e não apenas proclamar os direitos de todos” 163.

Além de o Judiciário ter o papel de garantir o direito, ele deve utilizar todos os mecanismos processuais para que ocorra o cumprimento da decisão. Para isso, além das medidas judiciais cabíveis, há a necessidade de fundamentação das decisões, com base nos princípios constitucionais, leis, jurisprudências e os precedentes judiciais.

Ávalo164 destaca que o acesso a uma ordem jurídica justa traz a ideia da eficiência, a qual deve ocorrer à luz do princípio da razoável duração do processo.

Os princípios que fundamentam e contribuem com o acesso à justiça são: Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, o Princípio da Inafastabilidade do Controle Jurisdicional, o Princípio da Razoável Duração do Processo, o Princípio do Devido Processo Legal e o Princípio da Igualdade.

Os referidos princípios complementam-se e devem ser respeitados pelo Judiciário, bem como pelas partes, as quais devem cooperar para que se chegue a uma conclusão ideal. Clève165 esclarece que não basta haver Judiciário, mas um que decida, devendo a decisão ser justa e que o povo tenha acesso a essa decisão.

Esclarece-se que nem sempre a facilitação do acesso à justiça, como o jus postulandi nos Juizados Especiais, provocará a melhor resposta do Judiciário, pois a participação de um Defensor Público ou advogado no processo judicial poderá ajudar bastante a parte envolvida, sempre buscando a melhor tese de atuação.

Não se pode esquecer de que muitas pessoas que procuram os Juizados são pobres e, algumas vezes, demandam contra grandes empresas ou órgãos estatais, o que acarreta um desequilíbrio natural das relações jurídicas. Esse raciocínio já havia sido abordado por

162

CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Grecie Northfleet. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2002, p.08.

163

Idem, Ibid. p. 12.

164

SANTANA, Alexandre Ávalo. Os Princípios do Novo CPC e a Tutela Eficiente em tempo razoável. In: FREIRE, Alexandre; DANTAS, Bruno; NUNES, Dierle; DIDIER JR, Fredie; MEDINA, José Miguel Garcia; FUX, Luiz; CAMARGO, Luiz Henrique Volpe; OLIVEIRA, Pedro Miranda de (Org.). Novas Tendências do Processo Civil. Estudos sobre o Projeto do Novo Código de Processo Civil. Salvador: Editora JusPodivm, 2014, v2, p.17.

165

Capeletti e Garth166, os quais destacaram que os obstáculos criados por nossos sistemas jurídicos são mais presentes para as pequenas causas e para autores individuais, especialmente pobres.

Destaque-se que o acesso à justiça encontra obstáculos econômicos, sociais e culturais. Segundo Santos167, o cidadão hipossuficiente encontra mais dificuldade de entender que sua pretensão é viável, conforme transcrição a seguir:

Estudos revelam que a distância dos cidadãos em relação à administração da justiça é tanto maior quanto mais baixo é o estrato social a que pertencem e que essa distância tem como causas próximas não apenas factores económicos, mas também factores sociais e culturais, ainda que uns e outros possam estar mais ou menos remotamente relacionados com as desigualdades económicas. Em primeiro lugar, os cidadãos de menores recursos tendem a conhecer pior os seus direitos e, portanto, a ter mais dificuldades de reconhecer um problema que os afecta como sendo problema jurídico. Podem ignorar os direitos em jogo ou ignorar as possibilidades de reparação jurídica.

Muitos índios são pobres e têm dificuldade de compreender a legislação, o que faz necessário a participação da FUNAI em alguns casos.

O artigo 232 da Constituição Federal de 1988 destaca que os índios, suas comunidades e organização são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses. O artigo 37 do Estatuto do Índio permitia aos grupos ou comunidades indígenas o ingresso em Juízo na defesa de seus direitos, contudo deveriam ser assistidos pelo Ministério Público Federal ou pelo órgão de proteção ao índio. Entende-se que esse dispositivo não foi recepcionado totalmente pela Constituição Federal de 1988, pois esta exige apenas a intervenção do Ministério Público em todos os atos do processo. Por outro lado, Berno168 entende que a FUNAI e o MPF possuem legitimação extraordinária, a qual concorre com a legitimidade ordinária dos índios. Segundo ele, a análise da questão da capacidade processual dos índios foi transferida do âmbito do direito privado e do Código Civil para o âmbito do direito público e da CRFB.

Já Barreto169 observa que o Ministério Público atua na defesa judicial dos direitos indígenas, segundo o artigo 129, V, da CRFB/88, na condição de parte (autor ou réu) ou de terceiro interessado (litisconsorte, assistente ou opoente); ou na condição de fiscal da lei, conforme artigo 231 da CRFB/88, quando intervém em todos os atos do processo.

166

CAPPELLETTI, 2002, p.28.

167

SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela Mão de Alice. O Social e o Político na Pós-Modernidade. 6ª ed. São Paulo: Cortez, 1999, p. 167.

168

BERNO, Alexandre Alberto. A legitimação constitucional ad processum dos índios em face do não atendimento dos direitos indígenas: o direito brasileiro e a Corte Interamericana de Direitos Humanos. UFF-Niterói: Convênio Conselho da Justiça Federal, Universidade Federal Fluminense, 2007, p.59.

169

Independente de qualquer discussão acerca da legitimidade verifica-se a perspectiva constitucional da alteridade, do respeito aos costumes e tradições dos índios, evitando-se associar isso à integração. Surgem, todavia, alguns questionamentos sobre como os índios, os grupos e as comunidades podem exercer essa capacidade processual, já que a CRFB/88 não fez nenhuma limitação, não sendo necessário, em tese, que as comunidades estejam constituídas na forma de pessoas jurídicas. Araújo e Nunes júnior170 destacam que a representação da coletividade deve ser atribuída ao seu líder, existindo a possibilidade dessa situação ser desfeita em caso de não conformidade com a realidade.

Entende-se que os índios devem ter o mais amplo acesso à justiça, inclusive com o apoio da Defensoria Pública da União, já que uma defesa mais técnica poderá garantir uma maior respeito aos princípios do contraditório e da ampla defesa. Ademais, o incentivo à mediação e conciliação deve ser constante, já que muitos casos podem ser resolvidos rapidamente. Pinho e Duarte171 asseveram que o mediador e o conciliador são terceiro na relação conflituosa e facilitam a autocomposição, ajudando as partes a reconhecer o direito uma das outras e, por conseguinte, facilitando a negociação.

Muitas demandas postuladas pelos índios no âmbito da seguridade social são tratadas nos Juizados Especiais Federais, já que o INSS e a União geralmente figuram no polo passivo. A competência é fixada pelo valor da causa, a qual não pode ultrapassar sessenta salários mínimos.

As ações previdenciárias buscadas pelos índios referem-se à concessão ou restabelecimento de auxílio-doença, aposentadoria por invalidez, aposentadoria por idade, salário-maternidade, auxílio-reclusão, pensão por morte. Cabe ressaltar que muitos índios, mesmo figurando na condição de segurados especiais, não conhecem seus direitos, sendo papel da Funai e dos órgãos parceiros promoverem eventos para a conscientização.

Quanto às ações judiciais no âmbito da assistência social, ganham destaque a de concessão de benefício assistencial ao idoso e a de concessão de benefício assistencial à pessoa com deficiência. Já as demandas de saúde discutidas são as que envolvem medicamentos de alto custo, cirurgias, leito de uti, além de algumas ações coletivas direcionadas para melhorar o atendimento em saúde em algumas comunidades específicas, como políticas de vacinação e saneamento básico.

170

ARAUJO, Luiz Alberto David e NUNES JUNIOR, Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucional. 5.ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 430.

171

PINHO, Humberto Dalla Bernardina de; DUARTE, Márcia Michele Garcia. Conciliação e Mediação: Impacto do Novo CPC nos Juizados Especiais. In: DIDIER JR, Fredie (coord.). Juizados Especiais. Salvador: Juspodivm, 2015, p.323.

Muitas dessas demandas não chegam ao Judiciário por falta de informação, já que diversas comunidades indígenas não recebem a devida assistência jurídica da Funai, o que torna necessário o fortalecimento da parceria com a Defensoria Pública da União e com o Ministério Público Federal.

Ademais, o acesso à justiça no âmbito dos Juizados Especiais deve ser avaliado de forma cautelosa, pois a celeridade processual não deve se sobrepor ao processo justo ou devido processo legal, mas sim deve ocorrer uma integração dos referidos princípios para que o Estado oportunize aos jurisdicionados uma resposta rápida e justa. Sugere-se, portanto, que as demandas indígenas, preferencialmente, tenham a participação da FUNAI, como órgão de encaminhamento, da DPU e do MPF, este seja na condição de fiscal da lei ou até como autor, principalmente em demandas coletivas.

4.4 O processo judicial e o sistema de provas adotado pelos índios. Uma reflexão à luz do