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LEILÕES: OPORTUNIDADE, BENEFÍCIO E RISCO

A reestruturação de um setor econômico jamais será causa finita – sua regulação nunca será perfeita, acabada, definitiva. Especialmente quando circunstanciada por intensas inovações de tecnologias e modelos de negócios. Ademais, esse desafio torna-se especialmente ambicioso quando a reestruturação é operada sobre uma indústria complexa como a de eletricidade, caracterizada por: significantes economias de escala e de escopo; longo tempo de implantação e de maturação dos investimentos; atividades tipificadas como monopólio natural; requisitos estritos de coordenação em tempo real da operação dos agentes envolvidos;

e, principalmente, uma exposição a custos marginais persistentemente abaixo do custo médio por longos períodos.

Os principais vetores da reforma iniciada pela Medida Provisória nº 144, de 2003, posteriormente convertida na Lei nº 10.848, foram as deficiências de mercado e de regulação que impediram (ou não favoreceram adequadamente) Tiago de

Barros Correia atuou na assessoria econômica do MME entre 2004 e 2012.

Foi diretor da Aneel entre 2014 e 2018

a contratação tempestiva de nova capacidade de geração, que culminou no racionamento de 2001 e na posterior crise financeira de 2002. Dentre as falhas identificadas, a principal seria a incapacidade de os preços do mercado à vista sinalizarem adequadamente a necessidade de investimentos. Em um mercado em que os geradores hidrelétricos permaneciam como produtores marginais em até 90% do tempo, o preço, fixado pelo custo marginal, tendia a permanecer abaixo do custo médio.

Em tal contexto, a volatilidade dos preços (entendida como a velocidade e dimensão das alterações de preços), combinada com valores sistematicamente abaixo dos custos médios (causada pela predominância da oferta hidrelétrica), atua como uma restrição efetiva ao desenvolvimento de contratos de longo prazo, sem os quais investimentos que requerem longo tempo de construção e de maturação dificilmente se viabilizam. O preço só sinalizaria para a necessidade de novos investimentos quando o suprimento já estivesse em risco de colapso. Assim, o principal propósito do Novo Modelo foi viabilizar a contratação de longo prazo e a adequação dos volumes de investimentos ao ritmo de expansão da carga.

Analisando em retrospectiva, as reformas institucionais implementadas no setor e instrumentalizadas pelos leilões alcançaram seu principal objetivo. De 2004 a 2017 a capacidade instalada de geração cresceu mais de 70% e o volume de energia transacionada no mercado livre atingiu 68.760 MW médios, alta de 440%. Mais importante, a despeito de períodos seguidos de baixa hidrologia, os consumidores não foram submetidos a novo racionamento. O novo modelo foi particularmente bem-sucedido no emprego de leilões regulados para criar um ambiente de negociação conjunta para os contratos de outorga de novas usinas geradoras, de comercialização de energia elétrica e de cessão de garantias financeiras, que permitiram tornar os riscos dos projetos mais compreensivos e viabilizaram que estes fossem financiados por meio de project finance.

Isso possibilitava um maior investimento para um dado volume de garantias corporativas. Esse modelo também teve grande sucesso na introdução das fontes renováveis eólica e solar em nossa matriz por contemplar suas características técnicas e operacionais nas obrigações contratuais de entrega de energia elétrica.

Por outro lado, o processo de reforma e liberalização do setor elétrico (e de outros segmentos regulados que tiveram seus mercados abertos) é basicamente um processo de identificação, precificação e alocação de riscos. No modelo estatizado e verticalizado, a integridade dos riscos era sustentada pelos consumidores ou contribuintes. Nos modelos baseados em mercado, os riscos passam a ser divididos entre todos os agentes.

Tal abordagem em tese, quando suportada por uma boa regulação, permite que os riscos sejam melhores identificados, precificados, mitigados e contratados, e que as decisões sejam baseadas na relação de risco e retorno associada. Na prática, a regulação é um processo de learning by doing, os contratos são firmados em ambientes de incerteza e de evolução tecnológica, de modo que nem todos os riscos são previamente contratados ou regulados.

Com base no aprendizado dos últimos anos, um dos pontos fundamentais a ser rediscutido é exatamente a matriz de riscos embutida nos Contratos de Comercialização de Energia no Ambiente Regulado (CCEAR), objetos dos leilões regulados.

As principais fontes energéticas do País são sazonais, estocásticas e em alguns casos intermitentes, enquanto as secundárias, por terem custos variáveis mais elevados e atuarem como recursos complementares, têm seu despacho dominado pela disponibilidade dos recursos renováveis e estocásticos.

Um problema é que a parcela do risco de entrega de energia ao longo do ano (sazonalização) e ao longo das horas do dia (modulação) foi em grande medida tratada por fora dos CCEARs. Nos casos dos contratos por disponibilidade o risco, em maior ou menor medida, a depender da fonte, era repassado ao consumidor final, e nos contratos por quantidade,

até recentemente exclusividade de hidrelétricas, era tratado por meio do Mecanismo de Realocação de Energia (MRE), que estabelece o compartilhamento do risco da estocasticidade da geração hidrelétrica entre seus participantes.

Se não bastasse a variabilidade das fontes energéticas, o consumo de energia elétrica também é sazonal e estocástico e, salvas felizes coincidências, não terá a mesma sazonalidade típica de nenhuma das fontes. Assim, ao se deter nos CCEARs, percebe-se que, quando a obrigação de entrega de energia elétrica é sazonalizada pelos compradores, o gerador vende energia e compra risco, assim o preço do contrato deve corresponder ao preço da energia mais o prêmio de risco; já no contrato sazonalizado pelo gerador, ele vende energia e risco, então o preço do contrato deve ser o preço da energia menos o prêmio de risco.

Quando olhada para o conjunto de recursos energéticos, verifica-se alguma complementariedade nas sazonalidades das diferentes fontes. O regime de ventos fica mais intenso e constante no período de seca, coincidente com a colheita da biomassa e também quando é maior a incidência solar. Ainda assim, diferenças entre as sazonalizações sempre ocorrerão e, portanto, convém ter mecanismos regulatórios para acomodar os riscos decorrentes.

Apesar disso, ainda não se tentou minimizar o hiato entre as sazonalidades das distribuidoras e dos geradores por meio de melhores contratos, sendo que aquelas referentes às distribuidoras não são sequer solicitadas pelo MME ou pela Aneel nos processos de leilões. Não obstante, a melhor compreensão sobre essa segunda fonte de riscos, que se tornou mais evidente nos últimos cinco anos, sendo hoje objeto de intensa judicialização, será indubitavelmente o eixo condutor da próxima fase de reformas do setor elétrico.

As possibilidades de reforma envolverão necessariamente a rediscussão dos instrumentos de gestão de riscos existentes nos regulamentos, nos CCEARs e nas regras de leilões.

O MRE, por sua vez, talvez não seja mais capaz de mitigar adequadamente o risco hidrológico. Quando foi concebido,

nosso parque gerador era majoritariamente hidrelétrico, sendo as diferenças regionais dos regimes de afluência e a capacidade de armazenamento dos reservatórios suficientes para compensar desvios de geração entre usinas. Porém, com a redução relativa da participação das hidrelétricas na oferta de energia, agravada pelo impacto do aumento da carga sobre a capacidade de armazenamento, as correlações negativas verificadas no início do MRE se tornaram positivas. Em vez de reduzir risco, ele agora o aumenta. O que era solução tornou-se problema. O Mecanismo talvez precise ser substituído por um mercado de contratos derivativos ou por outros instrumentos financeiros de gestão de risco específicos para o setor elétrico.

Adicionalmente, conhecida a demanda sazonalizada e supondo que esta permaneça constante, o Ministério de Minas e Energia poderia conduzir leilões combinatoriais de modo a encontrar ex-post o portfólio de contratos que minimizasse conjuntamente o risco de sazonalidade dos compradores e vendedores. Uma alternativa seria permitir que os vendedores realizassem o “empacotamento” ex-ante e oferecessem contratos que atendessem aos requisitos desejados de sazonalidade. Para tanto, cada CCEAR seria associado a um conjunto de empreendimentos selecionados pelo vendedor para minimizar seu risco.

Cabe ainda destacar o papel dos leilões de novos empreendimentos na diversificação da matriz, com destaque para a inserção de fontes não convencionais: eólica, biomassa e solar.

Se no início do milênio a competitividade delas dependia de leilões específicos, hoje elas competem em pé de igualdade com as fontes primárias convencionais. O avanço das fontes alternativas foi bastante facilitado pela compreensão de que os objetos contratados nos leilões seriam contratos que deveriam ser desenhados de modo a satisfazer as necessidades dos consumidores com respeito às características técnicas de cada fonte. Abordagem semelhante já tem sido adotada pela Aneel em projetos pilotos de contratos decorrentes de resposta da demanda.

Muito se avançou nos leilões de novos empreendimentos, porém alguns aspectos devem ser examinados com o objetivo de aperfeiçoá-los. Os formatos atuais de leilão sequenciais, clock e simultâneo não permitem uma precificação apropriada de empreendimentos complementares, nos quais a presença de sinergia resulte em benefício extra. Isso seria somente tratado apropriadamente com leilões combinatórios, o que coloca desafios computacionais não desprezíveis.

Se a expansão da geração ficou relativamente bem acomodada a um processo de planejamento indicativo, o mesmo não ocorre com o planejamento da expansão do sistema de transmissão. Diante da dissociação dos interesses entre agentes de geração e de transmissão, causada pela desverticalização, e com a taxa de retorno sinalizando a preferência dos agentes, linhas de transmissão absolutamente necessárias têm sido rejeitadas com frequência muito além do razoável. Aqui há um paradoxo:

o agente de transmissão percebe as linhas como bens substitutos em larga medida, enquanto os requisitos de operação da rede básica conferem a cada linha função específica não transferível para alguma outra. Talvez fosse o caso de se buscar inspiração nos leilões da antiga Babilônia.

ARTIGO

AS AMBIGUIDADES NA EVOLUÇÃO