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Tolmasquim foi secretário-executivo

A ADOÇÃO DO NOVO MODELO DO SETOR ELÉTRICO

T. Tolmasquim foi secretário-executivo

do Ministério de Minas e Energia entre 2003 e 2005 e presidiu a EPE de 2005 a julho de 2016

à interveniência de outros fatores. A hidrologia adversa, por si só, não teria sido suficiente para causar a crise”. O documento afirma que “o aumento do consumo de energia correspondeu aos valores previstos e não teve qualquer influência na crise de suprimento”, e conclui que “a energia não aportada ao sistema devido à combinação do atraso de geração programada e à não implementação de novas usinas previstas para o período teria evitado o racionamento em 2001”.

A falta de investimentos na construção de novas usinas no ritmo necessário se explica pela combinação de dois fatores.

Primeiro, as empresas do Grupo Eletrobras diminuíram drasticamente o ritmo dos investimentos em novas usinas em razão dos preparativos para serem privatizadas e das restrições impostas pelo acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI), que fazia com que os investimentos das empresas estatais e públicas fossem tratados da mesma forma que as despesas correntes do governo nos cálculos das metas de superávit primário.

Segunda razão: os investimentos privados não ocorreram no ritmo necessário, dados os altos riscos percebidos pelos investidores no desenho de mercado implementado em meados dos anos 90.

Apesar do mérito do Projeto Re-Seb em introduzir a competição na geração, o novo marco regulatório falhava ao não garantir fluxo de receita estável para o investidor. O empreendedor corria o risco de construir uma usina e não conseguir cliente para contratar sua energia em eventual queda do mercado. Restaria ao empreendedor negociar sua energia no mercado spot, o que não seria um problema tão grande se o Brasil fosse um País majoritariamente termelétrico, com preços no mercado spot mais previsíveis.

Contudo, em um País com predominância de hidrelétricas, o preço depende da hidrologia: em períodos de seca é alto e em épocas de muita chuva é muito baixo. Quatro anos seguidos de boas vazões e baixo preço levariam o investidor à falência.

Em ambiente de alto risco, os investidores privados não fizeram os investimentos necessários à expansão.

O Brasil é um País em que o mercado cresce de 4% a 5% ao ano.

A Eletrobras, apesar de historicamente importante para a expansão do sistema, não tem condições de arcar com os investimentos necessários. Era imperativo atrair os investidores privados.

O desafio, portanto, era reduzir o risco para o investidor e ao mesmo tempo introduzir uma verdadeira competição no setor.

Para isto, era necessário interromper o processo de autocontratação (self dealing), no qual algumas distribuidoras contratavam energia a custos mais elevados de geradores do mesmo grupo empresarial e repassavam o sobrecusto para o consumidor. A solução foi obrigar as distribuidoras a só contratarem energia por meio de leilões públicos. Os vencedores dos leilões assinam um contrato de longo prazo com as distribuidoras, garantindo maior previsibilidade da receita no longo prazo.

Esses contratos são o elemento central da redução de risco dos investidores, aumentando a previsibilidade do fluxo de caixa e facilitando o financiamento. Também são fator essencial na diminuição dos riscos dos financiadores. Assim, o BNDES passou a aceitar os contratos de longo prazo como parte das garantias, implementando um mecanismo de project finance onde os recebíveis servem de colateral para o financiamento.

O Novo Modelo do Setor Elétrico se apoia em contratos como forma de induzir a expansão do sistema. Toda a carga, seja das distribuidoras ou dos consumidores livres, deve estar 100% contratada e todo contrato deve estar lastreado por energia garantida. Isso assegura que sempre haverá capacidade física de geração para atender à expansão do mercado.

As distribuidoras contratam sua energia por meio de leilões no ambiente de contratação regulado, e os grandes consumidores (maiores que 3 MW) e comercializadoras negociam a compra de energia de forma bilateral no ambiente de contratação livre.

O relatório Kelman conclui também que “o fluxo de informação entre o ONS, Aneel, MME e Presidência da República foi inadequado para transmitir ao alto escalão

do governo qual o risco e qual a severidade da crise de suprimento que se avizinhava”. Para resolver esta falha institucional, o Novo Modelo criou o Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico (CMSE), com o objetivo de facilitar o diálogo entre as diversas entidades responsáveis pelo funcionamento do Sistema Interligado Nacional.

Outra inovação de caráter institucional foi a criação da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), cuja concepção partiu do ideal de que é fundamental dotar o Estado de instituições baseadas no conhecimento e na excelência técnica com ferramentas e base de dados adequados à formulação de políticas públicas e ao apoio à tomada de decisão. A EPE foi estruturada para servir de elo entre o conhecimento de ponta e o tomador de decisão.

Sua criação resgatou a responsabilidade do Estado de assegurar o bom desempenho da infraestrutura energética.

O Mercado Atacadista de Energia Elétrica (MAE), instituído pela reforma setorial dos anos 1990, deu lugar à CCEE.

O MAE era um ambiente de contratação sem personalidade jurídica, gerido pela Administradora dos Serviços do Mercado Atacadista de Energia Elétrica (Asmae). O modelo autorregulado do MAE não funcionou, tornando necessária a alteração do arranjo regulatório da comercialização. Aproveitando parte da estrutura do Mercado Atacadista, viabilizou-se a criação da Câmara de Comercialização como pessoa jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, autorizada do Poder Concedente sob regulação e fiscalização da Aneel. A CCEE tem sido essencial para viabilizar a comercialização de energia elétrica tanto no ACR quanto no ACL. Passou a atuar também como agente promotor dos leilões por delegação da Aneel e administrador dos contratos de compra e venda de energia.

Desde sua implantação, o novo marco propiciou a contratação de mais de mil usinas totalizando quase 90 mil MW de capacidade instalada e diversificando a matriz elétrica.

Em energia eólica, desde 2009, foram contratados em 20 leilões

cerca de 700 projetos de parques eólicos, totalizando 17 GW.

Em 2017 o Brasil foi o 6º País a mais expandir a sua capacidade de geração eólica, atingindo o 8º lugar em termos de capacidade total instalada. Em 2018, graças aos investimentos viabilizados pelos leilões, o Brasil atingiu a marca de 14 GW instalados, equivalente à potência instalada da usina hidrelétrica de Itaipu.

Até 2003 praticamente toda a bioeletricidade gerada pela cana-de-açúcar era destinada para autoconsumo das unidades produtoras. Com os leilões, desde 2004, houve crescimento significativo da exportação de energia para a rede elétrica, que se tornou vertiginoso a partir de 2009. Em 2016, aproximadamente 60% da eletricidade gerada a partir das usinas sucroenergéticas (destilarias de etanol) foi exportada para o Sistema Interligado Nacional.

Em energia solar, o Brasil possui características bastante favoráveis, com destaque para a elevada irradiação incidente em praticamente todo território nacional. Em geração centralizada, iniciou-se em 2014 a contratação da energia fotovoltaica por meio de leilões públicos, o que fará o País atingir 2 GW de geração centralizada em 2018. Aliás, em relação às fontes renováveis, vale mencionar que os leilões foram também fundamentais para a expansão do parque hidrelétrico, com a contratação entre 2005 e 2016 de mais de 40 GW dessas usinas.

A diversificação da matriz elétrica se combinou à enorme atração de investidores privados. A quase totalidade dos vencedores dos leilões de eólica, biomassa, solar e termelétricas a combustíveis fósseis é de empresas privadas, nacionais e internacionais. Na hidreletricidade, os vencedores dos leilões eram privados ou uma sociedade entre privados e estatais federais e estaduais. Dada a necessidade de investimentos e de aumento da competição, garantiu-se uma ampla participação de todos investidores, evitando-se a discriminação quanto a origem do capital, permitindo a presença de empreendedores nacionais e estrangeiros; privados ou estatais. Assistiu-se ainda

ao processo de desconcentração do setor, com o surgimento de um número grande de médios investidores. O modelo adotado de contratos de longo prazo associado a financiamento de grande parte do Capex tornou possível o surgimento desses inúmeros novos empreendedores nos leilões de energia.

Passados 14 anos da implantação do atual marco regulatório setorial, vivemos o prelúdio de uma nova era energética com as tecnologias disruptivas. Três tendências estão conduzindo a uma ruptura do paradigma setorial: a descarbonização de grandes setores da economia com a redução dos custos das novas fontes renováveis e a eletrificação do setor de transportes;

a descentralização impulsionada pela forte redução nos custos de recursos energéticos distribuídos, como painéis fotovoltaicos e baterias; e a digitalização da rede com o uso de medição inteligente, automação e internet das coisas.

Neste contexto, são bem-vindas as propostas de aperfeiçoamento do marco regulatório, que permitam a emergência de novos arranjos comerciais, o surgimento de novos agentes setoriais, maior liberdade de escolha para os consumidores e uma maior flexibilidade do sistema elétrico. A prudência, contudo, recomenda que, qualquer que seja a mudança, zele-se pela atratividade dos investimentos em geração e pela sustentabilidade econômica do setor de distribuição. Afinal, a segurança do abastecimento em um País com altas taxas de crescimento do mercado de energia passa necessariamente pelo investimento privado na expansão da capacidade instalada; assim como o atendimento aos pequenos consumidores exigem um setor de distribuição saudável.

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