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1.4. Em poucas palavras

2.1.3. O leitor

Uma outra característica de extrema importância na obra machadiana, já presente desde “O país das quimeras”, é a relação dialógica estabelecida com o leitor. Atestando a abrangência do conceito de leitor, Carlos Reis e Ana Cristina Lopes (1994, p. 217) ressaltam a

existência de uma “[...] pluralidade de enquadramentos metodológicos que contemplam o estudo do leitor, da sociologia da leitura à estética da recepção e à teoria da comunicação”. Neste trabalho considera-se a noção de “leitor implícito”, desenvolvida por Wolfgang Iser. Em O ato da leitura (1996, vol. 1, p. 73), o teórico declara, a respeito do leitor implícito:

[...] ele materializa o conjunto das preorientações (sic) que um texto ficcional oferece, como condições de recepção, a seus leitores possíveis. [...] as condições de atualização do texto se inscrevem na própria construção do texto [...]. A concepção do leitor implícito designa então uma estrutura do texto que antecipa a presença do receptor.

Em A leitura (2002), Vincent Jouvre refere-se, dentre outras, à abordagem proposta por Iser à questão do leitor, e explica:

A teoria do “leitor implícito” de Iser [...] data de 1976. [...] se volta para o efeito do texto sobre o leitor particular. O princípio de Iser é que o leitor é o pressuposto do texto. Portanto, trata-se de mostrar, por um lado, como uma obra organiza e dirige a leitura, e, por outro, o modo como o indivíduo-leitor reage no plano cognitivo aos percursos impostos pelo texto (JOUVRE, 2002, p. 14).

Conferindo dinamismo à noção de leitor implícito, Iser ressalta a existência, no texto literário, do papel do leitor, que se define como estrutura do texto e estrutura do ato (Cf. Iser, 1996, p. 73), e enfatiza:

[...] o papel do leitor se realiza histórica e individualmente, de acordo com as vivências e a compreensão previamente constituída que os leitores introduzem na leitura. Isso não é aleatório, mas resulta de que os papéis oferecidos pelo texto se realizam sempre seletivamente. O papel do leitor representa um leque de realizações que, quando se concretiza, ganha uma atualização determinada e, por conseguinte, “episódica” (ISER, 1996, p. 78).

Em seguida, o teórico resume:

Em resumo, a concepção do leitor implícito representa um modelo transcendental que permite descrever as estruturas gerais de efeitos de textos ficcionais. Pensamos no papel do leitor, perceptível no texto, que é composto por uma estrutura do texto e estrutura do ato. Se a estrutura do texto estabelece o ponto de vista para o leitor, então isso significa que ela leva em conta uma regra elementar da nossa percepção que diz que nosso acesso ao mundo sempre é de natureza perspectivística.

[...] A concepção do leitor implícito descreve, portanto, um processo de transferência pelo qual as estruturas do texto se traduzem nas experiências do leitor através dos atos de imaginação (ISER, 1996, p. 78-9).

Desse modo, uma vez não descartando as experiências do leitor, em detrimento da construção de uma figura pura e simplesmente delineada pelo texto, o conceito do leitor implícito de Iser pressupõe, além das intenções do autor, a presença do leitor empírico na concepção do texto. Como se sabe, o leitor empírico da época desses primeiros contos machadianos era marcado, na maioria das vezes, pelo gosto romântico. Levando-se em conta esses aspectos, é possível concluir que, da união entre os propósitos de Machado de Assis, enquanto autor empírico, e as características do leitor empírico, resulta um leitor implícito de quem se espera uma leitura perspicaz e participativa, no sentido de apreender, nas entrelinhas e estruturas dos contos, o tratamento subversivo dado por Machado ao código literário romântico.

É interessante frisar que essa relação estabelecida com o leitor, característica da obra machadiana, pode ter, em suas raízes, dentre outras particularidades, a ressonância de Edgar Allan Poe. No já referido estudo intitulado Machado de Assis: um escritor na capital

dos trópicos (1998), Patrícia Lessa Flores da Cunha, ao discorrer sobre o modo de narrar

machadiano, destaca como umas das confluências entre o escritor brasileiro e Poe a relação que ambos, em suas obras, instituíam com o leitor. Cunha explica:

[...] referiu-se o fato de Edgar Allan Poe ter construído uma “teoria do

efeito” para, sobretudo através do conto, subjugar [...] seus leitores [...].

Machado de Assis também se dirigia a um indistinto “caro leitor”, porém o deixava, aparentemente, liberto de pressões que viessem a impedir uma inicial e descomprometida fruição da leitura de suas narrativas. A sua “teoria do efeito” era construída [...] às avessas (CUNHA, 1998, p. 106-7).

A pesquisadora, assim, sugere a construção de uma “teoria do efeito” realizada por ambos os escritores, teorias estas permeadas pela presença do leitor, porém, cada uma com suas particularidades.

Um outro aspecto a ser considerado, a respeito da relação estabelecida com o leitor por ambos os escritores, é que Machado de Assis, assim como Poe, exerceu a atividade de colaborador em periódicos. A produção constante empreendida por Machado para a publicação num meio de comunicação de massa – ainda que essa massa, no século XIX, não

fosse tão numerosa, devido aos altos índices de analfabetismo no Brasil –, de certo modo, imprimia não apenas a seus escritos, mas aos de qualquer colaborador, um caráter dialógico em relação a seu público leitor. O perfil das publicações, por sua vez, era, até certo ponto, delineado pelas preferências do público leitor; por isso, faz parte dessa relação dialógica o fato de as características do suporte funcionarem como elemento de influência na produção dos colaboradores, uma vez que estes não podiam, com suas publicações, ferir os preceitos do veículo para o qual escreviam.

Por tudo isso, é possível constatar que procede também da publicação periódica – dado o caráter desta, de maior proximidade em relação ao público, determinada pela própria finalidade desse tipo de publicação – a relação instaurada com o leitor nos textos machadianos. Conforme será enfatizado mais adiante, na análise do segundo par de contos, a publicação em livro já não pressupõe – ao menos não com a mesma intensidade da publicação periódica – o diálogo com o leitor.

A primeira referência explícita ao leitor em “O país das quimeras” se dá na seguinte passagem: “mas qual o motivo destes pensamentos em que se engolfava o poeta? É isso que eu vou explicar à curiosidade dos leitores.” (p. 29). Nessa referência é revelada também, pode-se dizer, uma característica desse leitor: é curioso. Esta é uma das classificações dadas por esse narrador machadiano inicial a seu leitor, que, como se sabe, receberá uma série de designações ao longo das obras de Machado de Assis. A referência mencionada pode também estar sugerindo o perfil do leitor implícito delineado no conto: um leitor curioso, analítico, que investigue o texto e apreenda suas intenções. Outra menção direta ao leitor se dá no momento em que é feita a apresentação da amada de Tito: “não presuma o leitor que a dama de quem lhe falo tinha a vida tão desenvolta como a língua” (p. 30).

Um pouco antes da primeira referência explícita, há no conto uma passagem em que se utiliza o pronome pessoal plural “nós”, que, acredita-se, pode remeter também à figura do leitor: “[...] e ainda assim vemos nós que ele resistiu [...]” (p. 29). O pronome remete, por certo, ao narrador, e também indica uma outra entidade, que, por sua vez, está colocada no mesmo plano desse narrador nessa parte do conto, ou seja, o plano da observação33. Como logo adiante ocorre a referência direta aos “leitores” anteriormente transcrita, é possível inferir que o emprego do pronome “nós” sugere, junto ao narrador, a presença do leitor. De forma semelhante se apresenta o pronome “nosso”: “[...] discutiam os diferentes modos de

33 É importante lembrar aqui as considerações feitas anteriormente a respeito das características do narrador de

inspirar aos diplomatas e diretores deste nosso mundo [...]” (p. 36), e também o “se”, acompanhado do modo verbal imperativo: “não se pense que Tito foi o único a beijar a mão ao gênio soberano” (p. 33).

Além dessas referências, é possível observar no conto o contato com o leitor por meio de alusões do narrador a determinados nomes. Por meio dessas alusões, mais do que indiretamente evocar a figura do leitor, o narrador proporciona a participação daquele na narrativa, no sentido de investigar o significado dos nomes mencionados. Tal aspecto não só permite a instauração de um processo de interação com o leitor, como também, e conseqüentemente, delineia uma constante no perfil do leitor implícito machadiano: um leitor atento e perspicaz, que seja capaz de estabelecer uma relação dialógica com o texto, seguindo suas pistas, e, por conseguinte, decodificando seus significados.

É provável que uma das alusões presentes no conto seja em relação ao personagem Tito. A escolha desse nome para o protagonista pode remeter ao imperador romano Tito Flávio Vespasiano, que governou de 79 a 81 d.C. O imperador teve seu breve reinado marcado por realizações importantes, como a inauguração do Coliseu, e também por catástrofes, como um incêndio em Roma (Cf. Larousse, 1998, vol. 23, p. 5.694)34. O fato de o protagonista de “O país das quimeras” ter o nome de um imperador permite pressupor, num primeiro momento, uma nobreza do personagem; porém, tal suposição é posta em xeque, a partir do momento em que se depara com a descrição dúbia e com tendência à ridicularização que se oferece da personagem no conto. Assim sendo, é possível observar, através da escolha desse nome para o protagonista, a ironia do narrador, que atribui a um personagem medíocre o mesmo nome de um nobre e importante personagem histórico.

Além dessa possível alusão, há no conto algumas outras. Já no primeiro parágrafo, em que o narrador remete a viagens marítimas, são mencionados os nomes de Catão e Anfitrite: “arrependera-se Catão de haver ido algumas vezes por mar quando podia ir por terra. O virtuoso romano tinha razão. Os carinhos de Anfitrite são um tanto raivosos, e muitas vezes funestos” (p. 27). Catão foi um censor romano, que lutava contra o luxo; viveu de 234 a 149 a.C., e era defensor de uma moral austera (Cf. Larousse, 1998, vol. 6, p. 1.246). A menção a esse nome traz, uma vez mais, a referência a um personagem da antigüidade, o que contribui para a viabilidade da hipótese levantada sobre a escolha do nome de Tito. Quanto a

34 Tito Flávio Vespasiano é um dos estadistas biografados por Suetônio, em A vida dos doze Césares (2005). No

entanto, como o intuito nesta dissertação não é o de oferecer pormenores a respeito das alusões feitas nos contos, optou-se por utilizar como referência uma enciclopédia.

Anfitrite, a alusão a esse nome se dá muito a propósito do assunto tratado pelo narrador, uma vez que ela era uma deusa grega, rainha dos mares, esposa de Posêidon (Cf. Larousse, 1998, vol. 2, p. 303). Outro nome aludido, de um personagem que como Catão também faz parte da antigüidade, é o de Alcibíades (p. 27), general do exército na antiga Atenas, que viveu de 450 a 404 a.C. (Cf. Larousse, 1998, vol. 1, p. 156).

Assim como Anfitrite, outras personagens mitológicas são mencionados pelo narrador: Afrodite (p. 30), deusa da beleza e do amor, na mitologia grega, e correspondente à Vênus romana (Cf. Larousse, 1998, vol. 1, p. 108) – que também é mencionada no conto (p. 32) –, Júpiter (p. 34), deus romano, filho de Saturno e Réia (Cf. Larousse, 1998, vol. 14, p. 3.381) e Apolo (p. 40), o Sol na mitologia grega, filho de Zeus e Latona, protetor das artes e deus da inspiração poética (Cf. Larousse, 1998, vol. 2, p. 366).

Por último, é interessante mencionar um nome que aparece duas vezes no conto: Dinis35. A primeira citação acontece na passagem: “— Vamos falar aos soberanos, disse a companheira do poeta. Atravessaram muitas salas e galerias. Todas as paredes, como no poema de Diniz, eram forradas de papel prateado e lantejoulas” (p. 33, grifo do autor), e a segunda, na seguinte:

Não duvidava já de que estava no país das Quimeras; mas, raciocinou ele, para que Diniz (sic) falasse de algumas destas coisas é preciso que cá tivesse vindo, e voltasse como está averiguado. Portanto, não devo recear de cá ficar morando eternamente (p. 35).

A alusão é a Joaquim Guilherme Gomes Coelho (1839-1871), escritor romântico português, conhecido pelo pseudônimo Julio Dinis, com o qual assinou seu mais famoso romance, publicado em 1867, As pupilas do senhor reitor (Cf. Larousse, 1998, vol. 8, p. 1.918 e também MOISÉS, 1981, p. 118-9). Apesar de ter se notabilizado como romancista, Dinis também produziu versos, reunidos na obra Poesias (1873), e é justamente à atuação do escritor como poeta que o narrador remete.

Como se pode notar, os nomes mencionados no conto são de procedência variada; alguns remetem à História Antiga – Tito, Catão e Alcibíades –, outros, à mitologia – Anfitrite, Afrodite,Vênus, Júpiter e Apolo –, e, por fim, à época contemporânea à publicação do conto – o escritor Júlio Dinis. A presença dessas alusões na narrativa proporciona ao leitor o exercício

35 Na publicação original do conto o nome do escritor aparece grafado com a letra “z” final, e é mantido dessa

maneira na transcrição oferecida no volume de anexos. No entanto, como as fontes consultadas para a obtenção de informações a respeito do escritor apresentam a grafia do nome com “s”, optou-se por mantê-la desta forma, no texto da dissertação.

de busca pelo conhecimento dos elementos apresentados, e, reafirmando o que se disse anteriormente, a utilização do recurso das alusões é uma das formas de delinear o perfil do leitor implícito machadiano.

Finalizando, a respeito das alusões destacadas, é possível pensar que a menção ao nome de um escritor contemporâneo à publicação do conto, assim como a nomes de personagens históricos, seja uma espécie de artifício empregado pelo narrador no sentido de conferir verossimilhança à história, uma vez que remete a elementos do mundo real, além de revelar o caráter de intertextualidade presente nas obras machadianas desde o início. Semelhantemente, a alusão a nomes de personagens mitológicos marca a referência ao mundo fictício, de forma que pode funcionar, também, como mais um indicador do elemento fantástico caracterizador do conto.

Assim sendo, essa mescla na natureza dos nomes citados é mais um fator que assinala a ambigüidade ou duplicidade característica do relato, e, por conseguinte, ajuda a manter a hesitação do leitor sobre o fato de a viagem atribuída a Tito ser um sonho que o poeta teve, ou ter realmente acontecido. Esta hesitação não deixa de ser um efeito causado no leitor do conto; porém, é um efeito obtido através de intenções distintas e de forma alterada em relação ao efeito caracterizado do por Edgar Allan Poe, uma vez que o efeito sobre o qual versa a teoria do escritor norte-americano está relacionado à extensão do conto, que deve ser curto – o que não é o caso dos contos em pauta.

Dado o exposto, pode-se concluir que, desde o início de sua produção narrativa, Machado de Assis solicitava um leitor atento, perspicaz e participativo, e não um leitor estático, passivo. Nas palavras de Patrícia Lessa Flores da Cunha (1998, p. 106), Machado vê o leitor “como um cúmplice necessário para a obtenção do que efetivamente pretende com as suas estórias”. Esse leitor está presente desde o ato da concepção da obra, o que resulta num diálogo entre o narrador machadiano e seu leitor implícito, que, por sua vez, inclui o leitor empírico. Diante das considerações feitas em relação à figura do leitor, é possível concluir que em “O país das quimeras” assinala-se um leitor implícito cuja leitura seja participativa e analítica, e resulte na percepção da postura paródica em relação ao cânone romântico, subscrita no conto.

Finalmente, tendo em vista o que foi exposto até aqui, é interessante ressaltar que o adjetivo “quimera”, presente no título do conto, além de remeter ao fantástico, conforme se comentou inicialmente, também sugere o Romantismo, de forma que a viagem de Tito ao país

das quimeras é uma excursão – antecipando desde já o título da reescritura – a um mundo marcado pela atmosfera romântica.

No próximo item serão apresentados os resultados do cotejo entre “O país das quimeras” e sua reescritura “Uma excursão milagrosa”, bem como alguns aspectos particulares deste último texto, assim como se fez nos itens até aqui, em relação a “O país das quimeras”.

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