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1.4. Em poucas palavras

2.1.1. O narrador

O conto se inicia com algumas considerações sobre formas de viajar, que, no terceiro parágrafo, se esclarece fazerem parte das reflexões do protagonista Tito, conforme se pode constatar no seguinte trecho30:

Arrependera-se Catão de haver ido algumas vezes por mar quando podia ir por terra. [...] Mas [...] a via terrestre não é absolutamente mais segura que a via marítima, e a história dos caminhos de ferro, pequena embora, conta já não poucos e tristes episódios.

Absorto nestas e noutras reflexões estava o meu amigo Tito [...]. (p. 27).

Como se pode notar no fragmento transcrito, o narrador utiliza a expressão em primeira pessoa “meu amigo” – que aparecerá diversas vezes no decorrer do conto –, e revela sua onisciência ao mencionar as reflexões do personagem. Um outro fragmento em que fica clara a onisciência do narrador é o seguinte: “isto passou rápido pela mente do poeta” (p. 32). Além disso, esse narrador esboça opiniões – “[...] se pode chamar francamente elegante, na minha opinião” (p. 27) – e comentários a respeito dos fatos – “[...] Tito tem um reverso. Oh! triste coisa que é o reverso das medalhas!” (p. 27).

De acordo com a classificação proposta por Carlos Reis e Ana Cristina Lopes, no

Dicionário de narratologia (1994) – em que os autores expõem diversos conceitos inerentes à

narrativa, utilizando como base as considerações de importantes teóricos, dentre os quais se destaca Genette –, o narrador de “O país das quimeras”, em princípio, e tendo em vista os

30 A partir daqui, como já se ressaltou na introdução deste trabalho, as páginas referentes aos trechos citados dos

aspectos há pouco mencionados, pode ser classificado como heterodiegético em primeira pessoa31, com focalização onisciente, uma vez que não é um personagem da história, apresenta onisciência em relação ao protagonista e se expressa na primeira pessoa. Sobre o narrador heterodiegético, os autores observam:

A expressão narrador heterodiegético [...] designa uma particular relação narrativa: aquela em que o narrador relata uma história à qual é estranho, uma vez que não integra nem integrou, como personagem, o universo diegético em questão. [...] predominantemente, o narrador heterodiegético exprime-se na terceira pessoa [...] o que não impede [...] que enuncie pontualmente uma primeira pessoa [...] (REIS; LOPES, 1994, p. 263, grifo dos autores).

No que toca à focalização onisciente, Carlos Reis e Ana Cristina Lopes (1994, p. 174) explicam:

Por focalização onisciente entender-se-á [...] toda a representação narrativa em que o narrador faz uso de uma capacidade de conhecimento ilimitada [...]; colocado numa posição de transcendência em relação ao universo diegético [...], o narrador comporta-se como entidade demiúrgica, controlando e manipulando soberanamente os eventos relatados, as personagens que os interpretam, o tempo em que se movem, os cenários em que se situam, etc.

Como se pode verificar, as premissas peculiares aos conceitos mencionados vão ao encontro das características apresentadas pelo narrador de “O país das quimeras” desde o início da narração. No entanto, o último parágrafo do conto contém informações que propiciam certa problematização à classificação do narrador proposta há pouco. Eis o parágrafo:

Desde então Tito possui um olhar de lince, e diz, à primeira vista, se um homem traz na cabeça miolos ou massa quimérica. Devo declarar que poucos encontra que não façam provisão desta última espécie. Diz ele, e

tenho razões para crer, que eu entro no número das pouquíssimas exceções.

Em que pese aos meus desafeiçoados não posso retirar a minha confiança de um homem que acaba de fazer tão pasmosa viagem (p. 38, grifo nosso).

31 Apesar de se ter consciência de que a terminologia de narrador em “primeira” e “terceira” pessoa apresenta

alguns problemas no que tange à precisão, por ser bastante conhecida optou-se por utilizá-la concomitantemente à terminologia estabelecida por Genette, assim como fazem Carlos Reis e Ana Cristina Lopes, no Dicionário de

Levando-se em conta a passagem grifada, é possível não somente constatar a expressão do narrador em primeira pessoa, mas também inferir que ele e o personagem Tito possuem alguma relação, ainda que no nível extradiegético (Cf. Reis; Lopes, 1994, p. 295) – isso porque não há, dentro da história, nenhum contato direto entre Tito e o narrador, ou participação desse narrador como personagem. Esta inferência é viabilizada uma vez que o poeta “diz” coisas a respeito do narrador, e realçada pelo fato de esse narrador se referir ao poeta, ao longo do conto, como “meu amigo” e “meu poeta”, expressões que também denotam um tom de ironia por parte do narrador32. A passagem referida do conto pode gerar dúvidas a respeito da posição real desse narrador na história. Quer dizer: se o narrador e o protagonista são amigos, ou, se enfim, possuem qualquer tipo de ligação, será que esse narrador, além de contar a história de Tito, não pode ser também uma espécie de personagem, já que parece se colocar no mesmo plano de existência do protagonista? Nesse caso, a classificação do narrador não seria a de heterodiegético, mas sim, a de homodiegético.

De qualquer forma, acredita-se que o melhor a se considerar, sobre a caracterização do narrador de “O país das quimeras”, é que, no nível intradiegético (Cf. Reis; Lopes, 1994, p. 290), esse narrador é a entidade que possui a função de contar a história de Tito, independentemente do tipo de ligação que possa existir entre ele e o protagonista, no nível extradiegético.

Além disso, conforme de pode observar mais claramente na tabela de confronto referente a esse primeiro par de contos (volume de anexos, p. 139-62), o narrador de “O país das quimeras”, apesar de se expressar inicialmente na primeira pessoa, em grande parte do conto se comporta como um narrador de terceira pessoa. Essa mudança ocorre no momento em que a sílfide – personagem que será abordada no próximo item – entra na narrativa. A partir de então, a atenção do narrador se volta principalmente para a descrição da viagem de Tito ao país das quimeras, de forma que as intrusões e o diálogo estabelecido com o leitor tornam-se mais tênues, cedendo espaço à observação do protagonista, por parte do narrador. Assim, os verbos e referências alterados de um conto para outro, o são da terceira pessoa, em “O país das quimeras”, para a primeira pessoa, em “Uma excursão milagrosa”, em que é o próprio poeta quem narra suas aventuras, conforme se pode constatar na tabela de confronto.

32 Somente a título de esclarecimento, vale destacar que o conceito de ironia, neste trabalho, é entendido de

acordo com a breve explicação dada pelo crítico Ivan Teixeira (1987, p. 80) – “[...] a forma mais elementar da ambivalência machadiana chama-se ironia, figura que, em sentido restrito, consiste em sugerir o contrário daquilo que se afirma” – acrescida das considerações de Linda Hutcheon (1985, p. 73): “A função pragmática da ironia é [...] a de sinalizar uma avaliação, muito freqüentemente de natureza pejorativa. O seu escárnio pode [...] tomar a forma de expressões laudatórias empregues para implicar um julgamento negativo; ao nível semântico, isto implica a multiplicação de elogios manifestos para esconder a censura escarnecedora latente”.

O comportamento do narrador de “O país das quimeras” volta a ser modificado no último parágrafo, quando ele retoma o tom narrativo na primeira pessoa e encerra o conto.

Portanto, quando está narrando especificamente a viagem do protagonista ao país das quimeras, o narrador modifica seu tom voz, assumindo a terceira pessoa, mas, ao concluir a narração da viagem – não o conto –, volta a se expressar em primeira pessoa. Assim, conforme se classificou anteriormente, além de possuir como características a natureza heterodiegética e a focalização onisciente, o narrador do conto de 1862 apresenta traços de primeira e também de terceira pessoa, variação que revela seu caráter de duplicidade. Esse narrador, em “Uma excursão milagrosa”, virá diluído na presença de duas vozes explicitamente distintas, conforme se constatará posteriormente.

Também se pode observar em “O país das quimeras” ocorrências que Reis e Lopes (1994, p. 207) classificam como intrusão do narrador, a respeito da qual assinalam: “a expressão ‘intrusão do narrador’ designa, de um modo geral, toda a manifestação da subjetividade do narrador projetada no enunciado”. Esse caráter de intrusão é propiciado, dentre outros aspectos, pela própria focalização onisciente, mencionada há pouco. Um exemplo de ocorrência da intrusão do narrador no conto é o comentário: “Oh! Triste coisa é o reverso das medalhas!” (p. 27).

Tendo em vista tudo o que foi exposto, conclui-se que o narrador de “O país das quimeras” é marcado pela ambigüidade e sua atuação resulta numa classificação problematizada. Esse caráter de ambigüidade permanece em “Uma excursão milagrosa”, em que se revela na presença de dois narradores distintos. Como se sabe, a questão do narrador é uma das de maior problematização dentro do universo narrativo machadiano. São muitos os trabalhos que se dedicam a tratar do assunto, como é o caso, para ficar em apenas um exemplo, da tese de doutorado de Anna Rita Simoni, “Contos de Machado de Assis: para uma gramática do foco narrativo” (2004).

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