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Leitores-modelo e leitores empíricos: níveis de conhecimento

3 Diante das leituras

3.2 Entre leitores-modelo e leitores empíricos: espaços para intervenção

3.2.2 Leitores-modelo e leitores empíricos: níveis de conhecimento

O conhecimento do código linguístico é, com efeito, questão bastante significativa no contexto desta pesquisa. Ao longo das reuniões, há várias pausas para esclarecimentos sobre a compreensão de determinada palavra ou período. Sem dúvida, entre as estratégias textuais relativas ao leitor-modelo está o conhecimento do código (ECO, 1985, p.47): “o leitor empírico [...] tem o dever de recuperar, com a máxima aproximação possível, os códigos do emitente”; mas, ao ler as transcrições, observa-se que a preocupação mais estritamente relacionada ao conhecimento linguístico parte, na maioria das vezes, da mediação e, em alguns momentos pontuais, de L5 (leitor descrito por essa especificidade no segundo capítulo). As verbalizações revelam, pois, uma discussão sobre o texto pouco focada nas dificuldades que o descompasso entre o conhecimento da língua francesa dos leitores empíricos e aquele previsto para o leitor-modelo poderia gerar.

Na reunião, um dos primeiros comentários relacionados ao texto partiu de L4 que o achou difícil e perguntou porque havia sido escolhido para a leitura. Naquele momento, compreendi o comentário como a manifestação da dificuldade do ponto de vista linguístico; sabendo se tratar de alunos que iniciavam a aprendizagem em FLE, essa já era uma preocupação antes mesmo que viesse a ser manifestada por qualquer um dos integrantes. Não era desejava, contudo, naquele momento inicial, discutir essa dificuldade; mas sim valorizar aquilo que se poderia levantar como

hipótese sobre o texto, antes da leitura, enfatizando as etapas que antecedem uma leitura – dentro das propostas desenvolvidas por Moirand81.

A leitura das transcrições mostra, entretanto, que a volta constante às questões lexicais foram feitas por mim e não tanto pelos participantes. Em outras palavras, quando L4 disse que o texto era difícil, talvez estivesse referindo-se a outra natureza de dificuldade não apenas restrita ao código linguístico; mas, como já havia um parti pris a esse respeito de minha parte – o texto era difícil do ponto de vista do conhecimento de língua dos leitores do grupo – não houve espaço para que se desenvolvesse mais a questão da dificuldade naquele momento. O problema que se coloca, entretanto, é que a própria noção de dificuldade exigiria, também naquele contexto, discussão mais ampla.

O que torna um texto difícil para a leitura em língua estrangeira? Seria, por exemplo, a presença de elementos morfossintáticos desconhecidos pelos leitores? Sim, por um lado, no contexto desta pesquisa, os participantes efetivamente pararam em pontos do texto onde o fato de não estarem familiarizados com esses elementos representou um problema na leitura, como, por exemplo, o fato de não conhecerem a restrição construída pelo uso de ne e que em francês, impedindo com que prosseguissem com a leitura do trecho. Por outro, não há garantias de leitura proficiente conferidas exclusivamente pelo domínio das estruturas morfossintáticas, pois não haveria críticas tais como as evocadas por Perrone-Moisés (como citado no primeiro capítulo) dos professores dos cursos de Letras a seus alunos.

Conforme descrito no primeiro capítulo, a decodificação é um dos processos constitutivos para a construção de sentido na leitura, mas não há nenhuma garantia

de que os alunos de Letras/Francês, que aprendem o presente do indicativo no curso de língua, formulem uma hipótese de leitura para o verso “La terre est bleue comme une orange/ Jamais une erreur les mots ne mentent pas” de Paul Éluard (1929), cuja estrutura morfossintática estaria perfeitamente adequada às primeiras lições de um manual de FLE.

Os participantes do grupo viveram a dificuldade de não conhecer muitas das estruturas e do léxico presentes no texto e, ainda assim, identificaram questões significativas para sua leitura, algumas delas, significativas inclusive para leitores proficientes em língua francesa, como Marie-Madeleine Fargonard, pesquisadora francesa, autora do prefácio e da tradução para francês contemporâneo do texto de Rabelais. Chama a atenção que L5, o leitor que formula o maior número de questões relativas à aprendizagem da língua, inicia sua apresentação falando da vontade de ser tradutor, mostrando, ao longo das perguntas que faz, o interesse em discutir as soluções de tradução para algumas passagens do texto. Mais do que paralisados pela dificuldade, a discussão parece mostrar um grupo de leitores instigados a entender se o que gerava dúvidas no texto era, de fato, o ainda pouco conhecimento linguístico em francês ou se o texto realmente exigia maior cooperação do leitor.

Vê-se, aqui, que a situação de leitura fornece subsídios para o ensino do francês também neste contexto, pois a circunstância da dúvida suscitada é terreno fértil para que as explicações sobre a língua partam da motivação dos leitores.

A situação paradoxal a que se fez menção neste trabalho relativa ao descompasso entre as leituras exigidas dos alunos de Letras/Francês e a aprendizagem de língua mostra-se, ao menos no contexto desta pesquisa, um fator

de motivação para a aprendizagem da língua. Como o leitor precisa atribuir sentido ao que lê e como as questões pontuais se relacionam a um todo (o prólogo) cuja ideia global já foi constituída, os intervalos em que se explicaram elementos morfossintáticos ou lexicais contribuíam diretamente para a compreensão da passagem que gerara dúvidas.

Sem dúvida, a premissa acima de que a explicação de aspectos linguísticos se faz de modo mais coerente quando essa extrapola os limites da frase e quando inscrita num contínuo comunicativo de um texto já se revelou, na história da didática do FLE, bastante profícua, conforme atestam os trabalhos de Moirand (1979) e Vigner (1979) nesse sentido, tendo incorporado os desenvolvimentos dos trabalhos em linguística textual de Harald Weinrich (1963). As contribuições nesse sentido estão presentes nas propostas desenvolvidas de abordagem global da escrita (cf. primeiro capítulo); porém, convém relembrar que essas propostas previam um conhecimento prévio em francês geral82. Também autores como Albert & Souchon

(2000) e Delronche (2004) defendem a leitura literária no ensino do FLE, desde que haja adequação entre os níveis de língua do texto e dos leitores.

No contexto desta pesquisa, observa-se, entretanto, que a exposição à complexidade do texto promove e aguça a curiosidade dos leitores, que acabam confrontados a uma gama de possibilidades semânticas e sintáticas que alimentam a aprendizagem do código linguístico e no outro sentido, a aprendizagem do código promove a compreensão do texto. A dificuldade lexical o desconhecimento (provisório) de estruturas morfossintáticas são aspectos a ser explorados no processo de leitura em contexto didático.

A observação sobre o modo como os participantes leram mostra que foram capazes de ativar as estratégias de alto e baixo nível continuamente, inclusive quando constataram a perda de sentido na leitura, pois localizaram especificamente o lugar em que esta se deu. Assim, ainda que o custo cognitivo (GAONAC’H, 1993) tenha sido alto, houve construção de sentido. A esse respeito, entretanto, cabe fazer uma ressalva no sentido do que o grupo que participou da pesquisa se define como um grupo de pessoas que gosta de ler, que provavelmente já consolidou as estratégias de leitura em língua materna e que, pelo fato de se dispor a participar de uma pesquisa desta natureza fora das atividades obrigatórias do curso, também tem alta motivação para ler em francês.

Ainda sobre as estratégias de leitura observadas, é necessário sinalizar um aspecto contextual que mudou, segundo os participantes, o modo como empreenderam a fase inicial da leitura, a saber, o suporte físico do texto: a fotocópia. Quando perguntados se liam as informações paratextuais antes de começar a leitura de uma obra, todos responderam que sim, mas quando perguntados se haviam lido essas informações antes da leitura do prólogo de Rabelais, responderam que não, pois se tratava de uma fotocópia. Ora o acesso a textos publicados no exterior que por vezes são edições esgotadas faz com que parte considerável das leituras seja feita em fotocópias (ainda que esta afirmação não esteja amparada em dados formalmente verificados, um dia de observação em frente à sala onde ficam as máquinas de xerox no prédio de Letras da FFLCH/USP pode rapidamente corroborar a proposição), será que esse relevante aspecto contextual, tão banalizado, é objeto de reflexão por parte dos docentes ao pensar suas atividades didáticas?

Trata-se de dado contextual importante, pois a resposta dos participantes mostra que se comportam de modo diferente diante de um livro e diante de parte de livro um livro reproduzido em uma fotocópia. Se for levada em consideração a quantidade de vezes que os alunos da graduação em língua e literatura francesa têm de ler nessas condições e se for relembrada a importância dos processos descendentes (GIASSON, 1990) e dos conhecimentos retóricos (MOIRAND, 1979) para o acionamento de hipóteses e do saber enciclopédico no ato da leitura; as considerações sobre o suporte físico do texto devem ser consideradas ao se propor leituras em contexto didático.

A fotocópia83 de que dispunham os participantes do grupo trazia, na folha de rosto, além do nome do autor e da obra, o nome da coleção Pocket classiques, a indicação de outra obra de Rabelais Pantagruel com o número do volume na coleção (no 6204) e o nome de quem traduziu a obra para o francês moderno, fez o

prefácio e os comentários ao longo da obra. A combinação dessas informações poderia gerar uma hipótese primeira sobre o texto a ser lido quanto à inscrição do autor no cânone literário francês; pois os participantes comentaram não conhecer Rabelais. Outro elemento interessante é que o fato de se tratar de uma versão bilíngue (francês do Renascimento e francês moderno) também gerou uma hesitação inicial, sendo comentada como uma possível armadilha para avaliar o grau de atenção com a leitura. A constatação é de que se os participantes houvessem atentado para essas informações, talvez a entrada no texto fosse diferente. Mais uma vez, não é possível afirmar que essa diferença na atitude seja certamente um ganho para a construção de sentido, pois não ler o texto como canônico pode trazer também uma riqueza nos comentários sobre a leitura.

É possível afirmar, entretanto, que, em função dos objetivos definidos para a atividade de leitura em contexto didático, deve-se atentar para a relação que os alunos-leitores estabelecem com o suporte em que lêem.

Enfim, o que se pode verificar ao longo deste capítulo é que tanto o método das verbalizações como o gênero prólogo são instrumentos privilegiados para se chegar aos leitores empíricos. O prólogo, sobretudo o escolhido neste trabalho, por problematizar os modos de se ler o texto e a figura do leitor e as verbalizações por levarem os leitores a manifestarem-se diante dos problemas de leituras que o texto suscita (a ambiguidade entre o riso e o siso, sobretudo) e de seus próprios problemas com a leitura. O modo como essas questões se articulam levam a esta zona intermediária, entre o leitor lúdico e o leitor especializado, zona em que os leitores empíricos se colocam e se pensam, abrindo um espaço ímpar para o desenvolvimento de uma didática da leitura literária neste contexto de formação em língua e literatura estrangeira; e cujas principais implicações, em função do que foi desenvolvido ao longo de todo este trabalho, são apontadas na conclusão que segue.

Conclusão

Como se pode verificar, durante as reuniões, a discussão dos participantes sobre o prólogo de Gargantua tratou de temas centrais também na leitura que fizeram dele outros autores, leitores privilegiados de Rabelais, como Bakhtin, isto é, o vinho, o banquete, os xingamentos, o humor, a ironia e a polissemia; todos eles permearam as cerca de seis horas de conversa à mesa. E, vale lembrar, esses leitores com pouco conhecimento da língua francesa, sem informações prévias sobre Rabelais e Bakhtin, manifestaram estranhamento, desconfiaram das injunções, intuíram as armadilhas armadas no prólogo.

Com efeito, a leitura em grupo promoveu a identificação e o debate de alguns desses temas, dentre os quais se destacam, por um lado, a tensão entre a aparência e a essência, entre o sério e o burlesco e, por outro, a relação com a linguagem, a construção da ambiguidade, da polissemia e das instruções de leitura. Trata-se de temas que surgiram nas discussões com o grupo, mas trata-se também de temas que conservam contornos mais gerais, que ultrapassam a especificidade do prólogo de Rabelais a Gargantua. Autores como Zyngier (2004) e Bloom (2001) entendem que essa é uma das razões que justificam o ensino da literatura, porque o debate sobre os temas que emergem das leituras traz à tona discussões sobre aspectos universais da condição humana, do homem como ser no mundo e como ser de linguagem, manifestados no texto literário.

A obrigatoriedade da leitura em contexto de ensino-aprendizagem, entretanto, parece ir de encontro ao prazer e, neste trabalho, busco respostas metodológicas para diminuir a clivagem entre a leitura de fruição, encarnada por Ludmilla, e a leitura crítica, personificada por Lotaria (Calvino, 1995).

Uma das respostas inscreve-se justamente na escolha do prólogo como corpus. Nele, se estabelece uma relação cotextual importante que se soma à contextual, um destinador instrui seus leitores sobre como gostaria que o texto fosse lido. A proposta se oferece como pacto (a ser aceito ou não), mas, principalmente, se oferece como pacto sobre o qual o leitor é convidado a refletir, problematizando a disposição com que lê, promovendo uma metaleitura, gerando um recuo crítico em relação ao escrito.

O prólogo de Rabelais, como discutido no segundo e terceiro capítulos, convida com bastante insistência seus leitores a desconfiar, e o lugar da dúvida e desconfiança é terreno fértil para se pensar sobre os mecanismos de construção de sentido no ato da leitura, sobre como se lê. Parte-se, então, do resultado desse processo em que o leitor, mais consciente sobre esses mecanismos, passa a ser confrontado às demais leituras realizadas sobre o texto.

Diante do exposto, proponho aqui que se pense uma didática da leitura em contexto de formação inicial em FLE no curso de Letras como uma atividade em que se considere, sempre, o texto do leitor real. Para isso, pode-se organizar a leitura dos textos que compõe o corpus em dois momentos, organizados na forma de intervenções distintas.

Primeiramente, uma etapa de preparação do texto que consiste na leitura, em sala de aula, de um texto selecionado. A proposta é que o grupo de leitores seja convidado a falar sobre o que leu, sem que haja nenhuma preparação a essa leitura. Também em relação a essa etapa do processo, a escolha de textos em que o ato da leitura esteja enunciado na constituição do texto, como no prólogo de Rabelais, é desejável, pois propicia que a discussão possa ser encaminhada nesse sentido.

Busca-se que, nesse momento, não apenas o texto seja lido, mas o leitor verbalize hipóteses sobre como e o que leu. É a partir do fruto de uma relação direta do leitor com o texto que um texto de leitor é gerado.

O professor pode, em seguida, munido dos registros desses textos (anotações sobre os debates, registros gravados), preparar uma segunda rodada de leituras na qual incorpore aquilo que conhece de seu grupo de leitores e o que busca desenvolver sobre o texto lido, confrontando diferentes leituras: as do grupo às suas (que, por sua vez, também são a síntese das leituras que fez sobre determinada obra e autor). Propõe-se, pois, uma abordagem do texto, em sala de aula, que incorpora o texto dos leitores empíricos.

O que se busca assim é conscientizar o leitor sobre o modo como lê (processos cognitivos em jogo) que ele seja estimulado a verbalizar esses processos como forma de consolidar uma experiência de leitura mais crítica e mais especializada, que ele dimensione as estruturas geradoras de efeito e possa guardar distância em relação a elas (inclusive do ponto de vista de suas estratégias do ponto de vista das dificuldades que a leitura em língua estrangeira podem gerar e das estratégias de que se lançam mão nessas situações).

Em seguida, busca-se mostrar como há elementos comuns entre os leitores de formação heterogênea diante do fenômeno literário, mostrando como algo desvalorizado como um “chute”, uma impressão pode se revelar importante para a leitura de um texto e como a impressão é, sim, o primeiro caminho para o estudo do texto. Todo grande teórico leu um clássico pela primeira vez e dele teve impressões que vieram a ser desenvolvidas e ganharam corpo.