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O leitor: aspectos cognitivos da compreensão escrita

1 LEITURA LITERÁRIA E ENSINO: QUE LUGAR PARA O LEITOR?

1.3 Leitores, leitura e FLE

1.3.1 Leituras: leitores, textos e contextos

1.3.1.1 O leitor: aspectos cognitivos da compreensão escrita

Ler já significou extrair sentidos pré-existentes no texto. Segundo Giasson (1990), essa era uma perspectiva de transposição em que o sentido era definido pelo autor e memorizado, tal e qual, pelo leitor. Para a autora, a grande mudança operada nos modelos de leitura foi justamente o papel atribuído ao leitor nesse processo, que não extrai “o sentido” de um texto; mas sim interage com ele em função de suas estruturas cognitivas, afetivas e dos processos (micro, macro e de integração) que emprega para processar a informação na leitura.

A cognição designa um processamento da informação. Trata-se de uma atividade constante para o homem, responsável por organizar a percepção do mundo, a memória, a afetividade, o conhecimento. As estruturas cognitivas – para a descrição do modelo de leitura – são compostas por conhecimentos relativos ao código lingüístico (fonológicos, sintáticos, semânticos, pragmáticos) e conhecimentos de mundo. Como processo constante, a vivência traduz-se em repertórios e saberes que, segundo Kleiman (2002) estão armazenados em esquemas, estruturas genéricas que estruturam esta experiência.

Com efeito, a forma como o cérebro humano armazena informação com estrutura e hierarquia dos conhecimentos já foi objeto de estudos de vários pesquisadores; há, portanto, certa variação na forma e/ou na terminologia como processos semelhantes são denominados por autores distintos. Segundo Pietraróia (2001, p.24), a noção de script foi desenvolvida por Shank e Abelson (1977); frames por Minsky (1975); cenários por Sanford e Garrod (1982). Giasson (1990, p.13) atribui a noção de “esquema” também aos autores Rumelhart (1975) e Anderson (1977). A idéia principal, ainda que haja relativa variação entre os autores, está

associada à maneira como, acionada uma palavra referente a um esquema, aciona- se uma série de informações relacionadas a esse mesmo esquema. A implicação do conceito de esquema na compreensão escrita é a economia e coesão que ele representa na comunicação; assim, quando se reproduz o relato da experiência vivida por determinada antropóloga entre os Tiv, extraída das obras de dois outros autores, não é explicitado o fato de se ter comprado as duas obras – e não a original de Bohannan –, de tê-las lido, de que são feitas de papel, de que foram publicadas por editoras, de que têm capa de papelão, de que livros são vendidos em livrarias, de que se emprega determinada quantidade de dinheiro para comprá-las, de que são pagas em dinheiro, entre tantos outros elementos que compõem o esquema “livro”. As lacunas do texto, por definição sempre incompleto (ECO, 1985), são preenchidas pelo leitor quando necessárias para a construção do sentido. Ao escrever, pressupõe-se uma série de conhecimentos e de esquemas por parte dos que lêem o texto; o que possibilita não ter de se explicitar nos mínimos detalhes cada ação evocada, por exemplo.

Articulada à forma como se estrutura a vivência em esquemas está a constituição de um saber sobre o mundo que pode constituir-se como um objeto mais formal de conhecimento; trata-se do que Kleiman (2002, p.22) designa por saber enciclopédico, informações que o leitor deve ativar no processo da leitura. Ao se usar mais uma vez o episódio relacionado aos Tiv a título de exemplo, vê-se que o leitor deve saber que a Nigéria é um país da África, que se Laura Bohannan é antropóloga e norte-americana, ela não é Tiv nem africana e que os Tiv são objeto de sua pesquisa de campo, que um antropólogo é formado em nível superior, entre tantas outras informações que por um lado, como autores, pressupomos e que, por outro, são ativadas (ou não pelos leitores). O saber enciclopédico, como foi visto, é

um conceito que aparece em diferentes correntes teóricas que buscam refletir sobre a recepção do leitor. Neste contexto de pesquisa, interessa ainda mais pensar que é a relação entre o que se sabe (o dado) e o que se descobre (o novo) uma das formas da construção do saber no ato da leitura. Segundo Giasson (1990, p.11-14):

Para compreender, o leitor deve estabelecer pontes entre o novo (o texto) e o conhecido (seus conhecimentos prévios). [...] Um leitor compreende um texto quando é capaz de ativar ou de construir um esquema que dê conta dos objetos e eventos descritos no texto

Também as estruturas afetivas do leitor, juntamente com as cognitivas, têm papel relevante para a compreensão escrita. Se ele gosta ou não de ler, se a leitura empreendida por ele é uma demanda externa, em contexto escolar, por exemplo, para qual talvez seu único projeto seja prestar conta do conteúdo apreendido ou se, ainda que uma demanda externa, esse leitor tenha interesse e projeto mais individualizados. Aqui reside parte da clivagem à qual se referiu anteriormente entre leitores lúdicos e compulsórios. Além disso, há dimensão afetiva também na maneira como o leitor reage ao que lê, se aceita o pacto que o texto exige para sua aceitabilidade, se adere ou não à leitura. A partir do ponto de vista adotado nesta pesquisa, qualquer didática da leitura literária deve contemplar em alguma medida o gesto de leitura empreendido, atentar para a dimensão afetiva do leitor e para a relação que ele estabelece com as leituras feitas em contexto escolar.

Para a mobilização das dimensões cognitivas e afetivas do leitor, há uma série de operações realizadas para que se tratem as informações lidas. Giasson (1990) descreve cinco processos em jogo no ato da leitura: os microprocessos, relacionados ao reconhecimento de palavras na unidade da frase, a constituição em unidades de sentido e a triagem do que deve ser armazenado (microseleção); os

processos de integração, que operam a conexão entre as frases por meio dos conectores lingüísticos e ativam os esquemas responsáveis pelas inferências na leitura; os macroprocessos, operação pela qual são identificadas as idéias principais, esses processos estão associados à compreensão global do texto; os processos de elaboração, operação relacionada à resposta do leitor ao texto, quando esse constrói uma imagem mental daquilo que lê, faz predições sobre o desenvolvimento do texto, articula o que lê com seus conhecimentos; e os processo metacognitivos, que operam como controle da leitura na identificação da perda da compreensão e a correção de tal perda. Kleiman (2002) também descreve a capacidade de definir objetivos para a leitura como um processo metacognitivo.

Vê-se como diferentes processos atuam na construção e representação de sentido (PIETRARÓIA, 2001) por parte do leitor em relação ao texto, mas é preciso definir o que se entende por “texto”, bem como descrever como é apreendido pelo modelo de leitura de que se parte.