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CAPÍTULO 3: NARRATIVAS POTIGUARAS: do oral e do escrito

3.2 NARRATIVAS ORAIS: VOZES POTIGUARAS CONSTRUINDO IDENTIDADES

3.2.5 A Lenda do Mosquito

Sobre a origem dos mosquitos no mangue, Conceição contou a seguinte história:

Conceição: Aí, o índio... sempre ele é... vive da maré, né? Isso foi nessa... região

aqui nossa. Aí o índio foi pra... pegar caranguejo. Antigamente ele só... pegava caranguejo se... tapasse. Tapasse o buraco... porque tampa o buraco aí ele... o caranguejo fica sem ter suspiração, ele sobe. Aí, aí com uns 15 minutos... aí eles mete o braço... de novo, tenta furar o buraco... do caranguejo. Aí ele já está em cima. Porque ele ta lá, né? sufocado. E o índio tampou várias cordas de caranguejo... aí disse eu vou já dormir um pouquinho aqui na raiz. Porque tem umas raiz que é bem ((abre os braços)). Aí o índio agarrou no sono. Quando ele acordou. Eita, minha Nossa Senhora, meu Deus, Tupã, me ajude. A maré já tinha... lavado todo o caranguejo. Aí ele pegou disse: “E agora?”. Tem nem caranguejo que eu leve pra casa pra dar de comer a meus filho. Aí aí olhou pro o céu, né? e o mangue tava cobrindo assim... aí disse: “Deus Tupã, mande um divertimento para que... nunca mais eu ... eu perda a hora da maré”. Nessa época não tinha mosquito... mosquitinho de mangue, não tinha. Aí ele disse que de repente apareceu. Que foi o mosquito. Ele disse: “Eu quero ver eu nunca mais dormir na maré”. Porque o mosquito, né? picando a pessoa, não tem condição de dormir. Aí ... foi o que aconteceu com esse índio. (Entrevista em

12/04/2010)

Conceição contou esta história no terraço da sua casa, que fica perto do mangue. Ela se referiu à história como “A Lenda do Mosquito”. Bakhtin/Volochínov (2009) ressaltam que a análise da transmissão de um enunciado deve levar em conta a pessoa a quem está sendo transmitida a enunciação e o contexto de produção. A narradora é professora e estava contando a história a mim, que sou, também, professora. Entendo que Conceição tem

conhecimento de que, geralmente, as narrativas indígenas são publicadas como lendas, como folclore, o que, certamente, concorreu para que empregasse a palavra “lenda”. Como relata Bakhtin (2010a, p. 301): “[...] o enunciado se constrói levando em conta as atitudes

responsivas, em prol das quais ele, em essência, é criado.”

Durante toda a sua vida Conceição viveu nesse ambiente e ouviu muitas histórias sobre o mangue, já que o pai era pescador. Nessa narrativa, ela atenta para uma das dimensões da identidade Potiguara: viver da maré. Eles pescam caranguejo, siri, camarão, aimoré, etc., que servem para sua alimentação e para comercializar.

Outras importantes informações sobre a pesca no mangue foram fornecidas por Conceição, no dia 25 de abril de 2012, durante a I Mostra Cultura Viva: povo Potiguara e povo Tabajara do Estado da Paraíba, realizada na Estação Cabo Branco – Ciência, Cultura e Artes. Conceição discorreu sobre a pesca no mangue, desenvolvida por seus antepassados, e relatou os processos de fabricação das canoas e dos utensílios utilizados na pesca. Ela informou que os Potiguara não usavam pregos na fabricação das suas canoas, pois eram feitas com um único tronco de madeira, chamada gripuna. Para a vedação das canoas, usavam uma liga feita com cascas de ostras e óleo de carrapateira (mamona). Usavam o jereré para pescar siri, e para pescar aimorés, usavam a pitimboia, espécie de puçá, cujo arco era feito de uma planta muito flexível, a jaramataia. Em sua fala, Conceição utilizou várias palavras de origem tupi como: jereré, pitimboia, puçá e jaramataia. A palavra canoa também é de origem indígena, vem do aruaque.

Retornando à narrativa de Conceição, é preciso comentar sobre a expressão: “Eita,

minha Nossa Senhora, meu Deus, Tupã, me ajude”. A narradora refere-se a Deus, chamando

Tupã. Esse enunciado denota relações dialógicas de convergência (FIORIN, 2006) com o discurso do colonizador. Ela traz para o seu discurso uma ideia de Deus, criada a partir dos jesuítas. Segundo Bosi (1993, p. 65), o projeto de Anchieta era de converter os nativos e, assim, tentou transpor para a fala dos indígenas a mensagem católica. Para penetrar no imaginário indígena, os jesuítas criaram um sistema de correspondência, muitas vezes, inadequado, como a relação Tupã-Deus. Na representação do sagrado, os indígenas consideram Tupã uma força cósmica identificada com o trovão, o que difere completamente da noção judaico-cristã da palavra Deus.

Outra história narrada pelos Potiguara e que foi repassada por seus ancestrais é a do Batatão. Ele aparece na beira do rio, como relata Dona Severina:

Pesquisadora: Pronto, Dona Severina. Aí a sua avó contava a história do...?

Dona Severina: Ela contava a história do Batatão que o Batatão era o espírito de

uma criança que morreu pagã e por ela ter morrido pagã pelo um determinado tempo as pessoas começaram a ver principalmente nas beiras dos rios aquela luizinha azul e no que as pessoas iam se aproximando ela ia aumentando... e causava medo assombração. As pessoas ficavam... não ficavam em si e precisava... até e... se por acaso outras pessoas vissem e iam lá e aquela pessoa... quando... aquele fogo vendo a quantidade de gente que tava vindo aí desaparecia... aquela pessoa que tava ali que foi atacada por aquele fogo voltava ao normal. Muitas pessoas viram... viu e ainda continua vendo...isso... na beira do rio.

Pesquisadora: Por que é que chama Batatão?

Dona Severina: Batatão por causa do fogo. (Entrevista em 11/06/2010)

Nessa narrativa de Dona Severina, ressurge a voz que denuncia a relação dos Potiguara com os encantados (VIEIRA, 2012). Enquanto, em seu relato, o Batatão aparece na

beira do rio, na versão de “Seu” Marcelino, ele aparece em cima de uma pedra:

Pesquisadora: Como é mesmo o Batatão?

“Seu” Marcelino: O Batatão é uma outra lenda. (ininteligível) Aparece... em forma de uma tocha de fogo. Umas pessoas dizem que... era um menino que era muito levado e morreu pagão, sem se batizar (ininteligível) essas crendices. E daí se transforma nessa tocha de fogo pra correr atrás das pessoas. (ininteligível). E... é comum as pessoas verem por aqui. Hoje...eu acho que isso era mais... antigamente quando não tinha energia, isso aqui era muito comum você ver aqui no sítio do Melo, em cima de pedra. Aquela tochona de fogo, assim, aumentava diminuía ((abrindo e fechando os braços)). Os barcos ali na Baía o pessoal via ele, ele entrava ali na praia. Lááá na popa de um barco tava aquela tochona grande. Ficava pequininim. Daqui a pouco tava aquela tocha grande. “Lá está Cumpade Albino”. Chamava ele Cumpade Albino. “E quem é esse Cumpade Albino?” “É o

Batatão”. Porque se chamar de Batatão ele fica com raiva. Tem que chamar ele Cumpade Albino. São esses os tipos de lendas que temos por aqui. (Entrevista em 25/03/2010).

“Seu” Marcelino refere-se ao Batatão como uma “lenda” e fala de “crendices”.

Convém atentar para as condições de produção do enunciado e o contexto da enunciação. A história foi contada na casa do narrador. Lembro que ele é cacique da sua aldeia e, certamente, conhece que as narrativas indígenas, em geral, são consideradas lendas.

As narrativas de “Seu” Marcelino e de Dona Severina referem-se ao Batatão como

uma criança pagã. Muitos colaboradores da pesquisa me contaram que as crianças pagãs são vulneráveis aos encantados, que podem se “engraçar” delas e levá-las para os seus reinados e transformá-las em encantados.

A história do Batatão estabelece relações dialógicas de convergência com o Fogo do Batatão, um vídeo que aparece no Youtube, onde moradores da cidade de Caiçara do Rio do Vento, no Rio Grande do Norte, contam história semelhante a essa, contada pelos Potiguara. O Fogo do Batatão é o mesmo que Bitatá, Boitatá, Biatatá. Trata-se de um termo originário do tupi-guarani “boi-tata”, que é usado para designar, em todo o Brasil, o fenômeno do fogo fátuo, do qual derivam algumas entidades míticas que assustam as pessoas. Uma explicação científica para esse mito reside numa reação química originada de ossos de animais em decomposição, que são ricos em fósforo, um material inflamável, que deriva o fogo-fátuo.