• Nenhum resultado encontrado

Lendo textos xerocados para reconhecer palavras e se apropriar do SEA

6.2 EVENTOS DE ALFABETIZAÇÃO NA TURMA A: UMA VISÃO GERAL

6.3.1 Lendo textos xerocados para reconhecer palavras e se apropriar do SEA

O evento de leitura que observamos no dia 19/04 é bastante representativo do modo como a leitura recorrentemente acontecia nesse espaço e também dos objetivos para esta leitura, por isso o trouxemos para as análises. O texto em questão era a letra da música “Tu-tu-tu-tu Tupi”, e o evento teve início às 14h, como se segue:

14h00 A professora passa entre as mesas entregando o texto impresso, ao mesmo tempo que afirma: “Agora vocês vão tentar ler”. O texto em questão é o que lemos abaixo. Na folha não havia indicação de autor e a professora também não entra nesta questão. Enquanto isso, ela vai dizendo aos alunos “pode ir lendo”, “vocês sabem”, “Vão tentando”. E as crianças fazem mesmo o esforço da leitura. Observo que elas fazem perguntas umas para as outras, escutam a leitura do colega que já sabe ler, mostram palavras que tinham dificuldade. E a professora comenta: “Quem sabe ler, vai ler tudo. As meninas que não sabem ainda é que vão ler as palavrinhas que conseguir”.

14h06 “Vou explicar de novo”. A professora explica que as crianças que já sabiam ler, leriam o texto todo. Aquelas que ainda não sabiam, tentariam ler as palavras conhecidas e depois deveriam circulá-las. “Pra mostrar pra mim, quando eu chamar […]”. Ao terminar de distribuir o texto, a professora diz: “Quando eu falar parou, parou”.

14h09 “Agora eu vou dar 5 minutos pra vocês pintarem a figura. Porque vocês estão loucos pra pintar”. Ao ouvir isso as crianças se alegram e logo se põem a pintar. 14h15 – A professora sai da sala por um instante, e os alunos seguem pintando o desenho.

14h19 – A professora volta para a sala. E a palavra de ordem é “acabou”. Ela pede para as crianças pegarem o lápis de escrever e guardar o de pintar. E começa a leitura do texto em voz alta. Reforça aos alunos para acompanharem. E, em certa altura, pede a um aluno para continuar, mas o aluno não sabia em que parte do texto ela estava. Então ela retoma a leitura e para no mesmo lugar. Desta vez o aluno segue a leitura, com certa fluência. A professora pede que outro colega leia: “Continua Carina”. A professora vai escolhendo nominalmente as crianças que devem ler. Os demais acompanham em silêncio. A professora escolhe outra aluna que, tímida (talvez por não saber ler), não segue a leitura. A professora diz a ela que não precisa ter vergonha e pede para outro aluno ler. “Vai Samuel, continua”. “Gente, se vocês não se esforçarem, eu não posso abrir a cabeça de vocês, e colocar o texto dentro. Ele é grande, mas as palavrinhas são fáceis”. Um aluno retoma a leitura em voz bem baixa. A professora chama outro aluno: “Vamos, Luiz. Olha a leitura de Luiz. Continua Luiz”. “Muito bem, oh!”, “Ótimo. Leia mais”. “Para os que não estão lendo [...] eu não acredito que vocês não estão lendo nenhuma palavrinha. É porque não olham pro texto. Olham pra mim. Tem que olhar pro texto” (Notas de campo, 04/2016).

Tu Tu Tu Tu Tu Tupi...

todo mundo tem um pouco de índio dentro de si

dentro de si

todo mundo fala língua de índio Tupi Guarani

Tupi Guarani

e o velho cacique já dizia tem coisas que a gente sabe

Jabuticaba, caju, maracujá, pipoca, mandioca, abacaxi, é tudo tupi

tupi guarani

Tamanduá, urubu, jaburu, jararaca, jibóia, tatu... tu tu tu é tudo tupi

tupi guarani

e não sabe que sabia e ô e ô

O índio andou pelo Brasil deu nome pra tudo que ele viu se o índio deu nome, tá dado! se o índio falou, tá falado! se o índio chacoalhou tá chacoalhado! e ô e ô Chacoalha o chocalho chacoalha o chocalho vamos chacoalhar vamos chacoalhar chacoalha o chocalho chacoalha o chocalho que índio vai falar:

perereca, sagui, jabuti, jacaré,

jacaré... jacaré... quem sabe o que é que é?

...aquele que olha de lado... é ou não é? Se o índio falou tá falado

se o índio chacoalhou tá chacoalhado e ô e ô

Maranhão, Maceió, Macapá, Marajó, Paraná, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Jundiaí, Morumbi, Curitiba, Parati, é tudo tupi

Butantã, Tremembé, Tatuapé,

Tatuapé... Tatuapé... quem sabe o que é que é?

...caminho do Tatu... tu tu tu tu todo mundo tem...

Chama-nos atenção, no início deste evento, o empenho das crianças na leitura, demonstrado logo que receberam o texto. Elas queriam saber o que estava escrito ali. Elas, possivelmente, tinham ideias sobre o assunto daquele texto, mas não são suscitadas nessa direção; não são chamadas ao diálogo, à reflexão, à expressão. Ao contrário, são induzidas ao silêncio; são levadas a acompanhar a leitura da professora, a apenas continuar a leitura em voz alta, a buscar por palavras conhecidas num texto “grande”. Tudo isso sob o olhar avaliativo da docente, que reforça que a leitura depende de elas “olharem para o texto”.

O que caracteriza este evento, portanto, é a leitura oral em voz alta: ora esta leitura era feita pela professora, ora era feita pelos alunos. Como vimos, a professora solicitava que um aluno começasse e que outro desse prosseguimento. Então, ela ia orientando e, ao mesmo tempo, avaliando a fluência. Este modo de ler um texto é predominante em turmas de alfabetização, como já apontado em outras pesquisas como em Macedo (2005) e Almeida (2012), por exemplo. No caso dessa turma, podemos dizer que a professora se ampara numa concepção de leitura como decodificação e como avaliação. Essas concepções dão lugar a leituras que em nada modificam a visão de mundo do aluno, como pontua Kleiman (1992). O objetivo da professora era tão somente aferir a fluência na leitura oral dos alunos e verificar se conheciam as letras, se automatizavam as correspondências entre som e grafia etc.

Cabe aqui ainda mais uma reflexão acerca do texto selecionado para leitura nesse dia. Era 19 de abril, dia no qual, aqui no Brasil, considera-se como o “Dia do Índio”. “Tu-tu-tu-tu – Tupi” é letra de uma música infantil que, em alguma medida, nos mostra contribuições da cultura indígena para a formação das palavras que usamos no nosso vocabulário, mas em nenhum momento (antes ou depois da leitura do texto) a professora explora a questão com a turma. A expectativa da docente era apenas de que as crianças decodificassem o que estava escrito ali – o que pode ser notado pelas suas falas enquanto distribuía o texto e pela solicitação de circular palavras conhecidas para apresentar a ela. O fato de ser um texto do gênero letra de música, e seu conteúdo possibilitar um debate sobre a cultura indígena, por exemplo, não fez diferença nesse contexto. Isto se confirma na sequência do evento, narrada a seguir:

14h30 – Depois de reforçar que as crianças deviam olhar para o texto para conseguirem ler, a professora finaliza a leitura em voz alta e logo dita uma palavra, pedindo para os alunos a encontrarem no texto. “Se vire, procure”. “Jacaré, jacaré”. “Procure que eu quero”. “Já procurou, Pedro?”. A maioria da turma sente dificuldade para encontrar a palavra. A professora insiste. “Jacaré, jacaré”. “Eu não quero nem saber, tem que encontrar”. “Você fica conversando quando eu explico”. “Jacaré tem três sílabas. já – ca – ré”. “Vamos outra”. “Tu – ca – no. Essa é bem fácil”. A professora diz a palavra de forma segmentada. “Olhe Victor, por favor. Não deixe Carlos ver não. Que Carlos tá filando muito. Eu não tô gostando disso não”. “Man – di – o – ca”. “Procure aí, eu vou ler de novo”. E a professora faz novamente a leitura do texto em voz alta. Ao final ela diz “circule a palavra guarani” (Notas de campo, 04/2016).

Pelo trecho acima, notamos que, logo após a leitura, a professora solicita que as crianças encontrem as palavras ditadas por ela. A professora até se esforça para tentar auxiliar as crianças a encontrar as palavras que ela dita, demarcando as sílabas que compõem cada uma delas, mas isso não parece ajudar muito as crianças, que continuavam a ter dificuldades em encontrar as palavras. Essa é uma manifestação concreta de uma concepção de texto como um conjunto de elementos gramaticais (KLEIMAN, 1992), que se materializa em situações nas quais as atividades de sala de aula são copiar palavras do texto, ditar palavras e frases do texto etc.

Nossas observações e análises dos eventos de leitura nessa sala de aula indicam que o que normalmente se seguia à leitura em voz alta recorrente na turma era o trabalho com palavras, letras e sílabas, como ratifica a professora em trecho da entrevista realizada com ela:

Um texto bom (para alfabetizar) seria um texto curto, com palavras simples, com mais facilidade para o aluno. Então, o trabalho tem que ser com letras, sílabas e palavras, mas a partir do texto. Trabalhar pequenos textos e explorar (FLORBELA, 11/2016).

Trabalhar com palavras e sílabas retiradas dos textos lidos foi um evento de análise linguística que se seguiu a quase todos os eventos de leitura que observamos; e a ênfase da professora estava exatamente neste evento, colocando o texto apenas como pano de fundo. Pelo que acompanhamos desta sala de aula e pelo que vimos nos cadernos das crianças, notamos que, de fato, a atenção da professora ao longo do ano esteve mais voltada ao trabalho com palavras do que aos sentidos construídos pelas crianças sobre os textos. O tamanho e a facilidade na decodificação eram os elementos que mais importavam para a professora no momento de decidir o que levar para a turma, como ela mesma afirmou na entrevista.

Pela fala da docente, ratificada no evento que estamos apresentando, fica claro que o que ela enfatizava o trabalho com a palavra e suas partes menores, palavras que, embora retiradas do texto, eram descoladas dele, porque não importava o sentido que assumiam ali, mas sim sua formação, em sílabas e letras. Explorar o texto significava realizar diversas atividades com palavras extraídas do texto, mas desprovidas de qualquer sentido, como mostra o trecho a seguir, no qual narramos mais um pouco do evento:

14h43 – A professora avança. Explica aos alunos, de modo bastante breve, que o texto se trata de um poema e que nele há estrofes. “É um poema, minha gente. Tem as estrofes aí”. Ela reforça o título e diz: “Temos que explorar muito este poema”. Então, ela passa a comentar as palavras que ditou e a anotar no quadro. Ela diz uma por uma e reforça as sílabas que formam a palavra. As crianças vão participando da atividade, lembrando à professora quais palavras foram ditadas. As crianças que já dominavam o SEA soletravam as palavras com facilidade. Outras crianças acompanhavam de maneira tímida, parecendo estarem mais perdidas. “Você tá muito atrasado”, diz a professora a um aluno que falou uma letra errada, na formação de uma das palavras. Em um momento, a professora chama atenção de uma aluna que conversava com a colega ao lado, e comenta: “Por isso que eu não gosto dessas cadeiras assim (agrupadas)”. Quando terminou de anotar todas as palavras no quadro, professora e alunos leram mais uma vez, em voz alta, todas elas. E para concluir, numeraram todas com números ordinais, até o 10º; 10 palavras circuladas no texto e copiadas no caderno. “Copiar e separar”. “Separar em sílabas”, orienta a professora,

antes de ir para a mesa dela. Quando alguma criança vai até ela, ela reforça as sílabas das palavras, demonstrando um esforço tremendo para que as crianças compreendam que “sílabas juntas formam palavras”. Mas quando um aluno mostra que não está compreendendo, ela se indigna. “Ah, não. Assim não [...] jacaré, tá errado. Tucano, tá errado. Guarani, tá errado. Tá tudo errado” (Notas de campo, 04/2016).

Ressaltamos aqui o comentário breve da docente sobre qual texto as crianças estavam lendo: “É um poema, minha gente. Tem as estrofes aí”; o que não deixa de ser verdade, porque o texto era uma letra de música. Mas tal comentário não chega a ser uma problematização em torno da questão dos gêneros textuais e sua utilização na vida em sociedade, por exemplo, presente nas orientações oficiais desde a década de 1990 e nos cadernos do PNAIC.

Outro ponto que merece destaque encontra-se no apelo à memória, à fixação, na medida em que as mesmas palavras que foram circuladas no texto foram ditadas pela professora e registradas na lousa para serem copiadas no caderno, pelas crianças, que tinham ainda que separar essas mesmas palavras em sílabas.