• Nenhum resultado encontrado

A LENTIDÃO DOS HOMENS E SUA VISIBILIDADE NO URBANO CAICOENSE

COM MP3/ BLUETOOTH

1.2.1 A LENTIDÃO DOS HOMENS E SUA VISIBILIDADE NO URBANO CAICOENSE

Apesar da pesquisa e da análise apontarem o que foi, até então, narrado nessa primeira parte do trabalho – os lugares opacos, sua lentidão, sua viscosidade e sua rarefação técnica – a condição de heterogeneidade, que é comum aos subespaços, nos alerta para um interessante fato. A cidade lenta nos mostra que, mesmo vivendo em um contexto desfavorável e, talvez por causa disso mesmo, os homens lentos se movem e se fazem ver em todos os lugares caicoenses – mesmo naqueles que são “lócus estranhos” à sua vivência. Isso se dá pela prática de atividades “informais” que imprimem à cidade a ideia de coexistência – aí estão, por exemplo, os catadores de lixo, os limpadores de quintais e terrenos em geral, os lavadores ambulantes de automóveis, os vendedores em domicílio, entre outros. Quando analisamos o que argumenta Souza (1997, p. 09), alertamo-nos para o fato de que

[...] a dimensão mais importante da natureza da cidade é aquela da coexistência. E isto significa, desde logo, assumir a cidade como o lugar do debate. É neste sentido que o urbanismo racional-funcionalista que impregnou as cidades deste século falhou: ao separar as funções da cidade por zona, feriu este princípio da coexistência que é o debate, destruindo, portanto a urbanidade.

O debate e as coexistências presenteiam a cidade com um movimento e um “ânima” próprios, quando oferecem a oportunidade ou a alternativa da prestação de serviços a preços mais acessíveis e o acesso a “produtos populares”, que também custam menos. Parte desses serviços e alguns dos produtos, que advêm dessa dinâmica, não são encontrados na formalidade ou na “cidade formal41”, mas são movimentados, a partir

da “cidade informal”, da troca que se estabelece nessa coexistência explícita, da qual se impregna o “reino” do urbano.

Ainda é possível constatar tais características da lentidão” no tecido urbano, quando constatamos que, mesmo em meio a um menor favorecimento, as pessoas exalam uma “alegria” e um impressionante pulsar da vida em comunidade, ou seja, a força que sustenta o lugar.

As próprias formas, que caracterizam as residências e suas

41 Trazemos aqui a idéia da “cidade formal” e da “cidade informal” para fazermos uma analogia àquilo que Frantz Fanon citado por Santos (1981), chamava da cidade do colonizador e cidade do colonizado ou a cidade indígena. A primeira, tida como ideal e a segunda, consequentemente como o lugar mal-afamado.

extensões, nos lugares opacos, contribuem para a conversa na calçada, o encontro das esquinas, a brincadeira dos meninos e meninas com brinquedos que não trazem em si, por exemplo, a “individualidade do videogame”. Nesses subespaços, ao invés dos muros altos e quase intransponíveis das cercas elétricas, que se erguem sobre estes e da questionável “individualidade respeitada”, as relações acontecem com mais intensidade e de forma mais amiúde. A lentidão parece reservar um tempo maior para essas populações, tempo que supostamente está ausente na vida daqueles que se dizem completamente inseridos no processo atual de globalização ou de globaritarismo. Souza (1997, p. 07) nos aponta que

[...] a cidade não produz apenas a liberdade. Ela instaura redes de ação e de resistência contra a falta de liberdade, contra a desigualdade. O espaço na cidade denuncia escancaradamente esses processos. O espaço é mesmo condição desses processos. E, são exatamente essas redes que colocam em xeque todos os mecanismos de rigidez das hierarquias sociais, os processos de manipulação cultural, gerando fantásticos processos de solidariedade, de igualdade, de fraternidade, de convivialidade. Vá a uma praça pública a uma rua da periferia das grandes cidades brasileiras e descubra isto!

Nesse contexto, os lugares opacos assim o são pela debilidade técnica, e não por outros fatores, senão pareceriam muito mais iluminados se essa relação opaco/luminoso tomasse por base a vida pulsante na comunidade. Mas Santos e Silveira (2006) nos apresentam, com clareza, os conceitos, as diferenças e o porquê destas caracterizações dos lugares e diferenciação dos territórios. É pela presença, principalmente, da técnica, das próteses mais bem equipadas que se dá a mensuração quantitativa/qualitativa da luminosidade ou da opacidade e isto é quase que paradoxal, quando, in loco, observamos cada um destes subespaços em particular. Nesse sentido, assevera Santos (1998, p. 80) que

Se velocidade é força, o pobre, quase imóvel na [...] cidade, seria o fraco, enquanto os ricos empanturrados e as gordas classes seriam os fortes. Creio, porém, que na cidade [...] tudo se dá ao contrário. A força é a dos “lentos” e não dos que detêm a velocidade elogiada por um Virilo em delírio na esteira de um Válery sonhador. Os que, na cidade, têm mobilidade – e pode percorrê-la e esquadrinhá-la – acabam por ver pouco da cidade e do mundo. Sua comunhão com as imagens, frequetemente pré-fabricadas, é a sua perdição. Seu conforto, que não desejam perder, vem exatamente do convívio com essas imagens. Os homens “lentos”, por seu turno, para quem essas imagens são miragens, não podem, por muito tempo, estar em fase com esse imaginário perverso e acabam descobrindo as fabulações. A lentidão dos corpos contrastaria então com a celeridade dos espíritos.

Por isto é que o adjetivo da robustez aparece na nossa análise, para qualificar a lentidão. Mesmo parecendo incoerente, os lugares opacos são os que apresentam em melhor tom a latência da vida consuetudinária, à qual o discurso impetrado pela fábula da “mágica” e “mítica” globalização e do propalado mundo moderno imprimem a alcunha de atraso.Os homens lentos se tornam mais visíveis no urbano caicoense e de tantas outras cidades médias brasileiras porque, geralmente, estão em todos os lugares e de forma a serem notados. Não se escondem por trás das películas dos parabrisas em automóveis e em janelas de escritórios e/ou apartamentos, não andam tão apressados e, portanto, quase imperceptíveis. Não estão tão preocupados com um volume gigante de afazeres e, por isto, carregam o estigma da indolência e da improdutividade, mas, na verdade, também participam da dinâmica que faz a “roda” da cidade girar e o complexo do urbano se revelar. A cidade se faz como nos diz Souza (1997), o lugar do debate, da resistência é aquele que é contra a falta de liberdade.

1.2.2 AS VISCOSAS VIAS E AS ALTERNATIVAS DE DESLOCAMENTOS DOS