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Letargia e Isolamento: a manutenção do sistema

No documento O gosto da embalagem (páginas 98-102)

II) Embalar: os sonhos e pesadelos da mercadoria

3) Letargia e Isolamento: a manutenção do sistema

Dentro do mecanismo de aceitação e rejeição a mercadoria se apresenta como a única alternativa possível para amenizar o sofrimento do consumidor. O conflito tem que ser resolvido em partes, em prestações. Muitas vezes em inúmeras prestações. São tributos de um hipócrita acordo social com vistas na acomodação do estado de coisas para supostamente garantir a tranqüilidade e o conforto almejado por todos.

“A consciência do desejo e o desejo da consciência são o mesmo projeto que, sob a forma negativa, quer a abolição das classes, isto é, que os trabalhadores tenham a posse direta de todos os momentos de sua atividade. Seu contrário é a sociedade do espetáculo, na qual a mercadoria contempla a si mesma no mundo que ela criou.” (Debord, 1997:35)

Existem riscos. O risco é a não realização da mercadoria31. Em outras palavras, risco de que a mercadoria não tenha conseguido perceber acertadamente onde estariam as lacunas a serem preenchidas na “alma” do consumidor. Quem gerencia este risco é o sistema de

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“A ameaça de um encalhe é uma pedra no sapato do capital-mercadoria personificado pelo capitalista. A existência do encalhe significa a morte econômica do capital fixado em forma de mercadoria. Marx utiliza expressões fortíssimas para expor essa questão, a questão da realização. Nesse caso, a mercadoria precisa dar o salto mortal, e talvez acabe quebrando o pescoço. O valor de troca atado ao corpo da mercadoria anseia então para ser redimido sob a forma de dinheiro. Tudo gira em torno do "milagre desta transubstanciacão", como é dito em O Capital;" é este o lugar e a hora em que as mercadorias lançam seus olhares amorosos.” (Haug, 1996:35)

comunicação da mercadoria. Em muitos casos este sistema de comunicação é incorporado pela embalagem e sua respectiva marca.

Na realidade não existe embalagem sem marca. Sem a marca, a embalagem seria um embrulho com boa margem de risco de ser mal interpretada, ou melhor, o risco de ter interpretado mal um consumidor que está sempre carente de pontos de marcação para reconhecer uma possibilidade de satisfação. Ela deveria atender às necessidades do consumidor, quaisquer sejam elas, construídas ou não, ainda que este consumidor tenha outras necessidades que ele mesmo não tenha consciência imediata.

“A medida que a necessidade se encontra socialmente sonhada, o sonho se torna necessário. O espetáculo é o sonho mau da sociedade moderna aprisionada, que só expressa afinal o seu desejo de dormir. O espetáculo é o guarda desse sono.” (Debord, 1997:19)

As necessidades não afloram no dia-a-dia. São necessidades muito profundas como a realização de desejos e vontades fundamentais como a compreensão, o reconhecimento, o respeito, talvez um pouco de paz e harmonia de sentimentos. Como estas necessidades não conseguem ser verbalizadas, algo precisa emergir no lugar delas. Emerge o consumo. Consumo de mercadorias tangíveis, como alimentos, vestuário e automóveis, ou intangíveis como o sexo, a mídia e a política.

“O avanço tecnológico reduziu o mundo. As novas técnicas de comunicação conseguem fazer com que as informações possam ser produzidas, codificadas e emitidas de várias maneiras, atingindo um público cada vez maior e cada vez mais rapidamente. Hoje, sem sair de casa, podemos ver a guerra do Golfo, passar um fax para um amigo na Europa, telefonar para uma filha no Japão. Porém diante deste incrível arsenal de objetos que facilitam a comunicação, nunca fomos tão solitários. A atomização da sociedade, com suas tribos urbanas, seus idioletos e grupos cada vez mais fechados, torna as relações sociais ainda mais difíceis. A mídia nos bombardeia com as mais terríveis barbaridades na hora do almoço, reforçando em nós uma atitude

blasé de indiferença. Envolvidos nesse imenso caos já não sabemos que papel

representar.” (Andrade Silva, 1994:28)

A televisão, por exemplo, colabora com a monotonia geral. Um constante mesmismo, uma constante apresentação de códigos de comunicação de massa. Filmes, programas, novelas e vinhetas, oferecendo maneiras de suportar a crueldade do sistema. Nos intervalos que surgem entre a programação são oferecidas mercadorias, boa parte delas devidamente embaladas.

“À medida que a estética da mercadoria interpreta nesse sentido o ser das pessoas, a tendência progressiva de seus impulsos, de seus desejos em busca da satisfação, prazer e alegria parece desviada. O impulso parece estar atrelado e ter se tornado um estímulo para a adaptação. Vários críticos da cultura vêem nisso um processo de corrupção que atinge diretamente a espécie. Gehlen fala de sua degeneração, à medida que ela se adapta ‘a condições de vida demasiado cômodas’. De fato, há uma certa perfídia na acumulação exercida pelas mercadorias: o que elas acionam ao se oferecerem acaba sendo predominante. Os indivíduos servidos pelo capitalismo acabam sendo, ao final, seus servidores inconscientes. Eles não são apenas mimados, distraídos, alimentados e corrompidos.” (Haug, 1996:79)

Não existe crueldade na mercadoria, mas também não existe doçura. Encontra-se objetivamente exatidão e cálculo. Seria a racionalidade da sedução. A sedução racional passa pelas artimanhas da embalagem. Do sistema de embalagem. Asséptico, anatômico, funcional e protetor. Isola e produz um micro-sistema protegido e com as garantias que veladamente o consumidor gostaria de desfrutar na sociedade de classes.

“O sistema econômico fundado no isolamento é uma produção circular do isolamento . O isolamento fundamenta a técnica, reciprocamente, o processo técnico isola. Do automóvel à televisão, todos os bens selecionados pelo sistema espetacular são também suas armas para o reforço constante das condições de isolamento das "multidões solitárias". O espetáculo encontra sempre mais, e de modo mais concreto, suas próprias pressuposições.” (Debord, 1997:23)

A embalagem é tecnicamente dotada de todos os artifícios necessários para que os mecanismos de confiabilidade se mantenham inalterados. A confiabilidade deste tipo de sistema só pode ser garantida dentro de um processo de isolamento. O contato e a comunhão ameaçam o sistema.

Todo sistema frágil normalmente busca suas garantias baseadas na força. A força do consumo pode ser uma delas. A força da necessidade exacerbada uma outra. Enfim a necessidade de consumo, de aquisição das mais diversas mercadorias para a plenitude do gozo do bem estar.

O consumo no capitalismo é sabidamente uma iniciativa predatória, quase suicida, mas até aqui é o que se conhece como oportunidades de mercado. A paralisia tem que ser disfarçada. O “mundo global”, universalizado, mundializado, exala uma artificialidade de comunhão entre os povos.

Os mecanismos de isolamento só vêm a corroborar o desejo de isolamento. Individual ou coletivo, mas o desejo de se manter isolado, separado, guardado, ou seja, embalado diante de uma diversidade de conflitos e sofrimentos que paradoxalmente teriam sido resolvidos pela própria mercadoria. O modo de produção capitalista que é conhecido em sua expressão maior - a mercadoria - parece ter se perdido justamente pela via da mercadoria.

No documento O gosto da embalagem (páginas 98-102)