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Questões sobre necessidade

No documento O gosto da embalagem (páginas 107-110)

III) Destinação Social da Mercadoria: o conflito sobre o conceito de necessidade

2) Questões sobre necessidade

Aspectos mínimos de sustentação do conceito revelam sua fragilidade diante da “necessidade de sobrevivência”, que mais parece uma desculpa ou uma chantagem (mesmo diante de toda a miséria dos países pobres) do que uma explicação para o problema, quando se quer investigar fenômenos como a necessidade e o consumo. Mesmo considerando que “a totalidade das necessidades para a mera sobrevivência ... representa o limite inferior” (Heller, 1974:22), pode-se entender que a questão alimentar contribui para a explicação das margens do processo e não suficientemente para a compreensão da natureza deste fenômeno33.

Ainda considerando que “as - necessidades naturais - se referem (em Marx) à mera manutenção da vida humana (auto-conservação) e são ‘naturalmente necessárias’ simplesmente porque sem sua satisfação o homem não pode conservar-se como ser natural. Por conseguinte, as necessidades necessárias para a manutenção do homem como ser natural são também sociais (é conhecida a afirmação dos Grundisse que sustenta que a fome se satisfaz por meio de garfo e faca é diferente da satisfeita com carne crua): os modos de satisfação fazem social a necessidade mesma” (Heller, 1974:31).

Assim, para a interpretação de um conjunto de solicitações (ou demanda) seria importante interpretar e entender as condições do consumo. O modo como de fato ele se dá, sob que circunstâncias e quais seriam suas possíveis “leis”. Quais seriam as condições que revelariam a lógica que fundamenta o processo/ato de troca?

Muitas vezes a dimensão da necessidade social está diretamente associada à condição de compra. Marx diz que a elasticidade da condição de necessidade depende do custo da mercadoria. Isto é bem verdade quando se trata de se estabelecer os limites para percepção do consumo. Mas mesmo assim, apesar da importância da constatação já nos tempos do autor, esta afirmativa colabora pouco para a verificação da verdadeira natureza da necessidade.

33 Este texto procura interpretar as questões sobre a criação e manutenção de um conjunto de necessidades que conduza as pessoas ao consumo de certos tipos determinados de mercadoria do setor alimentar. Consumo justificado por estas supostas necessidades (exacerbado, ou não), mas que possa ser interpretado como parte integrante de um modelo mais geral de consumo.

“Se os meios de subsistência fossem mais baratos ou os salários mais altos, os trabalhadores comprariam mais, e haveria maior ‘necessidade social’. Os limites em que a necessidade de mercadorias configurada no mercado - a procura - difere quantitativamente da necessidade social efetiva, naturalmente variam muito para as diversas mercadorias.” (Marx, (1894) 1985:213)

A necessidade também pode ser interpretada como razão de custo, do preço que se paga pela mercadoria, mas ainda este preço seria insuficiente para explicar a elasticidade do conceito, funcionando como um limitante (além da já discutida necessidade orgânica do alimento), como margem, como continente de uma passagem de fluxo - um fluxo constante, bastante fluido de comprar coisas - onde se revela o conteúdo, o querer ter misturado com o precisar ter.34

“A regra do preço caro também nos afeta o gosto de tal maneira ao ponto de fundir inextricavelmente em nossa apreciação os sinais de preço caro com os belos traços do objeto, e subordinar o efeito resultante ao rótulo de uma apreciação da sua simples beleza (...), marcas de preço caro e honorífico, e o prazer que eles proporcionam nesse particular, se fundem com o que nos é oferecido pela cor e forma do objeto (...) e quase tudo quanto sobra de uma análise do valor estético do mesmo é a afirmação de que ele é apenas pecuniariamente honorífico.” (Veblen, 1983:61)

O trabalho e o ócio podem ser parte da explicação do consumo. Interpretando o salário como “recompensa” pelo trabalho e o ócio (ou o lazer transformado em compra) como parte desta “recompensa” pode-se suspeitar que a compreensão do papel consumo do desnecessário (ou o consumo conspícuo) se torna mais importante para se entender a natureza deste movimento do que o consumo de bens para a subsistência.

34 “A necessidade do homem e o objeto da necessidade estão em correlação: a necessidade se refere em todo momento a algum objeto material ou a uma atividade concreta. Os objetos ‘fazem existir’ as necessidades ...” (Heller, 1974:43). Os objetos traduzem estes conceitos de necessidade. São criaturas (aparentemente inanimadas) que dão concretude à solicitações sociais veladas.

Parece bastante óbvio, mas comprar como lazer configura-se em uma modalidade de “turismo urbano” que confere status principalmente para populações de baixa renda. Considerando ainda que na maioria das vezes o trabalho é visto como algo punitivo, como um fardo, ele pode acabar transferindo para a mercadoria comprável a responsabilidade por “recompensar” o período de desconforto com o trabalho.

Algumas classes sociais seriam então mais “recompensadas” que outras, tendo um exaustivo e desgastante movimento contínuo de aquisição de bens que possam retroalimentar sua posição de classe35.

O homem que trabalha e é bem remunerado se diferencia do homem que trabalha e é mal remunerado. Um é melhor “recompensado” que o outro pela atividade de trabalho e ambos esperam receber um prêmio por esta atividade. A expectativa na espera do “prêmio” gera ansiedade. Esta ansiedade é resolvida ou diluída no ato da compra. A ansiedade percebida como expectativa de consumo - propensão ao consumo - pode ser a base fundamental para o entendimento do conceito de necessidade, pela realização da mercadoria, ou pelo recebimento do “prêmio” esperado pelo trabalhador.

“Denominamos ‘meio necessário para a sobrevivência’ em um determinado tempo ou para uma determinada classe, a tudo que serve para a satisfação das necessidades (vitais) e das ‘necessidades necessárias’. Segundo esta interpretação o conceito de ‘necessidades necessárias’ (marxiniano) é extraordinariamente importante, embora se trate de um conceito descritivo. Se indagamos empiricamente que necessidades devem ser satisfeitas para que os membros de uma determinada sociedade ou classe tenham a sensação ou a convicção de que sua vida é ‘normal’ - relacionado a um determinado nível da divisão do trabalho - chegamos ao conceito de ‘necessidades radiciais’.” (Heller, 1974:34)

35 “Para a grande maioria das pessoas de qualquer comunidade moderna, a razão imediata dos gastos, além do necessário ao conforto físico, não é tanto um esforço consciente de se exceder nas despesas de seu consumo visível, como um desejo de manter um padrão convencional de decência quanto ao grau e quantidade de bens consumidos. Esse desejo não é ditado por um padrão fixo, que deve ser alcançado e, além do qual, não há incentivo para progredir. O padrão é flexível, e é

especialmente de extensibilidade indefinida, contanto que haja tempo de se habituar a qualquer aumento na capacidade pecuniária e de adaptar-se à nova e mais ampla escala de gastos, que se segue a um tal aumento.” (Veblen, 1983:49)

Afinal a necessidade como conceito estaria ligada ao consumo em que medida? Seria através do consumo do possível, ou consumo do impossível? Ao que parece nos dois casos o elemento gerador seria o mesmo. Mas qual seria ele? Um padrão de normalidade ou uma expectativa virtual de permeabilidade social?

A vida normal tende a ser medida pela homogenização do consumo. A condição de acesso aos bens de consumo duráveis e não duráveis seria resguardada, na medida do possível, para que parte da sociedade possa permanecer temporáriamente ocupada com alguns objetos adquiridos, evitando questionamento profundo e de ordem social que poderia por em risco o “equilibrio” geral do sistema. Ou seja, um questionamento diante das relações sociais de produção e do comportamento individual (e de conjunto) na composição do tecido social que sustenta este modo de produção não seria oportuno.

No documento O gosto da embalagem (páginas 107-110)