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Liberalismo e Verdade

No documento Liberalismo e Antiliberalismo (páginas 78-80)

LIBERALISMO E ANTILIBERALISMO EM KARL JASPERS

4. Liberalismo e Verdade

A raiz do pensamento livre é o compromisso com a verdade, ensina o filó- sofo em Peligros y albures de la libertad. Para assegurar a liberdade é necessário seguir a razão prática descrita por Kant, que o filósofo retoma com as seguintes palavras (1953): “quando falamos de liberdade pisamos em outra dimensão de fazer e pensar” (p. 219). Uma sociedade politicamente livre necessita da verdade e publicidade dos seus atos para continuar a sê-lo, ele explicou: “A liberdade exige a comunicação da verdade. Esta comunidade exige, por sua vez, a comunicação do pensamento criador e comprovador, que não deve ocultar- se ineficazmente na solidão e retiro, mas manifestar-se publicamente” (idem, p. 212). Parece que é desta compreensão que parte Hannah Arendt quando considera que a experiência fundamental nos regimes antiliberais é da solidão e isolamento. Como vimos nos itens anteriores o pensamento totalitário distorce a verdade, cria uma versão oficial dela e isto é um problema sério para ter uma sociedade comprometida com a verdade. Num sistema totalitário repete-se a mentira até fazê-la parecer verdade, acostuma-se o cidadão a reconhecer como verdadeiro aquilo que lhe é imposto, esclarece o filósofo, em Razão e contra- razão no nosso tempo (s.d):

Na sua insanidade a contra-razão, inimiga da dignidade humana, prende-se aos passos do mais ínfimo encantador de ratos, como o de Hamelin, que representa o seu papel num estado de semi-consciência. A sua antifilosofia, enquanto ele se limita a extrair do seu ins- trumento sons prodigiosos no seio de um mundo livre, pode de começo parecer inofensiva. o mal. O que se passou com ele? Ao ser digerido pelo grupo totalitário, ele se tornou um agente potencial do mal porque abdicou de sua consciência singular como guia de suas escolhas, ele se tornou escravo de uma engrenagem inimiga da liberdade. O mal praticado por Eichmann tinha origem na sua incapacidade de pensar e agir segundo sua consciência. Surpresa com o resultado da irreflexão do militar que observava durante o julgamento, Arendt o estudou cuidadosamente. Segundo ela, ele parecia atingido pela mais absoluta incapacidade de raciocinar. Pode-se dizer que, de fato, Eichmann não racionava. Pelo menos não com autonomia em relação a seu grupo, porque para isto é necessário examinar tudo por si mesmo, o que ele não era capaz de fazer. Esta possibilidade de pensar auto- nomamente é um aspecto que o grupo totalitário erradica com grande eficiência” (p. 92).

6 Destaco especialmente o comentário de Odílio Alves Aguiar que em seu livro Filosofia, Política e Ética em Hannah

Arendt, afirma (2009): “Ela se referia evidentemente a Kant e ao seu Selbstdenken, a Husserl e o retorno as coisas

mesmas, a Jaspers e a sua ideia de pensar independentemente, bem como a interligação heideggeriana entre pensa- mento e sentido” (p. 36).

Mas ela tem repercussões políticas. Fazendo-o renunciar à liberdade da razão, prepara o homem para a escravidão (p. 97/8).

Este era um problema sério da sociedade alemã nos anos trinta e quarenta do último século, o governo nazista inimigo da verdade também o era da Filosofia, pois esclarece o filósofo (s.d.): “Tal inimigo, decidido a nada saber da verdade, é o espírito antifilosófico, sob o rótulo do verdadeiro, exalta tudo quanto con- tradiz, menospreza e desnatura a verdade” (idem, p. 87/8). Em contrapartida, uma sociedade liberal não é possível sem compromisso com a verdade (1965): “Não há paz sem liberdade, mas não há liberdade sem verdade. É indiscutível, a liberdade é vazia, enquanto não vira a verdade da qual jorra e a qual há de servir” (p. 176). Hannah Arendt irá tirar conseqüências desta conclusão quando nota que mesmo em nações formalmente liberais do final do século XX a solidão está presente. É o isolamento dos membros que dá a tônica numa sociedade de massa e com cidadãos fechados em sua individualidade a massa se consolida, pois uma sociedade de massa é formada de pessoas pouco comprometidas com a verdade.

A verdade não é algo que se apreende de uma vez, avalia Jaspers, não é um conteúdo pronto para ser assimilado, mas conquista permanente pessoal e coletiva, todos a buscamos quando vivemos num clima de liberdade. Para se criar uma sociedade liberal é preciso, portanto, haver entre seus membros um compromisso com a verdade, como ele explica: “A verdade não está, em primeiro lugar, num conteúdo, mas na maneira como ele é pensado, demonstrado e discutido, está no modo de pensar, na razão” (idem, p. 176).

A verdade completa, portanto, não é objeto da consciência, mas atitude de investigação que o espírito filosófico alimenta e necessita, ele esclarece na Iniciação Filosófica (1987): “aquele que julga ter descoberto tudo já deixou de filosofar” (p. 114). Para filosofar é necessário estar atento aos erros possíveis, alguns encobertos pela própria meditação filosófica. A reflexão filosófica clarifica-se continuamente, busca obstinadamente a verdade e a alcança apenas parcialmente. A orientação que a Filosofia propicia clarifica a existência, mas o espírito filosófico desvirtua-se sem o compromisso com a verdade. Buscar a verdade ou negá-la é uma encru- zilhada como ele diz em Razão e contra-razão em nosso tempo (s.d.): “Existe aqui uma encruzilhada entre a razão e a anti-razão. A corrida para o abismo começa a partir do momento em que é traída a simples verdade, revelada as mais das vezes ao homem na sua vida de todos os dias e nas situações que esta lhe propõe” (p. 90). É o mesmo compromisso da Filosofia com a verdade que inspira a criação

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de uma sociedade livre e uma política liberal. Para a criação dessa sociedade o debate político é essencial, pois ele propicia a auto-educação para a vida coletiva. E para a vida social e política liberal é importante a Filosofia. Por quê? Porque diz o filósofo na Introdução ao pensamento filosófico (1993): “Ela esclarece o debate, esclarecendo-se os princípios e objetivos, mantendo presentes ao espírito os fatos essenciais a sua hierarquia, sondando o destino da humanidade, e em resumo, incluindo a política na indagação: para que vivemos nós” (p. 65).

É necessário observar o vínculo insuperável ente a liberdade pessoal e a política que o filósofo apresenta como inseparáveis, como se resume no texto abaixo (2006):

O filósofo entende que não faz sentido um povo reivindicar o direito de guiar seu destino entre outros grupos se em seu interior os homens não podem viver em liberdade. Essa posi- ção revela que o filósofo não defende apenas uma democracia formal, incapaz de assegurar na prática a liberdade pessoal, isto é, o direito das pessoas de construírem a própria vida, manifestar livremente o seu pensamento, viverem segundo leis pactuadas. Uma democra- cia apenas formal é a ante-sala do totalitarismo, pois uma liberdade formal se perde com facilidade, mas a liberdade real é irrenunciável (p. 155).

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