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Entre o racionalismo e o romantismo

No documento Liberalismo e Antiliberalismo (páginas 50-53)

Como acentuado acima, o pensamento de Meira Penna se dá em torno da “recuperação do significado da noção de interesse e [d]a maneira criativa como encara a época moderna à luz do conceito de revolução.” Ou seja, é uma resposta à dicotomia entre o racionalismo das luzes e a visão romântica de mundo, ense- jada pela revolução francesa. Acerca do pensamento romântico, afirma Roque Spencer Maciel de Barros: “A tensão romântica se sustenta um momento para romper-se a seguir. A afirmação da liberdade radical acaba na negação radical da liberdade e no triunfo da totalidade. O eu individual é devorado pela ‘atividade originária’”[BARROS, 1971, p. 89]. A humanidade passa, então, a ser uma parte da totalidade. Um órgão visível de Deus, no qual Ele se realiza e, ao realizar-se, transcende a humanidade. Com essa postura o homem perde inteiramente sua liberdade, pois há uma liberdade radical, mas esta é exclusivamente divina. Logo, o homem só pode tornar-se um ser livre e completo por meio de uma ponte que o faça perceber sua ligação com a divindade, quando consegue ver tudo no Uno e pelo Uno, sentindo-se parte do Universo e suprimindo seu eu. Maciel de Barros afirma que “a filosofia romântica se converte em religião romântica. Era de se esperar: o anelo da totalidade, a busca de equilíbrio entre o singular e o universal, sempre em tensão, não se realiza no plano da razão filosófica. De fato, a aspiração romântica ultrapassa o plano da razão crítica e exige uma intuição que, embora chamada às vezes de ‘intelectual’, é substancialmente religiosa”[BARROS, 1971, p. 93]. Podemos ainda abarcar na personalidade do homem, como conse- quência desse anelo de união entre o finito e o infinito, uma insatisfação radical. Ao perceber-se cindido, separado do todo, o homem romântico sente o vazio de Deus, projetando-se, assim, para o passado ou para o futuro, mesmo que este último esteja depois da morte.

Neste movimento, Meira Penna vê um mal, ou melhor, o mal moderno que alija a sociedade da racionalidade. Segundo nosso autor, “o mal romântico implica o culto do amor, do sangue e da morte. É um pathos” [1988, p.62]. Para ele, o romantismo implica no exagero emocional, num “[…] certo histerismo retórico que às vezes descamba para a psicose clínica ou maníaco-depressiva” [1988, p. 62], que possibilita o advento da revolução e do terror. O romântico revolucionário projeta o mal que tem em si no outro; negando ou idealizando suas paixões, ele recusa a precariedade humana. A obra de Rousseau seria, na modernidade, a inauguradora desse mal – por isso Penna recusa ao filósofo genebrino a alcunha de

liberal, uma vez que sua obra abre as portas para a instauração de ideias totalitárias [1988, p. 60]. Pensadores românticos como “Rousseau, Fichte, Hegel, Comte, Marx submeteram a razão a seus propósitos passionais e criaram a ideologia. A ideologia é uma falsa construção teórica, aparentemente racional, mas carregada de energia emocional incoerente e fanática” [1988, p. 65]. O totalitarismo per- sonalista é a forma típica de governo ensejada pelo democratismo romântico, é o “culto da personalidade do herói salvador messiânico”, como denomina Meira Penna, que em Bonaparte, Stalin, Fidel Castro, Che, Mao, etc., vê exemplos desse culto. Já aqui podemos observar como o mal romântico está enraizado na cultura latina, e brasileira notadamente. Um breve golpe de vista sobre a história nos mostra o culto à personalidade política: do getulismo ao lulo-petismo, o povo abre mão da racionalidade em prol da retórica falaciosa. Afirma Meira Penna [1988, p. 19] que, “entre os latinos meridionais […] constitui o Romantismo mais que um ponto de vista filosófico ou um estilo literário: é um modo de vida. É uma forma primária de expressão.” E, contrapondo as personagens literárias de Fausto e Dom Juan, escreve:

Ora, Fausto é um homem de razão, um intelectual apanhado pela cauda mefistofélica à sedução do Romantismo, ao passo que Dom Juan é romântico de nascença, um herói romântico e desafiador demoníaco da ordem do Logos divino. Na verdade, o herói latino típico é eminentemente romântico. Não por acaso escolheu Shakespeare, entre os latinos, seus grandes personagens amorosos – Romeu e Otelo.

Ao contrário dos “povos do norte” onde o lado feminino da psique é comedido, entre nós, latinos, reinaria a figura feminina da ânima, a Grande Mãe12. Nosso

romantismo seria resultado de um complexo edipiano mal resolvido; seríamos, ainda, adolescentes rebeldes que relutam contra o poder da figura paterna. Acerca do papel da ânima na constituição psíquica dos latinos, escreve nosso autor: “No latino, o arquétipo da Grande Mãe exerce seu poder hegemônico muito perto, quase ao nível da consciência, enquanto lhe controla a ânima o comportamento normal em relação ao mundo.” Como parâmetro de comparação, descreve o

12 Ao utilizar a caracterização junguiana dos tipos psicológicos, Meira Penna faz uma correção ao pensamento do mes-

tre suíço que associa à figura feminina o tipo afetivo verdadeiro. Para nosso autor Jung, “possuía o psicólogo uma experiência relativamente limitada de pacientes de origem latina – italianos, espanhóis, outros nacionais da Europa mediterrânica e sul-americanos. Houvesse conhecido essas pessoas com maior intimidade, certamente teria revisto sua opinião. O fato é que os latinos e os meridionais de um modo geral (árabes, africanos, iranianos, hindus) e digo, homens latinos e meridionais são, segundo creio, tipos geralmente afetivos. São homens conscientemente submissos às regras e humores de sua ânima. Não são prometeanos, são epimeteanos.” [PENNA, 1988, p. 18].

50 LIBERALISMO E ANTILIBERALISMO A CRÍTICA LIBERAL DE J. O. DE MEIRA PENNA AO ESTADO PATRIMONIAL BRASILEIRO 51

mesmo fenômeno entre os moradores do norte europeu: “Contrariamente ao que ocorreu entre os anglo-saxões, os alemães, os escandinavos, os suíços ou os holandeses, em cujo meio o arquétipo feminino mergulhou com modéstia, com temor e vergonha, nas sombras do Inconsciente, os católicos do Sul não reprimiram tenazmente os seus impulsos eróticos e seus entusiasmos dionisíacos.” [PENNA, 1988, p. 19].

As funções referenciais dos povos latinos constituir-se-iam em afetos extra- vertidos e intuições profundas, inclusive nos campos político e social. Por isso nosso autor faz a caracterização psicológica do brasileiro (e que pode ser estendida aos demais povos de mesma origem) como um povo afetivo intuitivo, longe do racionalismo – que representa, para ele, a forma de expressão consciente daquela que denomina de “sociedade lógica”. Destacando a relação entre o complexo edipiano e o estado patrimonial, o mesmo autor escreve:

Na verdade, a noção de um Complexo de Édipo possui limitado mérito revolucionário em nossas partes do globo, já que sabemos intuitivamente que, em nossa sociedade patriarcal e patrimonialista, é o Pai de fato o representante do Logos. Ele é o chefão, rodeado de prestígio, respeito e não pouco terror – Pai, padrinho e patrão. A questão existencial que comporta o machismo latino é, precisamente, contra ele rebelar-se como o espanhol que, ao chegar a um novo país, pergunta: “Hay Gobierno? Soy contra!” [PENNA, 1988, p. 20].

Aplicando o modelo da racionalidade afetiva na interpretação psicopatológica do povo brasileiro, Meira Penna sintetiza, em três pontos, os elementos sociais que caracterizariam nossa disposição romântica para a política:

1) O predomínio do fator emocional, em detrimento do racional. Hegemonia do coração sobre a mente. Como corolário, a constatação de que o romantismo funciona na base de uma lógica defeituosa, arcaica, e sofre a influência de slogans, de princípios sociológicos de evidente primarismo, de concepções conspiratórias do mundo (os grandes bancos, os judeus, os monopólios internacionais, o Pentágono, as multinacionais, o FMI, a CIA, etc), de projeções contra bodes expiatórios estrangeiros, de ideologias espúrias. O romântico é essencialmente o indivíduo possuído pelo íncubo ideológico.

2) O ímpeto libertário utópico – o que implica o frenesi antinômico irrefletido que despreza a difícil problemática da ordem legal, isso porque, negando o mistério da iniquidade, julga o homem fundamentalmente bom (“O brasileiro é homem bom”), cabendo à sociedade toda a culpa dos males deste nosso mundo imperfeito. O romantismo gera assim o álibi para o crime, a revolta e a transgressão.

3) A confiança na letra ao invés de no espírito da lei abstrata. Em outras palavras, a con- vicção de que as instituições funcionam através de cartas, constituições, leis, decretos, regulamentos, organogramas, etc, expedidos sem qualquer consideração quanto à sua aplicabilidade e meios de imposição, se necessário coercitivos. O romântico não com- preende que, em qualquer lei, o importante não é sua mera proclamação verbal, mas a determinação interior de obedecê-la e a exterior de impô-la. Sobretudo, a ilusão nefasta que considera a possibilidade de, através de uma simples penada, resolver os complexos problemas políticos e sociais da nacionalidade. O que se poderia também descrever como a “magia negra institucional”, a superstição de que o plano arquitetônico ergue o edifício por si mesmo quando, na realidade, o dilema político se debate na educação e cultura do povo. [PENNA, 1988, p. 188].

No entanto Meira Penna não se limita a diagnosticar as patologias psíquicas da sociedade brasileira. O autor acredita que é possível mudar o quadro mental apresentado, e essa mudança somente é possível por meio da difusão das luzes da Razão no cerne da sociedade brasileira; esta é a solução para as contradições e irracionalidades apresentadas por nossa tradição patrimonialista.

No documento Liberalismo e Antiliberalismo (páginas 50-53)