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É possível explicar a liberdade a partir de três aspectos distintos: a) os agentes que são livres; b) as restrições ou limitações de que estão livres; e c) aquilo que têm liberdade para fazer ou não fazer (definição de liberdade social de forma triádica). Partindo dessa premissa, pode- se afirmar que, no aspecto religioso, os indivíduos terão liberdade de consciência quando estiverem livres para:

[...] concretizar seus interesses morais, filosóficos ou religiosos sem restrições legais que lhes exijam de comprometerem com qualquer forma específica de

590 DIMOULIS; MARTINS, 2014, p. 218-229. 591 ALEXY, 2014, p. 117.

ato religioso ou de outra natureza, e quando os demais têm o dever jurídico de não interferirem.593

Voltando-se para a liberdade de consciência, Rawls diz que as partes devem escolher princípios que assegurem integralmente sua liberdade religiosa ou moral, mesmo sem saberem quais são suas convicções religiosas ou morais ou o teor específico de suas obrigações morais ou religiosas ao interpretá-las (vêu da ignorância). Para ele, a liberdade legal de consciência precisa ser o único princípio aceitável, pois somente assim não haverá o risco de uma doutrina religiosa ou moral predominante perseguir ou reprimir as demais.

Rawls destaca que o princípio da liberdade legal, no caso, poderia ser atacado com a afirmação de que sendo “absoluto o dever para com a lei divina e religiosa, não é permissível, do ponto de vista religioso, nenhum entendimento entre pessoas e confissões diferentes”594, mas

considera que não há como esperar que outros concordem com uma liberdade inferior. Segundo defende, a primazia da liberdade implica dizer que uma liberdade fundamental só pode ser limitada ou negada em benefício de outra liberdade e jamais por consideração de bem público ou de valores perfeccionistas.

Desse modo, a prioridade das liberdades não é infringida quando ela é regulada, como é preciso na prática para que se combine com outras liberdades, num sistema único, assim como para “se adaptarem a certas condições sociais necessárias para o seu exercício duradouro.”595

O problema de especificar as liberdades fundamentais e justificar sua prioridade pode, para Rawls, ser compreendido como o de determinar termos equitativos de cooperação com base no respeito mútuo, o que era feito de modo muito restrito até as guerras religiosas dos séculos XVI e XVII, pois naquela época a cooperação social, baseada no respeito mútuo, era considerada impossível para os que professavam uma fé distinta. É suposição crucial do liberalismo, diz ele, a ideia de que cidadãos iguais têm concepções do bem diferentes e, até mesmo, inconciliáveis entre si.596 Mas desde que essa pluralidade de concepções do bem

respeite os limites que são traçados pelos princípios de justiça, é aceita pelo seu liberalismo. A liberdade de consciência, que é, para muitos, a matriz da liberdade religiosa, desdobra-se em vários outros campos, como o filosófico, o político e o ideológico, todos tutelados pela norma constitucional. Desse modo, seja abrangido pelo conceito mais amplo de

593 RAWLS, 2008, p. 248. 594 Ibid., p. 255.

595 RAWLS, 2011, p. 350. 596 Ibid., p. 359.

liberdade religiosa, seja como aspecto da liberdade de consciência, o ateísmo e o agnosticismo também estão tutelados pela Constituição de 1988.597

Embora haja aqueles que defendem a posição matricial da liberdade de consciência em relação à liberdade religiosa598, sendo, esta, por exemplo, a doutrina majoritária portuguesa,

também existem aqueles que o fazem com relação à liberdade de pensamento, como é feito pela doutrina majoritária brasileira.599 Por isso, destaca Weingartner Neto, inclusive, a dificuldade

de distinção, em face da permeabilidade categorial, parecendo impossível, afirma ele, “circunscrever as liberdades comunicativas de modo geometricamente perfeito.”600 De acordo

com o seu ponto de vista, como o ateísmo começa onde a religião termina, não estaria protegido pela liberdade religiosa, ainda que merecedor da mesma tutela constitucional. Assim, para ele o ateísmo ancorar-se-ia na liberdade de consciência, enquanto a liberdade de crença (art. 5º, VI, 2ª frase, CF/88), como desdobramento da liberdade religiosa, significaria “nuclearmente, a livre escolha e a possibilidade de mudar e/ou abandonar, a qualquer momento, a própria crença religiosa.”601

Importa notar, no entanto, como fazem Pieroth e Schlink, que não estariam realmente protegidas a liberdade de religião e de ideologia acaso não estivesse garantida, também, “as negações do correspondente pensamento, discurso e atuação”, motivo pelo qual se pode dizer que “do âmbito de proteção faz parte, a par da liberdade de credo, de confissão e de atuação”, que são qualificadas muitas vezes como positivas, também a denominada liberdade negativa, consistente em não acreditar, em não professar um credo ou uma ideologia, isto é, “de guardar silêncio sobre o assunto, de abandonar a igreja ou uma comunidade ideológica, de omitir atuações de orientações religiosas e de não estar exposto de forma irreversível à influência de determinado credo, com seus atos e símbolos.”602

Realmente, a liberdade religiosa configura-se, sobretudo, como uma liberdade negativa, o que significa dizer que o “Estado não pode abraçar uma religião, não pode impor a ninguém qualquer religião, assim como não pode impedir ninguém de professar determinada religião.”603

597 ROTHENBURG, Walter Claudius. Religião como direito no estado democrático laico. In: LAZARI, Rafael

José Nadim de; BERNARDI, Renato; LEAL, Bruno Bianco (Orgs.). Liberdade religiosa no Estado democrático de direito: questões históricas, filosóficas, políticas e jurídicas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014. p. 23.

598 RIVERO, Jean; MOUTOUH, Hugues. Liberdades públicas. Trad. Maria Ermantina de Almeida Prado

Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 523.

599 MARTINS, 2012, p. 354.

600 WEINGARTNER NETO, Jayme. Liberdade religiosa na Constituição: fundamentalismo, pluralismo,

crenças, cultos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 82.

601 Ibid., p. 114-115.

602 PIEROTH; SCLINK, 2012, p. 248-249. 603 SCALQUETTE, 2013, p. 177.

Para Tavares, a liberdade religiosa, conforme prevista na Constituição de 1988, inclui a liberdade de opção ou não por valores transcendentais, a liberdade de crença num sistema de valores e de “seguir dogmas baseados na fé e não na racionalidade estrita”, abrangendo, ainda, a liberdade de liturgia ou cerimonial, o que pressupõe a dimensão coletiva dessa mesma liberdade. Envolve, da mesma forma, a liberdade de culto, inclusive em seu aspecto propriamente individual, bem assim a liberdade de “não ser o indivíduo inquirido pelo Estado sobre suas convicções” e de “não ser o indivíduo prejudicado, de qualquer forma, nas suas relações com o Estado, em virtude de sua crença declarada.”604

Pode-se afirmar, com base em tudo o que foi dito até aqui, que a liberdade religiosa compreende duas grandes dimensões, uma subjetiva e outra objetiva. Como direito subjetivo, pode ser vista sob a perspectiva individual e, neste caso, pertence aos brasileiros e estrangeiros, sendo possível também, em nome dela, proteger o direito subjetivo das pessoas jurídicas (igrejas e confissões religiosas). Sob o prisma objetivo, pode ser vista como princípio, como dever de proteção e como garantia institucional. Como vetor objetivo, essa segunda dimensão é, diz Weingartner Neto, “tradicionalmente tratada na doutrina brasileira como princípio da separação das confissões religiosas do estado e/ou da não confessionalidade”605, o que remete

diretamente ao artigo 19, I, da CF/88. Num Estado democrático, “a expressão coletiva da liberdade religiosa implica sempre uma obrigação para o poder político de adotar uma posição de neutralidade em sua relação com as diferentes confissões religiosos que tenham raízes na sociedade.”606 Esta relação pode ser articular através de diversos padrões e modelos, com

respeito ao grau de separação entre Estado e organizações religiosas.

Por outro lado, em sua dimensão individual, a liberdade religiosa contém uma pluralidade de direitos individuais que estão relacionados diretamente com outros direitos fundamentais e também com valores. O direito de liberdade religiosa implica necessariamente a ideia de “diversidade de crenças, de ritos religiosos e de práticas de culto, mas sem que a ninguém seja lícito invocar tal liberdade para a prática de actos que sejam incompatíveis com a vida, a integridade física ou a dignidade das pessoas e os bons costumes.”607

604 TAVARES, André Ramos. O poder judiciário entre o estado laico e a presença religiosa na Constituição de

1988. In: LAZARI, Rafael José Nadim de; BERNARDI, Renato; LEAL, Bruno Bianco (Orgs.). Liberdade religiosa no Estado democrático de direito: questões históricas, filosóficas, políticas e jurídicas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014. p. 117.

605 WEINGARTNER NETO, 2013, p. 268. 606 RUIZ-RICO, 2011, p. 167.

607 SOUSA, Rabindranath Valentino Aleixo Capelo de. O direito geral de personalidade. Coimbra: Coimbra

Existem soluções variadas no trato da neutralidade religiosa e no reconhecimento da liberdade religiosa como direito subjetivo individual e também coletivo. No modelo confessional, sempre há uma dose de privilégio em favor da comunidade religiosa dominante. No estado laico, por sua vez, uma solução é sempre mais radical, e envolve, como consequência lógica das próprias ideias envolvidas no princípio da laicidade, a proibição de símbolos religiosos nos espaços públicos.

A expressão “liberdade religiosa” não foi consagrada na Constituição de 1988, mesmo reconhecida a importância da religião na vida e cultura brasileira608. Apesar disso, o texto

constitucional contém diversos dispositivos que, considerados em conjunto, permitem uma proteção eficaz à liberdade religiosa, em seus variados aspectos, garantindo a liberdade de crença e culto (art. 5º, VI, CF/88), o direito à assistência religiosa (art. 5º, VII, CF/88), a objeção de consciência (art. 5º, VIII, CF/88), afirmando a laicidade do Estado (art. 19, I, CF/88), assegurando a imunidade tributária dos templos (art. 150, VI, b, CF/88) e o ensino religioso (art. 210, § 1º, CF/88).

Com efeito, logo no Título I, a CF/88 traz, como fundamento da República Federativa do Brasil, a cidadania e a dignidade da pessoa humana, afirmando a origem popular do poder (art. 1º, parágrafo único, CF/88) e indicando, entre seus objetivos, “construir uma sociedade livre, justa e solidária” (art. 3º, I, CF/88) e “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (art. 3º, IV, CF/88). No caput do artigo 5º, a CF/88 dispõe sobre a igualdade de todos perante a lei, “sem distinção de qualquer natureza”, detalhando, em diversos incisos, os direitos e garantias fundamentais.

É necessário, de logo, diferenciar a liberdade de culto da liberdade de crença. Esta última, é compreendida, em geral, como a liberdade de escolher uma religião, de aderir ou não a qualquer crença ou seita religiosa, de mudar de religião ou mesmo de não ter nenhuma religião.609 Já a liberdade de culto representa a “livre manifestação exterior da crença, pela

prática de atos próprios da religião.”610 Entendida a liberdade de culto como a exteriorização

da liberdade de crença, alguns consideram que somente sobre ela poderia recair qualquer limitação, já que a crença seria, por sua própria natureza, ilimitada, encontrando-se no âmbito

608 WEINGARTNER NETO, 2007, p. 23.

609 MOREIRA, Vital. Comentário ao artigo 10º da carta dos direitos fundamentais da União Europeia. In:

CANOTILHO, Mariana; SILVEIRA, Alessandra (Coords.). Carta dos direitos fundamentais da União Europeia comentada. Coimbra: Almeida, 2013. p. 141.

610 LEITE, Fábio Carvalho Leite. Liberdade religiosa e objeção de consciência: o problema do respeito aos dias

de guarda. In: ORO, Ari Pedro; STEIL, Carlos Alberto; CIPRIANI, Roberto; GIUMBELLI, Emerson (Orgs.). A religião no espaço público: atores e objetos. São Paulo: Terceiro Nome, 2012. p. 158.

interno do próprio indivíduo. Ocorre que mesmo a liberdade de crença precisa ser tutelada, como qualquer liberdade interna, ainda que a partir da sua feição externa, já que, como sustenta Silva, é exatamente a partir dessa ideia de liberdade externa ou objetiva, que “consiste na expressão externa do querer individual, e implica o afastamento de obstáculos ou de coações, de modo que o homem possa agir livremente”611, que se deve compreender a liberdade de

crença.

É exatamente na sua dimensão coletiva que a liberdade religiosa se torna, na maior parte das vezes, um caso difícil, ou seja, ao exteriorizar coletivamente as crenças, até porque os conflitos relacionados com as manifestações externas da religião serão sempre importantes para a interpretação de qualquer declaração de direitos, levando à raiz do próprio consenso constitucional.