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2.2 O ESTADO

2.2.2 Os elementos do Estado

2.2.2.2 O território

Divergem os autores em reconhecer o território, que é o espaço delimitado pelas fronteiras, como elemento essencial do Estado ou como condição necessária exterior, a exemplo de Kelsen142, para quem é a delimitação espacial que permite a existência simultânea de várias

ordens estatais. Há, ainda, aqueles que simplesmente rejeitam a ideia de considerar o território como elemento essencial do conceito de Estado.143

Jellinek afirma que o território é o espaço geográfico em que o poder do Estado pode ser aplicado, sem a concorrência de nenhum outro e submetendo todas as pessoas que nele se encontram. Ele diz que somente nos tempos modernos é que a necessidade de um território para a existência do Estado foi determinante e observa que as doutrinas do Estado, do século XVI ao XIX, nem mesmo falavam em território como elemento essencial do Estado, realidade que mudou somente a partir de Klüber. O autor destaca, ainda, que a própria relação entre os cidadãos que vivem noutros países e seu Estado original pressupõe o território como expressão objetiva na esfera internacional, ressaltando que, mesmo existindo várias corporações (organizações civis, sociedades comerciais, partidos políticos, entre outras) num mesmo território, só pode haver um Estado.144

Na verdade, a “demarcação de um território próprio a cada povo ocorreu de modo muito lento na evolução histórica”145. De início, a soberania pessoal é que era relevante. Somente

depois a soberania territorial assumiu importância, permitindo que a ideia de Estado envolvesse não apenas a sua característica pessoal, mas também a corporificação territorial146.

O Estado territorial e onipotente nasce com as lutas religiosas do século XVI. Antes disso, a civilização ocidental era considerada como uma comunidade única onde não se concebia a soberania no sentido moderno. O poder supremo era encarnado no Papa ou no Imperador, que lutaram entre si, até a Reforma protestante e o advento do Estado nacional,

141 FERREIRA, Cláudio Alvarez. Contextualização histórica. In: LAZARI, Rafael José Nadim de; BERNARDI,

Renato; LEAL, Bruno Bianco (Orgs.). Liberdade religiosa no Estado democrático de direito: questões históricas, filosóficas, políticas e jurídicas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014. p. 7.

142 KELSEN, 1995, p. 207-210. 143 DOEHRING, 2008, p. 52. 144 JELLINEK, 2013, p. 496-499. 145 MARRARA; FERRAZ, 2014, p. 50. 146 CAENEGEM, 2009, p. 61.

surgido exatamente para reivindicar a soberania da ordem secular, frente às pretensões religiosas “para reduzir a Igreja a uma posição de subordinação, de onde tinha ascendido, penosamente, através dos anos.”147

Aliás, é por essa razão que Lasky reconhece na Reforma um dos paradoxos mais significativos da história, pois mesmo sendo um movimento que começou com a exaltação da personalidade individual, acabou fortalecendo os poderes do Estado148.

Embora a noção abstrata de Estado149 tenha sido perdida durante a Idade

Média, com os reinos transformados em possessões familiares, após o desenvolvimento do Estado moderno e também a sua concepção como pessoa jurídica, a relação entre o território e o poder político modificou-se profundamente, na medida em que os “territórios dos príncipes tomam consciência da nova corrente de ideias, no momento preciso em que por detrás da pessoa do príncipe emerge a pessoa jurídica do Estado, do qual vai se tornando o primeiro representante”150. Desde então, as coisas públicas passaram ao domínio do

Estado e o território foi reconhecido como a “base geográfica do poder”151.

Várias são as teorias que procuraram determinar a natureza do território. A teoria do território-patrimônio implicava a ideia de que o território do Estado era parte do patrimônio do príncipe, sendo, depois, superada pela teoria do território-objeto, baseada na concepção de direito público do exercício do poder de império; e, posteriormente, pela teoria do território- espaço. Mais recentemente, surgiu a teoria do território-competência, em que o território é “concebido como âmbito de competência para imposição de normas jurídicas”152.

As aspirações dominiais do Estado soberano acabaram por produzir uma dicotomia pois se de um lado a ideia de soberania leva ao reconhecimento de uma autoridade irrefutável sobre todo o território, como fração do espaço; por outro, a aceitação de sua personalidade jurídica resulta numa relação de domínio especificamente sobre alguns bens. Essa situação complexa foi enfrentada pela doutrina com as figuras do “domínio eminente”153 e a distinção entre

domínio público e privado da Administração.

147 LASKI, Harold J. La gramática de la política: el estado moderno. Trad. Teodoro Gonzalez García. Granada:

Comares, 2002. p. 33, tradução livre.

148 Ibid., p. 32-33.

149 “O Estado é uma realidade construída, uma criação artificial e moderna quando comparada com a sociedade

civil”. (SANTOS, 2013, p. 148).

150 CRETELLA JÚNIOR, José. Dos bens públicos no direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1969. p. 25. 151 BONAVIDES, 2013a, p. 95.

152 DOEHRING, 2008, p. 56.

153 O chamado “domínio eminente” significa a “prerrogativa geral de ascendência do poder público sobre todas as

coisas, mormente imóveis, existentes dentro dos lindes do seu território” e deve ser compreendido, hoje em dia, como a submissão do exercício do domínio, por todos os detentores de bens dentro do território do Estado, à função social da propriedade, não afastando, por óbvio, a relação jurídica de propriedade do sujeito.

Merece destaque o reconhecimento de que é no exercício do poder de império do Estado sobre seu território que surge a ideia da “religião ditando as regras, como nos países islâmicos, formando um verdadeiro Estado Confessional, o que acaba por afugentar as pessoas que não seguem a ordem emanada por Alá”, convivendo, lado a lado, com países em que não há uma religião oficial e com outros em que, mesmo declaradamente laicos, determinadas crenças são expressas para dar “primazia às suas leis”154.

Os limites territoriais do Estado são fixados principalmente por meio de acordo expresso entre os países (acordos de fronteira), ou pelo costume, com base, na maioria das vezes, em acidentes geográficos, rios e lagos.

Com relação ao mar155, além da fixação do espaço de três milhas náuticas156 (águas

territoriais ou águas costeiras), havia a zona de anexação, de quinze milhas náuticas, onde cessavam as prerrogativas de controle dos respectivos Estados. Mas os Estados foram ampliando suas águas territoriais, com a exploração da plataforma continental, tornando-se regra consuetudinária, conforme Doehring, a possibilidade do Estado explorar o leito marinho, mesmo situado além das águas territoriais157.

Sob forte pressão dos Estados Unidos, no entanto, em 1958 foi celebrada a Convenção sobre o Alto Mar, dispondo, quanto ao mar territorial, que a soberania do Estado alcançaria a zona de mar adjacente às suas costas, limitada em 12 milhas. Apesar disso, o Brasil, a exemplo de outros países, adotava o limite de duzentas milhas de mar territorial, declarando, ainda, integrado ao território brasileiro a plataforma submarina158, ressalvado o direito de passagem

inocente para os navios de todas as nacionalidades159.

Por meio da Convenção das Nações Unidas sobre Direito Marítimo, de 10 de dezembro de 1982, foi admitida a pretensão estatal de estender seu domínio até doze milhas náuticas, bem como o exercício econômico dentro da zona de 200 milhas náuticas, de maneira que dentro “desse espaço não se pode impedir o trânsito de embarcações, mas a pesca, a exploração do leito marinho, pesquisa e quaisquer outras ações estão unicamente sujeitas a competência do

(MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Bens públicos: função social e exploração econômica: o regime jurídico das utilidades públicas. Belo Horizonte: Fórum, 2009. p. 78-82).

154 SCALQUETTE, 2013, p. 153, nota 115. 155 CRETELLA JÚNIOR, 1969, p. 144. 156 DALLARI, 2013, p. 97. 157 DOEHRING, 2008, p. 61. 158 BONAVIDES, 2013a, p. 97-101. 159 Ibid., p. 97.

Estado fronteiriço”160. Segundo o que ficou definido então, acaso a plataforma continental se

estenda além dessas duzentas milhas náuticas também estará sujeita à soberania161 do Estado.

O domínio do Estado abrange, ainda, todo tipo de água corrente (domínio público fluvial) ou estática (domínio público lacustre), as ilhas (domínio público insular), os portos (portuário), etc.162 No que se refere ao espaço aéreo163, ainda não foi possível alcançar

um consenso entre os países, embora a Organização das Nações Unidas (ONU) venha promovendo entendimentos sobre o assunto164.

O ingresso do estrangeiro no território do Estado o submete, salvo hipóteses excepcionais, à respectiva autoridade estatal. Já o “exercício de soberania em território alheio é ilegal, e a interferência na soberania territorial de outro Estado implica frequentemente em uma intervenção proibida”165, hábil a permitir o exercício da autodefesa, que é um inherent

right.

Pode-se dizer, então, que o Estado submete qualquer um que esteja nos limites do território ao seu ordenamento jurídico, ressalvadas, entretanto, as hipóteses de imunidade dos agentes diplomáticos em relação às leis ordinárias do país e de extraterritorialidade.

Não se pode deixar de notar, porém, que “cartografar o espaço físico ou o espaço social é sempre uma operação de simplificação significativa”166 e isso fica ainda mais evidente quando

se leva em conta que vivemos numa era em que espaços móveis são exigidos, com novas situações que já não se adaptam às velhas fronteiras, pois os atores sociais transitam, sem maiores dificuldades, por espaços internacionais, regionais e nacionais, conferindo-lhes outros sentidos.

Nesse novo cenário mundial, sérias mudanças ocorreram na relação entre o espaço, que assumiu uma feição dinâmica, e a sociedade, que não é mais um sistema fechado. As ações violentas e ameaças do terrorismo, por exemplo, já não procedem dos Estados territorialmente definidos, desafiando o pensamento militarista tradicional e o Estado já não “obtém a sua legitimação da prestação da segurança que Hobbes enunciava, pois esta transborda da sua competência territorial”167.

160 DOEHRING, op. cit., p. 62. 161 DALLARI, op. cit., p. 100. 162 BONAVIDES, op. cit., p. 95.

163 Kelsen sustenta que o território do Estado é um espaço em três dimensões, estendendo-se não somente em

largura e comprimento, mas também em altura e profundidade. (KELSEN, 1995, p. 215).

164 Não deixa de ser interessante notar que, em 1966, a ONU aprovou o Tratado do Espaço Exterior, negando a

qualquer Estado “a possibilidade de se apossar, no todo ou em parte, do espaço ultraterrestre, inclusive da Lua ou de qualquer outro satélite ou planeta”. (DALLARI, op. cit., p. 99).

165 DOEHRING, 2008, p. 53.

166 INNERARITY, Daniel. A sociedade invisível. Trad. Manuel Ruas. Lisboa: Teorema, 2009. p. 77. 167 Ibid., p. 107.

Por isso, embora se continue afirmando, em tom solene, o princípio da territorialidade, o certo é que ele vem sendo marcado por uma grande incerteza, pois a cena mundial adota um conjunto de estratégias políticas, econômicas e sociais que são, muitas vezes, incompatíveis com os estreitos limites fixados por ele.168