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2.2 O ESTADO

2.2.2 Os elementos do Estado

2.2.2.1 O povo

O povo é “o substrato, o elemento humano do Estado.”109 Sociologicamente, define-se

o povo como um grupo de pessoas unidas por afinidade étnica. No plano jurídico, porém, trata- se do conjunto de pessoas sujeitas ao poder soberano do Estado.110 Não raras vezes, restringe-

se esse grupo apenas àquelas pessoas que detêm nacionalidade ou, numa visão ainda mais restritiva, aos que detêm a cidadania ativa.111É um elemento da associação estatal, mas é

também o objeto da atividade do Estado.112

106 PASTOR, Eugenia Relaño. La polémica del crucifijo en las aulas, “Lautsi contra Italia”: ¿un nuevo conflicto

entre cristófobos y creyentes?. In: SÁNCHEZ, Miguel Revenga; RUIZ-RICO, Gerardo; RUIZ, Juan José Ruiz (Orgs.). Los símbolos religiosos en el espacio público. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2011. p. 265, tradução livre.

107 VIEYTEZ, 2011, p. 13-14. 108 JELLINEK, 2013, p. 255.

109 QUEIROZ, Cristina. Direito constitucional: as instituições do estado democrático e constitucional. São Paulo:

Revista dos Tribunais; Coimbra: Coimbra Editora, 2009. p. 25.

110 MARRARA; FERRAZ, 2014, p. 86. 111 SCALQUETTE, 2013, p. 55-56. 112 JELLINEK, op. cit., p. 510.

Como elemento essencial do Estado113, não pode ser confundido com população, mera

expressão numérica, demográfica ou mesmo econômica114 que engloba todas as pessoas que se

encontrem no território do Estado, inclusive estrangeiros e apátridas, e muito menos com a “nação”115, termo que recebeu grande aceitação durante a Revolução Francesa116, depois que

Sieyès o empregou em oposição ao domínio do monarca e das instituições do Ancien Régime117,

transferindo-lhe certos atributos de Deus e dando-lhe o poder de disposição sobre a configuração da ordem política e social, como seu criador, tentando conferir-lhe uma unidade homogênea.

Conforme Péronnet, o sentido primitivo da palavra “nação” manteve-se até o século XVIII, designando uma quantidade “considerável de povo que habita uma certa extensão do país”118. Durante a campanha eleitoral para os Estados Gerais da França, no entanto, assumiu

um sentido mais amplo, significando o conjunto político formado pelos cidadãos. É assim que aparece na Declaração dos Direitos do Homem que, no artigo 3º, especifica: “O princípio de toda soberania reside essencialmente na Nação”.

Indicando comunidade, o termo “nação” não se mostra adequado como sinônimo de povo119, que, por sua vez, pode ser definido como o conjunto “dos cidadãos do Estado” ou como

o “conjunto dos indivíduos que, através de um momento jurídico, se unem para constituir o Estado, estabelecendo com este um vínculo jurídico de caráter permanente, participando da formação da vontade do Estado e do exercício do poder soberano”120.

O que diferencia, portanto, a ideia de povo é o vínculo do indivíduo com o Estado, por meio da nacionalidade ou cidadania.121 É o elemento mais importante do Estado, pois

“o território e a autoridade estatal devem servir ao povo e é só por causa dele que o

113 Kelsen, que o considera a esfera pessoal de validade da ordem jurídica nacional, o define como os “seres

humanos que residem dentro do território do Estado”. (KELSEN, 1995, p. 230).

114 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. 32. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 100. 115 Pode-se definir nação como o “corpo social politicamente constituído”. (ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes

de. Direito judiciário brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Typographia Baptista de Souza, 1918. p. 29).

116 É na Revolução Francesa que o “povo se converte em nação, ou, o que é o mesmo, se faz consciente de sua

existência política” (SCHMITT, Carl. Teoría de la Constitución. Trad. Francisco Ayala. Madrid: Alianza, 2011. p. 94, tradução livre).

117 BÖCKENFÖRDE, Ernst-Wolfgang. Estudios sobre el Estado de Derecho y la democracia. Trad. Rafael de

Agapito Serrano. Madrid: Trotta, 2000a. p. 163.

118 PÉRONNET, Michel. A revolução francesa em 50 palavras-chaves. Trad. Rita Braga. São Paulo: Brasiliense,

1988. p. 221.

119 Bonavides considera que o conceito sociológico de povo equivale ao de nação, pois é compreendido como

“toda a continuidade do elemento humano, projetado historicamente no decurso de várias gerações e dotado de valores e aspirações comuns”. (BONAVIDES, 2013a, p. 83).

120 DALLARI, op. cit., p. 104. 121 BONAVIDES, op. cit., p. 72.

esclarecimento das relações jurídicas se faz necessário”122. Se não há povo não há Estado123

e é ele, como titular do poder político, quem determina como será o Estado, se teocrático ou laico, por exemplo.

No sentido democrático, é, então, o conjunto do que detém a cidadania ativa do Estado, da qual a cidadania individual é só uma parte. Os direitos de participação democrática de sufrágio ativo e passivo pressupõem o pertencimento ao Estado. O estrangeiro ou o apátrida, nessa perspectiva, não passa de um hóspede, pois mesmo incluído social e economicamente, não é considerado “povo”.

O povo compõe-se dos cidadãos e a definição de quem pertence a um determinado Estado cabe ao próprio Estado124, segundo critérios específicos (princípio do ius sanguinis o

ius soli ou, ainda, adotando-se um sistema misto).

Tanto quanto possível, procura-se evitar a dupla cidadania e, com isso, a obrigação de fidelidade a dois Estados e os riscos decorrentes dessa situação indesejada, até mesmo para a segurança nacional, o que se faz por meio de acordos e de harmonização das leis nacionais.

Doehring, com inteira razão, lembra que mesmo assim pode ocorrer a chamada dupla nacionalidade e a naturalização125, destacando que a perda da nacionalidade também se dá

conforme decisão de cada Estado, enquanto Arendt se preocupa com a situação dos apátridas e das minorias, lembrando que o asilo seria o único remanescente moderno do princípio de que quid est in territorio est de territorio, pois em “todos os outros casos o Estado moderno tendia a proteger os seus cidadãos além de suas fronteiras, para que, graças a tratados recíprocos, permanecessem sujeitos às leis do seu país, mesmo morando fora dele [...]”126, sem que se possa

esquecer os refugiados do ontem e de hoje, problema da maior importância no contexto europeu atual, com sérios desdobramentos no campo da liberdade religiosa, já que parcela considerável do contingente humano que tem chegado à Europa professa a fé islâmica.

Note-se que os direitos básicos são garantidos, via de regra, aos nacionais, principalmente os direitos políticos. O cidadão, por sua vez, deve fidelidade e pode cobrar proteção do Estado, sendo certo que a ordem jurídica de um Estado pode alcançar a sua conduta mesmo quando estiver no território de outro Estado.

122 DOEHRING, 2008, p. 45.

123 Na Idade Média, diz Bonavides, o conceito de povo foi desconhecido, já que naquela época a teoria do Estado

partia da noção de território, com o poder assentado na propriedade. (BONAVIDES, op. cit., , p. 79).

124 DOEHRING, 2008, p. 48. 125 Ibid., p. 50.

126 ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

O conceito de povo envolve, é bem verdade, uma certa ideia de homogeneidade, de uma sociedade monística, que, no entanto, não corresponde à realidade. “A sociedade real, subjacente aos governos democráticos, é pluralista”127 e a essência do processo de poder

consiste em estabelecer um equilíbrio entre as diferentes forças que atuam na sociedade.128 Por

outro lado, nascida de uma concepção individualista, a doutrina democrática imaginava o Estado sem corpos intermediários, mas foi exatamente o oposto o que aconteceu.129

A soberania popular é um bem jurídico fundamental, estando consignada no artigo 1º, I e parágrafo único, da Constituição de 1988. Nesse contexto, “não se pode negar que o exercício do poder republicano se realiza de forma livre e por meio de representantes escolhidos na forma do Código Eleitoral.”130

Consoante ressalta Pereira, os partidos políticos “representam a participação social nas decisões do Estado”, recordando que Kelsen os considerou um elemento essencial ao poder na democracia representativa, “além de designador de representantes” e instrumento capaz de orientar a política de governo, numa democracia parlamentar131.

No dizer de Pereira, esse ideal kelseniano, pressupõe a autonomia plena do partido político, cuja construção passa, necessariamente, “por uma realidade política determinada por um sistema que seja pluripartidarista e ideologicamente definido. Sem se falar no equilíbrio da tensão dialética entre a maioria e a minoria partidária.”132

O problema fundamental da representação consiste em mensurar o grau de coincidência entre a opinião pública e sua expressão parlamentar, notadamente porque, de acordo com Duverger, nesse domínio a influência dos partidos é considerável, pois cada sistema partidário impõe limites à opinião pública, dando-lhe forma e, ao mesmo tempo deformando-a.133

No Brasil, escreve Ribeiro, a obra colonial de Portugal foi um “povo-nação”134.

Plasmado a partir de um “persistente esforço de elaboração de sua própria imagem e consciência como correspondentes a uma entidade étnico-cultural nova, é que surge, pouco a pouco, e ganha

127 BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. 9. ed. Trad. Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Paz e Terra,

2000. p. 36.

128 LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la Constitución. Trad. Alfredo Gallego Anabitarte. Barcelona: Ariel, 1986.

p. 27.

129 BOBBIO, op. cit., p. 35.

130 PEREIRA, Erick Wilson. Direito eleitoral: interpretação e aplicação das normas constitucionais-eleitorais. São

Paulo: Saraiva, 2010. p. 154.

131 Ibid., p. 138. 132 Ibid., p. 139.

133 DUVERGER, Maurice. Les partis politiques. Paris: Librairie Armand Colin, 1951. p. 409 et seq.

134 RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras,

corpo a brasilianidade”, fixada somente após as “contribuições maciças de descendentes dos contingentes africanos, já totalmente desafricanizados pela mó aculturativa da escravidão.”135

Aspecto importante sobre o povo diz respeito com o fenômeno da secularização136

e da distinção entre clérigos e leigos. Atento a esse aspecto, Borges destaca que a própria etimologia permite distinguir secularização e laicidade, uma vez que, enquanto a secularização provém de saeculum, ou seja, “mundo, sobretudo em sentido negativo na sua relação com a salvação”, laicidade vem de laós (povo), de onde também se origina a palavra leigo, em oposição ao clérigo, “no quadro de hierarquização da Igreja e da tentação do controlo total das ideias e valores que deveriam reger o mundo”137.

Sendo assim, é possível dizer, numa primeira aproximação do assunto que será tratado com maior profundidade mais adiante, que a secularização é um fenômeno mais amplo que tem a ver com a perda do papel de destaque que a religião institucionalizada desempenhava na produção e reprodução do elo social e também na atribuição de sentido138, enquanto a laicização

envolve uma atitude positiva do Estado, cujo ponto central reside no ensino e no “domínio do espiritual e do simbólico”139.

É a partir desse enfoque que Catroga descreve como a secularização e a sacralização são fenômenos que se desenvolvem em paralelo nas distintas áreas do globo. Dissertando sobre clérigos e leigos, ele diz que, com o tempo, a existência terrena passou a ser alvo de considerações negativas, sendo “qualificada como o lugar do pecado e do tempo lapso e diminuído – o século”140 para concluir que a distinção entre clérigo e leigos deu origem a várias

dissidências que se voltaram contra o estatuto da superioridade em favor dos primeiros.

No Brasil, por exemplo, as irmandades e ordens terceiras, manifestações do catolicismo popular que se organizavam em torno de um santo padroeiro e eram constituídas por leigos, desde o período colonial, não agradavam à Santa Sé, pois agiam com relativa independência dos mecanismos de controle institucional da Igreja, administrando um orçamento destinado às

135 Ibid., p. 128.

136 Secularização pode simplesmente significar “subtrair uma coisa, um território ou uma instituição aos direitos

tradicionais e aos poderes eclesiásticos, emancipando-os”. (BÖCKENFÖRDE, Ernst-Wolfgang. Le droit, l’état et la constitution démocratique. Trad. Olivier Jouanjan. París: Libraíre Générale de Droit et de Jurisprudence, 2000b. p. 102, tradução livre).

137 BORGES, Anselmo. Prefácio. In: CATROGA, Fernando. Entre deuses e césares: secularização, laicidade e

religião civil: uma perspectiva histórica. 2. ed. Coimbra: Almedina, 2010. p. 10.

138 CATROGA, 2010, p. 62. 139 BORGES, loc. cit.

festas e comemorações, “construindo igrejas, cemitérios e até mesmo mantendo clérigos ao seu soldo.”141