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A discussão sobre as liberdades tem grande relevância, sobretudo para reflexão do nível de consistência da democracia de um Estado. Cretella Júnior112 define liberdades públicas como “faculdades de autodeterminação, individuais ou coletivas, declaradas, reconhecidas e garantidas pelo Estado, mediante as quais os respectivos titulares escolhem modos de agir, dentro de limites traçados previamente pelo poder público”.

A liberdade segundo Plácido e Silva113 é “a faculdade ou o poder outorgado à pessoa para que possa agir segundo sua própria vontade e determinação, desde que respeitadas as normas legais que são instituídas no intuito de limitar a liberdade de cada indivíduo para proporcionar a dos demais”.

A liberdade é uma qualidade da pessoa e, portanto, seus diversos siginificados dependem do fato de que essa qualidade pode ser referida a diversos aspectos da pessoa, sobretudo a vontade, ou à ação.

Trata-se de bem supremo, pois, segundo Rousseau114, a renúncia à

liberdae equivale à renúncia à qualidade de homem.

A definição tradicional de liberdade, portanto, envolve a ausência de restrições impostas pelo Estado ao que um homem poderia fazer, caso desejasse. Quanto a tais restrições, Dworkin115 conclui transcrevendo fragmento do ensaio sobre liberdade de Isaiah Berlin: “No sentido em que utilizo o termo, a liberdade implica não simplesmente a ausência de frustração, mas também ausência de obstáculos às escolhas e atividades possíveis – ausência de obstrução nos caminhos que um homem pode decidir trilhar”.

É razoável concluir que todas as definições trazidas partem da noção da liberdade positiva de autorrealização e da liberdade negativa de não interferência.

112 CRETELLA JÚNIOR, José. Liberdades públicas. São Paulo: Bushatsky, 1974. p. 45. 113 DE PLÁCIDO E SILVA. Vocabulário jurídico. 16. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 490. 114 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. Trad. Pietro Nassetti. São Paulo: Martin

Claret, 2004. (Coleção A obra-prima de cada autor).

115 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução Nelson Boeira. São Paulo: Martins

Na conceituação política do termo, Zisman116 menciona a lição de Gerard

Durozoi & André Roussel117: “No sentido político, as liberdades referem-se aos

diferentes campos (físico, de expressão, de consciência, de pensamento, religioso), nos quais o indivíduo não tem de sofrer o controle do Estado na medida em que respeita as leis”.

Citando Celso Lafer, Garcia118 esclarece as características da liberdade moderna, em oposição à antiga, ou seja, relacionada à liberdade do cidadão e não à do homem, enquanto homem, ou seja, fruto da participação na coisa pública como ideia construída a partir do pensamento de diversos autores:

Em decorrência do pensamento liberal (Locke, um dos pensadores paradigmáticos do liberalismo, Benjamin Constant, Stuart Mill, Tocqueville e correntes liberais a eles filiadas) – parte do indivíduo para alcançar o todo (a comunidade social), contrária ao poder absoluto, propugna a existência de ‘direitos absolutos’, resultantes de uma esfera privada não-controlada pelo poder, invioláveis, que garantem a cada ser humano uma porção de existência intransponível ao controle social: ‘essa porção é assegurada pela tutela dos direitos individuais, que vem encontrando guarida nos Direitos Positivos – nacional e internacional – desde o séc. XVIII, através das Declarações de Direitos’.119

Na concepção jurídica, o objeto da liberdade surge como uma alternativa de ação. É dizer: “uma pessoa é livre no sentido negativo a medida em que a ela não são vedadas alternativas de ação”120. Então, a diferença entre liberdade positiva

e negativa reside no fato de que, na primeira, o objeto da liberdade é uma única ação, enquanto que, na segunda, há alternativa de ação.

O conceito negativo e democrático de liberdade é, enquanto subespécie do conceito negativo de liberdade, um conceito baseado em possibilidades. No caso da liberdade de expressão, fim específico da pesquisa, tanto é juridicamente permitido que o indivíduo expresse sua opinião, como também é permitido que deixe de expressar.121

116 ZISMAN, Célia Rosenthal. A liberdade de expressão na constituição federal e suas limitações

– o limite dos limites. São Paulo: Paulista, 2003. p. 27.

117 DUROZOI, Gerard; ROUSSEL, André. Dicionário de filosofia. Trad. Marina Appenzeller. 3ª ed.

Campinas: Papirus, 1999. p. 407.

118 LAFER, Celso. Ensaios sobre a liberdade. São Paulo: Perspectiva, 1980. p. 13 et seq. Apud

GARCIA, Maria. Desobediência civil: direito fundamental. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 32.

119 GARCIA, Maria. Desobediência civil: direito fundamental. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,

2004. p. 32.

120 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais, p. 222. 121 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais, p. 222 et seq.

O Brasil, após a Constituição de 1988, avançou muito do ponto de vista institucional, mas ainda se ressente de profunda discussão sobre as reais premissas e valores que qualificam o regime democrático, em particular quanto às liberdades.

Claro que nos anos que se sucederam à nova Constituição, o regime democrático foi se consolidando e com ele o exercício, por exemplo, da liberdade de expressão. No entanto, não se pode ignorar o espectro da ditadura e da censura, que ainda permeia a memória coletiva dos brasileiros.

Já foi possível, no capítulo anterior, demonstrar que a dignidade da pessoa humana é o parâmetro substantivo que dá legitimidade às constituições democráticas, justificando, assim, a previsão de um rol de direitos fundamentais a serem tutelados e a tentativa de construção de uma comunidade livre.

Por conta disso, associado à dignidade da pessoa humana, enquanto parâmetro moral e normativo, subsiste a necessidade de tutela da liberdade individual. É nesse contexto democrático que o exercício e a tutela das liberdades individuais terão grande papel:

A liberdade individual, antes mesmo de se contrapor à ordem democrática e ao bem comunitário constitucionalmente, é mesmo parte indispensável deste. Isto porque, tem de se reconhecer que, se por um lado pode haver conflito entre os interesses individuais e coletivos (estes entendidos como a soma de vários interesses individuais), por outro não há que se falar em contraposição entre o interesse da comunidade e o interesse (real) de cada indivíduo. Isso porque o triunfo da comunidade democrática depende da persecução de seu valor fundacional e, portanto, nesse caso, na promoção da dignidade de cada cidadão.122

O espaço para diferença, sustenta Bielschowsky123, será protegido através da tutela da liberdade individual, que é “inseparável de cada um para a compleição de sua dignidade”, pois “a garantia da igualdade e liberdade, inerentes à ordem substantiva e substancialmente democrática, exige que as diferenças sejam respeitadas”.

Daí afirmar que, num regime constitucional, é indispensável o modo como

se combinam as liberdades num esquema coerente. Nesse sentido, “a Constituição

será também o estatuto comum de cidadãos iguais na medida em que incorpora e especifica as liberdades básicas”124.

122 BIELSCHOWSKY, Raoni Macedo. Democracia constitucional, p. 24. 123 BIELSCHOWSKY, Raoni Macedo. Democracia constitucional, p. 24.

É possível, para os fins desse trabalho, destacar duas correntes políticas para o estudo das liberdades. A primeira se refere àquelas liberdades concernentes ao Estado liberal, ou seja, relacionadas aos direitos individuais, e a segunda, como indicado no parágrafo anterior, de todos os indivíduos da comunidade.

Na doutrina liberal, o termo liberdade é utilizado com a intenção de indicar um estado de não-impedimento: “’liberdade’ recobre a mesma extensão do termo ‘licitude’ ou esfera daquilo, que não sendo nem obrigado nem proibido, é permitido. Como tal, opõe-se a impedimento [Grifo do autor]”125.

Diversamente, o termo “liberdade” na doutrina democrática vai significar autonomia, que é próprio da linguagem técnica da filosofia, opondo-se à ideia de coerção. O autor acrescenta: “por isso se diz ‘livre’ o homem não-conformista, que raciocina com a própria cabeça, é imparcial, não cede a pressões, adulações, promessas de cargos etc”126. Eis a síntese da aludida distinção promovida pelo

autor:

No primeiro significado, o termo liberdade é bem acompanhado pelo termo ‘ação’; uma ação livre é precisamente uma ação lícita, que eu posso fazer ou não fazer enquanto não impedida. No segundo significado, faz-se acompanhar muito bem pelo termo ‘vontade’: uma vontade livre é precisamente uma vontade que se autodetermina.127

Em que pese qualquer divergência, seja no sentido de entender que a lei é restritiva de liberdade ou que a liberdade é o próprio campo de ação conforme a lei, o estado de liberdade é sempre o desejável.

Logo, tanto a ação regulada por uma lei autônoma (voluntariamente aceita) ou por uma lei heterônoma (aceita pela força), embora antagônicas, vão levar a um sentido de liberdade que não pode ser jamais afastado.

Aliás, nesse mister, o próprio Bobbio128, se reconhece num impasse

quando se faz necessário dizer qual das duas é mais desejável.

É certo que sempre haverá uma tensão entre as duas perspectivas, que não poderá jamais admitir a prevalência absoluta de uma sobre a outra. Melhor dizendo, não se pode admtir a liberdade total, no extremo da democracia pura de

125 BOBBIO, Norberto; BOVERO, Michelangelo (Org.). Teoria geral da política: a filosofia política e as

lições dos clássicos. Trad. Daniela Beccaccia Versiani. Rio de Janeiro: Elsevier, 2000. p. 279.

126 BOBBIO, Norberto; BOVERO, Michelangelo (Org.). Teoria geral da política: a filosofia política e as

lições dos clássicos, p. 279.

127 BOBBIO, Norberto; BOVERO, Michelangelo (Org.). Teoria geral da política: a filosofia política e as

lições dos clássicos, p. 280.

128 BOBBIO, Norberto; BOVERO, Michelangelo (Org.). Teoria geral da política: a filosofia política e as

Rousseau, sob pena de frustrar o compromisso necessário à proteção da liberdade ou da segurança dos outros, como também não se deve perseguir a total regulação heterônoma, capaz de gerar seres dóceis, passivos, sem capacidade de pensar suas próprias ações. Aliás, esse último é um risco evidente da normatização pura, que não deve ser admitida no estado democrático.

Nesse sentido, Dworkin129 adverte: “se uma pessoa for muito limitada pelas restrições jurídicas e sociais, isto será, pelo menos, uma forte evidência de que ela se encontra em uma situação politicamente inferior a algum grupo que usa seu poder sobre ela para impor essas restrições”. E conclui:

Leis que restringem um homem, com base apenas no suposto de que é incompentente para decidir o que é certo para ele, o ofendem profundamente. Elas o tornam intelectual e moralmente subserviente aos conformistas que formam a maioria e negam-lhe a independência à qual tem direito.130

Sem a pretensão de optar por uma corrente de pensamento, mas apenas retomando o espírito da argumentação inicial de que a dignidade da pessoa humana é o parâmetro normativo e alicerce dos direitos fundamentais, pode-se afirmar que haverá uma ampla margem de liberdade individual que a comunidade não poderá intervir, sob pena de afetar a própria dignidade da pessoa e a ideia de igual liberdade.

Em síntese, mesmo que seja vontade da maioria ou busque o aumento do bem-estar geral, não se pode impor ao indivíduo qualquer valor que não seja ligado à persecução da realização dos objetivos constitucionalmente previstos, porque amparados na proteção da dignidade da pessoa humana, premissa cultural e antropológica, e na igual liberdade para todos.

O fato é que aquilo que entendemos por Estado Democrático de Direito, só é possível dentro de uma estrutura moral que tem como fundamento a igualdade de todos os homens em mesma dignidade, e consequentemente, a igual liberdade dos indivíduos. Tanto é que, mesmo as visões de democracia que se pretendem meramente procedimentais não podem conceber argumentos que tolham a liberdade, ou que se pretendam intolerantes, sob pena de autodestruição do próprio esquema democrático [Grifo do autor].131

É que, no Estado democrático de direito, existem preceitos basilares que não podem ser ignorados, nem mesmo pela maioria. Diz-se isso, inclusive, porque a

129 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério, p. 404. 130 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério, p. 406.

própria vontade da maioria é pelo respeito da esfera subjetiva de cada indivíduo da comunidade.

É um círculo dinâmico que justifica a existência da fórmula política democrática, pois é essencial para a persecução do bem comum a promoção da liberdade individual. Em suma, a comunidade livre tem como fundamento a existência de homens livres, que assim são por viver numa comunidade livre.

Tão somente nos casos em que a liberdade individual (aparentemente) vai de encontro ao bem comum da coletividade (condição de igualdade fundamental de todos os homens em sua humanidade comum) é que a Vontade Geral rousseauniana pode subjugar o interesse subjetivo, gerando ao Estado o dever-poder de interferir e cercear a vontade do particular.132

O que se percebe é que a teoria da liberdade, concebendo liberdade como atributo do indivíduo e Estado como criação do homem, é fonte de inúmeros desdobramentos. Do ponto de vista jurídico, a liberdade aparece como direito inerente a qualquer ser humano, isto é, direito originário, inalienável, imprescritível, anterior ao Estado, mas positivado.

No Brasil, a liberdade em sentido amplo tem assento em diversos dispositivos constitucionais, como indica o Quadro 1, a seguir:

Quadro 1 – Formas de liberdade elencadas nos incisos do art. 5º da Constituição Federal de 1988

Liberdade em sentido amplo (caput do art. 5º)

(liberdade como direito)

Autodeterminação (inc. II) Pensamento (inc. IV) Religião (inc. VI, VII e VIII) Expressão (inc. IX) Profissional (inc. XIII)

Informação (inc. XIV e XXXIII) Locomoção (inc. XV, LIV e LXI) Reunião (inc. XVI)

Associação (inc. XVII, XVIII e XX ) Fonte: SORIANO, 2002, p. 4.133

Em que pese o amplo rol de previsão e proteção, considerando que o tema proposto nessa pesquisa visa ao debate sobre liberdade de expressão, passa- se à abordagem específica de suas dimensões e sua intrínseca relação com a democracia e a dignidade da pessoa humana.

132 BIELSCHOWSKY, Raoni Macedo. Democracia constitucional, p. 39.

133 SORIANO, Aldir Guedes. Liberdade religiosa no direito constitucional e internacional. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002. p. 4.

3.2 AS DIMENSÕES DO DIREITO DE LIBERDADE DE EXPRESSÃO E SUAS