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3.7 A atividade do psiquiatra em seu ponto de vista

3.7.2 A lida com a medicação

A lida com a medicação67 é uma atividade de todos os trabalhadores dos CAPS e não somente dos psiquiatras, tendo em vista que, praticamente, todos os pacientes dos CAPS utilizam medicamentos em algum momento de seus tratamentos, segundo nosso processo de compreensão do trabalho real.

Ah, 95% das vezes, eles recorrem ao psiquiatra porque, normalmente, um paciente pra

chegar no CERSAM, ele tá, que é um caso mais grave, não é ação básica, ou ele está em uso de alguma medicação, ou ele vai precisar, ou ele se intoxicou com alguma medicação de terceiros. Então, com certeza. (Psiquiatra 4, grifo nosso)

A primeira pergunta que nos vem é a seguinte: como os psiquiatras e os outros trabalhadores lidam com a medicação? Segundo nossas investigações, o que se ouve é que a medicação seja utilizada para fazer falar, para possibilitar ao sujeito pronunciar-se e isso vai depender da forma com a qual os trabalhadores lidam com a medicação.

Porém, em meio a todo o cenário do trabalho real, o que se verifica é que os trabalhadores dispõem de pouco tempo para promoverem dispositivos de subjetivação, ou seja, trocar idéias, mediar a conversa entre um paciente e outro. Em outras palavras, acaba que o medicamento entra no tamponamento de sintomas, tendo em vista a realidade de que, em média, passam cerca de 40 pacientes em permanência-dia. Nos CAPS “(...) medica-se diagnósticos e não sujeitos” (Psicóloga 2). Encontra-se aí, um grande reducionismo daquilo que se pretende inovar com a clínica em Saúde Mental: o recolocar palavras lá onde a crise intercepta o dizer. Tal situação requer que a medicação seja utilizada com certa parcimônia:

67 Em ATENÇÃO EM SAÚDE MENTAL (2006), há a seguinte direção prescrita: “(...) ainda que um episódio de agitação intensa torne necessário medicar extraordinariamente o paciente, a medicação deve sempre ser precedida, acompanhada e seguida pela conversa e pela argumentação” (p. 62) - fato este, pouco observado pelo coletivo de trabalhadores dos CAPS.

Entendeu assim, fazendo um certo pouco, mais ou menos assim, medicar é fácil,difícil é incluir. Não é verdade. Medicar bem para incluir é super difícil, medicar no ponto pra

não sedar, pro cara conseguir passear na cidade, conseguir um antipsicótico que o paciente

possa transitar pra saber o que que tá acontecendo, aderir ao tratamento para fazer algumas atividades de reabilitação, isso é super difícil, esse ponto. (Psiquiatra 12, grifo nosso).

Esse é o contexto em que a medicação se insere nos CAPS. Quer dizer, aquela idéia de medicar para fazer o paciente falar, acaba recaindo no romantismo e na idealização, no plano das idéias, porém, uma trabalhadora insistiu em nos redizer de duas possibilidades de trabalho com a medicação:

Só que eu acho que existe a possibilidade de uma medicação, que ela conclua um tratamento, que ela seja o tratamento, e existe a possibilidade de uso da medicação que seja pra se abrir a outras possibilidades, que aquele paciente tenha condições de ter outros

tipos de abordagem. E eu acredito que o que a gente tenta fazer aqui no Cersam que os psiquiatras aqui compartilham, que eu convivo com eles, o que eu consigo ouvir da convivência do trabalho em comum, na direção que a medicação não cale o sujeito, mas que

permita que o sujeito possa falar, de formas diversas. (Terapeuta Ocupacional 4, grifos

nossos)

As falas acima remetem-nos ao campo do medicar com criatividade e isso requer tempo, como dizem muitos psiquiatras. Mesmo em determinados CAPS, onde se ouve que a medicação é a última coisa a fazer e que se medica pacientes somente com o consentimento dos mesmos, constatamos situações muito diversas. Nós encontramos muitos pacientes, em especial aqueles mais graves, que requerem maior tempo de atenção, mais sedados e contidos68 no leito do que pelos CAPS circulando.

Quanto ao psiquiatra nesse contexto, seu lugar (re)surge imperativo, ao se falar de medicamentos. O tempo todo em que estivemos próximos a eles, na maioria das vezes, eram chamados para fazer alguma intervenção medicamentosa.

Seja para medicar pacientes novos, para remedicar outros, seja para refazer a prescrição de pacientes. Poucas vezes, o psiquiatra era chamado a fazer uma discussão em termos mais abrangentes sobre a construção do “caso clínico”. A fala abaixo é desveladora de contradições nos CAPS, de um certo aprisionamento do psiquiatra em seu próprio poder de medicar:

Eu acho que o antimanicomial, naturalmente, a gente esperaria que o psiquiatra pudesse ser convidado pra fazer outras coisas. Só que, a ele é reservado o poder de medicar e, ao mesmo tempo, a escravidão de só medicar... é um poder, mas é também uma escravidão

porque, na verdade, é um poder que cansa, é repetitivo... estrangula as possibilidades

criativas da gente. (Psiquiatra 12, grifos nossos)

68 Segundo a ATENÇÃO EM SAÚDE MENTAL (2006): “Da mesma forma, a contenção física e outras medidas de imposição utilizadas rotineiramente, sem esgotar outros recursos possíveis, é um sinal seguro de que o trabalho vai mal. Para que o uso da força não se imponha, é preciso criar um clima acolhedor e ativo no serviço” (p. 62).

As falas seguintes descortinam algumas formas pelas quais as demandas de e pela medicação chegam ao psiquiatra. Cabe a ele apresentar saídas, concordando ou não, interrogando possíveis regras pelo caminho de renormalizá-la.

Talvez a equipe transfira pra ele e ele aceite, outras coisas que não são tão específicas assim... né? Então, por exemplo, se o psiquiatra, além de medicar... por um raciocínio que eu acho correto, repetindo: o técnico de referência, ele formula ele próprio o diagnóstico, constrói

a história, partilha esse diagnóstico: “a gente concorda ou não”. Às vezes, não: “peraí,

mas enfim, não é da minha responsabilidade”. Ele é, na medida em que você também investe na construção dele: “não venha passar pra mim, que conheço de psicopatologia, a obrigação

de diagnosticar, você tem que conhecer”. Então, eu acho... agora, medicar já num tem jeito,

medicar num tem jeito... (Psiquiatra 16, grifos nossos)

Na concepção da reforma, o trabalhador faz um pouco e tudo, com exceção da medicação.

Então, será que esta exceção é a regra? Essa é que é minha pergunta. Se a única coisa que

o psiquiatra faz que os outros trabalhadores não fazem é medicar, isso não me parece sinônimo de que o psiquiatra só possa medicar! Isso é um pedaço do que só ele pode fazer, mas ele não pode, não precisa de fazer só isso. Só ele pode fazer isso, mas ele não precisa

fazer só isso. Essa é que é a frase. (Psiquiatra 12, grifos nossos)

Figuremos essa situação como emblemática da realidade nos CAPS com relação à medicação: “Só ele pode fazer isso, mas ele não precisa fazer só isso”, porém, sabemos que o ato de: “Tomar remédio nunca é um ato isento da participação do sujeito que, por sua vez, nunca se revela de modo transparente e unívoco ao médico” (FIGUEIREDO, 2004, p. 88). A frase é convidativa para que a relação com o remédio se faça no coletivo dos trabalhadores, não somente com o psiquiatra.

Se por um lado, há psiquiatras que pensam ser os medicamentos coadjuvantes, outros pensam de outra forma. Vejamos dois pontos de vista, que ampliam a investigação acerca do “perfil” do psiquiatra para os CAPS.

(...) psiquiatra pra trabalhar em CAPS tem que saber medicar, sabe... não é ficar dando gotinha, gotinha homeopática não. Por que? Primeiro que você... não dispõe de um tempo largo, você não pode deixar o paciente ficar lá dois, três meses, quatro meses. O seu objetivo

é melhorar o paciente, o mais rápido possível pra ele sair da permanência-dia e retomar a vida. Eu sempre raciocinei assim! E, como é um serviço aberto... que tem esse risco de fugir

sabe... eu tinha que, quimicamente, é... assim... ajudar, sei lá... ajudar com que ele ficasse mais calmo, entende? Com menos possibilidade de fuga! Então, geralmente, a gente medicava mais... sabe... medica-se no CAPS mais do que no hospital psiquiátrico.

(Psiquiatra 2, grifos nossos)

Em contrapartida:

Agora, o medicamento é a etapa, vamos dizer, a última etapa, qual medicamento você vai dar, é a última etapa de todo um raciocínio diagnóstico... de reflexão, de construção da posição de sujeito. Depois que você faz tudo isso, aí você vê... bom, o medicamento é

esse, eu posso esperar muito ou pouco do medicamento? Então, esse dimensionar o alcance

que a medicação vai ter, também é muito importante nesse processo, que eu acho que é uma coisa que os psiquiatras de hoje em dia lidam mal. E é ruim pra eles por causa disso:

“você tenta com um, num deu, com outro, num dá, até você, de repente, estar batendo no paciente pra ver se dá”. (Psiquiatra 16, grifos nossos)

Por outro lado, a fala abaixo é parceira de nossa hipótese de pesquisa de que há uma falha considerável na formação dos trabalhadores e na distribuição de tarefas como um todo no trato com a loucura (em crise) e fora da hospitalização psiquiátrica.

Sim, agora, veja bem, é muito diferente você medicar, como eu já fiz, eu já trabalhei com técnicos de referência que, de fato, sustentavam um caso e com outros que empurravam, né?

Você medicar um paciente bem acompanhado, dá muito pouco trabalho, toma muito pouco tempo, é um trabalho gostoso. E gera tempo pra você pensar outras coisas...

(Psiquiatra 16, grifo nosso)

As falas seguintes elaboram o sentido da criação do “psiquiatra de porta fechada” e medicador. Inclusive, dentro desse mesmo contexto, ouvimos que nos CAPS existem psiquiatras mais resolutivos do que outros. Contraditoriamente, segundo nossas investigações, esses “psiquiatras resolutivos” (para algumas equipes de trabalho) são aqueles que mais se encontram dentro dos consultórios. Tal situação deve-se ao psiquiatra e à equipe que sustenta essa posição.

(...) então, são duas coisas, são dois lados... o lado do psiquiatra e o lado da equipe. Quer dizer, se o psiquiatra não dá conta de fazer essa operação sozinho, a equipe precisa convidá- lo, entendeu? Agora, se nem a equipe convida e ele não sabe o que fazer, o que vai acontecer é que, naturalmente, ele vai ocupar aquele lugar de um psiquiatra de porta fechada e que vai abrir a porta e dizer assim... “próximo, próximo...”. (Psiquiatra 12, grifo nosso)

Como o assunto é lidar com a medicação, escutamos várias conversações que apresentaram críticas no sentido de que os psiquiatras dos CAPS estejam atentos para não caírem no engodo de diagnosticar pacientes por categorização de sintomas e “que as pessoas não fiquem tão vendidas pra indústria farmacêutica, como se os atípicos69 fossem resolver todos os problemas... né? Escutar o paciente, a família, o vizinho...” (Psiquiatra 13).