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1. Liderança: alguns pressupostos

1.1 Liderança: autoridade e legitimidade

Iniciamos esta reflexão pensando a liderança como uma habilidade presente nos diversos grupos constituídos por seres humanos. Segundo Selznick (1971, p.21) "[...] todos os grupos humanos, através do tempo, têm necessidade de alguma liderança”. Observamos desde a infância, “crianças líderes” que se relacionam com o grupo organizando brincadeiras, distribuindo tarefas, conduzindo a escolha de diferentes atividades. Encontramos também outras, que engajam seus pares na realização de ações consideradas socialmente inadequadas. A estas últimas costumamos chamar de líderes negativos. Ambas as situações tratam de comportamentos espontâneos, que poderíamos conceituar como liderança “nata”, e tendem a se reproduzir na vida adulta.

Ainda que alguns autores defendam a natureza da liderança como acidental ou imprevisível, uma vez que ela se dá na relação entre pessoas em uma determinada situação social e pessoas que são líderes numa situação podem não ser em outras, há fortes evidências indicando que os padrões de comportamento22 de líderes são persistentes e relativamente estáveis. (SEZNICK, 1971).

Os grupos sociais parecem reconhecer como líderes, aqueles que têm algo a mais a oferecer, que têm autoridade à medida que possuem as habilidades necessárias para a condução de um grupo. Entendemos que há uma relação estreita entre liderança e autoridade; que o líder reconhecido em sua autoridade consegue conduzir o grupo na consecução dos objetivos propostos com uma “facilidade” ou “naturalidade” não encontrada em algumas outras pessoas.

A característica central dessas relações de liderança parece ser a aceitação voluntária da pessoa/líder pelo grupo. A esse respeito, Richard Sennett (2001, p.36) escreve:

[...] sempre podemos saber quando existe o sentimento de autoridade numa sociedade: é quando as pessoas obedecem voluntariamente a seus governantes. Se têm que ser coagidas, é porque não consideram legítimos esses governantes. (grifo do autor).

No caso das organizaçoes escolares, Stephen Ball (1994, p.125) afirma, sobre essa obediência voluntária, que “sem um certo grau de obediência e aceitação, na maioria das circunstâncias seria impossível levar a direção com êxito”.

Sennett (2001) destaca a definição de Max Weber sobre autoridade como a capacidade de fazer o outro aceitar ordens e seu enquadramento em três modelos: autoridade tradicional, carismática e racional/legal.

O modelo tradicional baseia-se na consideração de procedimentos como legítimos uma vez que sempre teriam existido e aceitos em nome de uma tradição reconhecida como válida. "O sentimento de autoridade, de estabilidade, provém da própria extensão temporal de duração [da] lembrança [dos costumes consagrados pela

22 Ver mais sobre as características dos líderes – teoria dos traços - no texto de Jorge Adelino Costa “Liderança nas

organizações: revisitando teorias organizacionais num olhar cruzado sobre as escolas” In: Costa, J. A.; Mendes, N.M.; Ventura, A. (Org.). Liderança e estratégia nas organizações escolares. Aveiro: Universidade, 2000.

tradição]" (SENNETT, 2001, p. 35). São exemplos de autoridade tradicional as práticas hereditárias judaicas e islâmicas.

O segundo modelo de autoridade, o carismático, se assenta nas relações pessoais entre um grupo e um indivíduo considerado exemplar. O líder, neste modelo, é considerado legítimo por seus seguidores e, em certo sentido, é sempre revolucionário, na medida em que se coloca em oposição consciente a algum aspecto estabelecido na sociedade em que atua. Os costumes tradicionais são derrubados e a lógica da ordem existente é descartada. Exemplo de autoridade carismática Jesus ou Maomé.

O ultimo modelo descrito por Weber é a autoridade racional/legal que se fundamenta na crença da legalidade das normas e no direito dos que ocupam os cargos (SENNETT, 2001). A autoridade, neste modelo, mantém-se segundo uma ordem impessoal e universalista, ou seja, qualquer um que seja capaz de cumprir as obrigações de um cargo está apto a ocupá-lo.

Este último modelo identifica-se com a forma de provimento de cargo de diretor de escola no estado de São Paulo. Avaliado em provas, que demonstrem a sua capacidade técnica, o diretor é investido no cargo e considerado o líder da equipe. Ele possui a autoridade racional/legal estabelecida, mas pode carecer da autoridade legítima que influencia pessoas e as mobiliza na prática de ações conjuntas.

O modelo carismático parece corresponder às escolhas de líderes no processo de eleição de diretores. Neste mecanismo, as qualidades pessoais do líder, bem como a sua reconhecida capacidade em promover mudanças, são os elementos que legitimam a sua posição no cargo.

O modelo tradicional descrito por Weber parece encontrar espaço, em nosso meio escolar, mais nas instituições privadas – com uma direção de caráter muitas vezes hereditário - do que propriamente nas instituições públicas, até porque, como já dissemos no capítulo anterior, no mundo moderno, de relações superficiais e líquidas há um “abalo das tradições” (BARRERE; MARTUCCELLI, 2001).

Seja qual for o modelo, ou ainda que esses modelos coexistam em um mesmo líder, podendo ser simultaneamente racional/ legal e carismático ou outro, parece-nos vero que o líder seja aceito apenas quando considerado verdadeiramente legítimo. Podemos dizer que uma autoridade é legítima quando há obediência incondicional às

diretrizes que provêm de uma determinada fonte, ou seja, quando um grupo acata as proposições do líder, tendo-o como altamente capacitado para o exercício de suas funções e por entender essas proposições como o melhor para todos (BALL, 1994; SENNETT, 2001). Nesse sentido, a liderança, fundamentada no reconhecimento da autoridade de uma pessoa, está em contraste com o controle autoritário. Práticas intimidatórias e coercivas não correspondem à autoridade legítima sobre a qual temos discorrido, e trazem traços de inabilidade democrática na condução do grupo. Não é raro vermos nas escolas públicas diretores “inábeis” tentando legitimar com autoritarismo, uma autoridade legalmente imposta.

Trabalhando ainda com o conceito, Richard Sennett (2001) identifica a figura de autoridade como alguém que assume responsabilidade pelo poder que usa. Podemos argumentar que um governo ditador também o faz. De qualquer maneira, tanto em um governo autoritário quanto em um democrático, o líder traz em si um poder que não se encontra em todas as pessoas, mas apenas em algumas. Seja no primeiro, com ações de intimidação e disseminação de medo, ou no segundo com atos de convencimento, influência ou força unificadora.

De acordo com Sennett (2001, p.13) “o vínculo de autoridade constrói-se a partir de imagens de força e fraqueza; é a expressão emocional do poder”. Nessa relação de poder estabelecida entre um grupo de pessoas e uma autoridade (seja um déspota ou um sequaz da democracia), as pessoas reagem à autoridade por motivações sociais, culturais e/ou psicológicas e pessoais.

Richard Sennett discute a autoridade sob uma perspectiva que admite a necessidade de sua presença na vida das pessoas ao mesmo tempo em que é por elas rejeitada.

No fim do século XVIII, com o advento da Revolução Francesa, o desejo de liberdade entre as massas populares admitiu a rejeição da autoridade como um objetivo nobre, o de “destruir a legitimidade dos governantes para alterar seu poder. Destruindo a confiança neles, podemos destruir seus regimes” (SENNETT, 2001, p. 61). A liberdade pessoal estava relacionada com a negação da legitimidade do líder.

Quando a linguagem de rejeição se estendeu da política, no século XVIII, para a situação econômica, no século XIX, passou a ser uma arma das pessoas frente às forças de mercado. Já que os governantes justificavam a dominação através da ideologia de mercado, considerando como “liberdade” a venda da força de trabalho (ainda que não houvesse mercado para todos), o trabalho diário de mais de 12 horas e o trabalho infantil, entre outros, bania-se a autoridade das pessoas: legítimo passava a ser o sistema de trocas como sistema.

Desse modo, o sistema de mercado do século XIX tornou ambivalentes os conceitos de comunidade e indivíduo: “nenhum ser humano específico, nenhum agente humano, podia ser responsabilizado pelas perturbações desses campos” (SENNETT, 2001, p.66).

Ainda no final do mesmo século, a necessidade de maior controle humano sobre as responsabilidades sociais possibilitou o aparecimento de figuras de autoridade tanto na tentativa de criar um sentimento de comunhão, como os patrões de fábricas que atuavam como “pais substitutos” em relação a seus trabalhadores, quanto exaltando o próprio individualismo, na figura do especialista autônomo, como médicos, engenheiros ou tecnólogos que tinham outras pessoas sob seu controle. De qualquer forma, estas relações continuavam controladas pelas forças de mercado com altos preços pagos por serviços, com demissões ou contratações de acordo com as necessidades dos empregadores e a proteção prometida pelas autoridades não era cumprida.

Para o mesmo autor, foi aí que surgiu o traço da autoridade moderna:

[...] figuras de força que despertavam sentimentos de dependência, medo e reverência, mas com o sentimento difundido de que havia algo de falso e ilegítimo no resultado. A força pessoal das autoridades era aceita, mas duvidava-se do valor de sua força para os outros. Aí começou a cisão entre a autoridade e a legitimidade (SENNETT, 2001, p. 67).

O medo do impacto dessas pessoas fortes e de valor duvidoso sobre as demais fez com que, especialmente na sociedade moderna, as pessoas passassem a usar instrumentos de negação como defesa. Essa negação da autoridade, segundo Sennett (2001), surge do sentimento de vulnerabilidade das pessoas frente a sua dependência em relação a alguém, e é algo mais do que questionar os superiores: questiona-se a

integridade da própria pessoa deles. Quando conseguimos acreditar que ninguém tem legitimidade para nos impor exigências, dispomos de uma arma contra a sua capacidade de nos fazer sentir fracos ou envergonhados.

Paradoxalmente, segundo o autor, a linguagem de negação traz uma segurança que estreita os laços com os superiores. Estes são necessários, apesar de negados. É como a relação com uma cultura que rejeitamos, mas da qual necessitamos como ponto de partida para nossas críticas e na qual nos apoiamos.

O mesmo autor descreve três modos como se constroem os laços de rejeição da autoridade. O primeiro liga-se ao medo e ele o denomina “dependência desobediente”. A autoridade, via de regra, está relacionada com o sentimento de medo: medo de não termos autoridade, medo de não termos sobre nós o controle de alguma autoridade e medo de perder nossa liberdade sobre a influência de alguma autoridade. Sobre este último é que se apóia o primeiro modo de rejeição. O elemento mais usado nesta relação de poder é a transgressão. O que a autoridade deseja é justamente aquilo que o subordinado tentará rejeitar, propondo uma alternativa inaceitável para o outro. No entanto, o fator controlador dessa rejeição continua sendo o desejo da autoridade que regula as ações do subordinado; “[...] o personagem central é o outro; a desobediência compulsiva tem pouquíssimo a ver com uma independência ou autonomia autênticas” (SENNETT, 2001, p.51). A pessoa não propõe alternativas como decorrência de um comportamento autônomo, antes procura saber o que agrada a autoridade para fazer oposição a ela.

Não raro, encontramos nas escolas esse tipo de rejeição da autoridade. Professores, funcionários e mesmo alunos confrontam a autoridade do diretor, criticando sua atuação sem, no entanto, propor alternativas de solução. Pretendem-se pessoas autônomas e independentes, mas não conseguem (ou não desejam) engendrar mudanças.

O segundo modo como são construídos os laços de rejeição é a “substituição idealizada”, onde a impressão de uma imagem positiva e ideal da autoridade se forma a partir da imagem negativa existente. Nesse modelo, as pessoas têm concepções de como seria um líder ideal e, com certeza, o líder real presente não possui as qualidades

idealizadas. Tudo o que a autoridade fizer será tomado como contrário; sempre o melhor seria diferente.

Este tipo de relação das pessoas com a autoridade é muito comum nas organizações educacionais, tanto em instâncias intermediárias do sistema como nas unidades escolares. Nas escolas onde o diretor é investido no cargo por mecanismos que não possibilitam a participação da comunidade escolar em sua escolha, é comum as pessoas pensarem que tudo seria diferente se a liderança tivesse outras qualidades que não as que efetivamente possui.

O medo que surge, nesse modelo, é o de "não ter um ponto de referência para dizer por que se está trabalhando, servindo ou sendo dependente" (SENNETT, 2001, p.58).

Parece que a relação da pessoa com a autoridade é determinada pela consciência que ela tem de seu trabalho, de seu chefe e dela mesma. Aliás, segundo o autor, esta é uma característica do trabalho atual:

para que ele [o trabalho] seja qualitativa e afetivamente satisfatório, como deseja um número cada vez maior de trabalhadores, a personalidade do patrão torna-se assaz importante. Ele confere parte desse sentido emocional ao trabalho, quando é uma pessoa para quem vale a pena trabalhar (SENNETT, 2001, p.150).

Não poucas pessoas se engajam em projetos de trabalho ou se dedicam mais intensamente a eles quando têm como referencial um líder atuante, presente e com qualidades reconhecidas. O contrário também é verdadeiro.

Na "dependência idealizada" o vínculo se mantém pela existência de uma figura social não apreciada a partir da qual se possa imaginar um modelo ideal.

O terceiro e último modo como se criam os laços de rejeição da autoridade é o "desaparecimento imaginado". É o sentimento de que tudo ficaria melhor se a autoridade desaparecesse. Esse é um modo de relação muito interessante, pois existe na pessoa a imaginação de que a pressão da autoridade sobre ela pudesse desaparecer se o seu trabalho fosse constantemente um fracasso. Ao mesmo tempo, desaparecendo a pressão, a pessoa passa a se sentir rejeitada. "A figura da autoridade é temida, mas o sujeito teme ainda mais que ela desapareça" (SENNETT, 2001, p.60).

A sensação é de que tudo está errado por causa da autoridade e, paradoxalmente, a sua presença é importante e desejada.

Tendo passado rápida revista pelos estudos de Richard Sennett sobre a negação da autoridade, podemos considerar que os vínculos criados pelas relações de poder entre a autoridade e os demais trabalhadores, são os determinantes do trabalho que será desenvolvido dentro das organizações. Os resultados desse trabalho dependem da capacidade ou poder da autoridade em mobilizar as pessoas e conseguir a adesão delas. Depende de sua habilidade de influência e convencimento para a prática de ações conjuntas, pois "o líder é um agente de institucionalização que oferece orientação a um processo que, de outra maneira, ocorreria mais casualmente ou estaria mais sujeito aos acidentes e circunstâncias da história" (SELZNICK, 1971, p. 23).