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O gestor criativo: disseminador de valores ou captador de recursos?

1. Liderança: alguns pressupostos

2.2 O gestor criativo: disseminador de valores ou captador de recursos?

Pensando no aspecto criativo do gestor como articulador de compromissos e decisões compartilhadas, o desafio para inovação é constantemente reforçado nos diversos módulos do Programa. Dentre as orientações do material está o estímulo à formação de novas lideranças. Os textos afirmam que uma liderança democrática ao invés de comandar deve criar condições para que novas lideranças sejam formadas. Destacam a responsabilidade do gestor em incentivar a formação de novas lideranças "compartilhando compromissos e responsabilidades de forma criativa, visando à melhoria do processo e dos resultados educacionais" (DOURADO; DUARTE, MÓDULO II, p. 92, grifo nosso). Essa criatividade do líder sugerida no texto dos Módulos é também ressaltada por Philip Selznick ao afirmar que:

A arte do líder criador é a arte da construção de instituições, a reelaboração dos materiais humanos e tecnológicos para modernizar um organismo que incorpore valores novos e duradouros (SELZNICK, 1971, p. 131).

A criatividade presente em ações inovadoras parece contribuir para o desenvolvimento das relações sociais no ambiente de trabalho e alterações na organização, uma vez que novas atividades desconstroem a rotina e estabelecem contatos com pessoas diferentes. Ao estabelecer mudanças nas relações, é possível que as pessoas incorporem novos valores e que assumam papéis de liderança.

Sobre o desenvolvimento da liderança criativa, temos, contudo, uma outra questão a analisar. Enquanto Selznick destaca a criatividade do líder, sobretudo, na construção de valores disseminados na organização através da articulação adequada dos recursos humanos e materiais, o material do Progestão, apesar de valorizar as relações interpessoais na construção da cultura organizacional, atribui valor ao líder criativo sob um outro ponto de vista: o de captador de recursos adicionais para a escola.

Para que o gestor escolar possa estabelecer parcerias interessantes para a

captação de outros recursos que otimizem a manutenção e funcionamento de

sua escola, é necessário que ele reúna duas habilidades fundamentais: capacidade de percepção do contexto econômico e criatividade. Na sua atuação mais criativa, o(a) gestor(a) precisa procurar, além das fontes públicas e da associação de pais e mestres – atualmente, o investidor alternativo mais freqüente da escola pública -, fontes adicionais de recursos (MOREIRA; RIZZOTI, MÓDULO VI, p. 100, grifo nosso).

O Caderno de Atividades (MÓDULO VI, p. 10) reforça que “a criatividade de quem dispõe de poucos recursos financeiros não deve ter limites” (MOREIRA; RIZZOTI).

Ao relacionar a captação de recursos com habilidades de iniciativa e criatividade, o material atribui ao gestor a responsabilidade por novas fontes de investimento na qualidade da educação. A página 101 do Módulo VI propõe uma atividade onde o gestor deverá indicar iniciativas para a captação de recursos privados para sua escola, “treinando a sua perspicácia”. Ao final da atividade faz o seguinte comentário:

Se não foi possível responder, não se preocupe: as parcerias e a busca de outras fontes de recursos financeiros ainda não são tão freqüentes nas escolas

públicas. Releia o que foi visto até aqui e procure compreender melhor (MOREIRA; RIZZOTI, MÓDULO VI, p. 102).

Claro está que a busca de recursos financeiros privados é tomada pelo Programa como uma função inquestionável do gestor. Se o diretor discorda desta atribuição deve “reler o texto para compreender melhor”.

O material parece fazer relação, ou mesmo tratar como sinônimos a “gestão” de recursos financeiros e a “captação” desses recursos para a escola, tratando o último como mecanismo gerador da autonomia da escola. Ressalta

a importância de o(a) gestor(a) buscar fontes adicionais de recursos para o bom funcionamento das escolas, num processo de descentralização administrativa que enfatiza a autonomia da gestão das escolas (MOREIRA; RIZZOTI, MÓDULO VI, p.105).

Redação muito semelhante encontramos na Resolução SE nº 23430, no Estado de São Paulo, em vigor desde o ano de 1995 - início da Reforma Estadual Paulista, que apresentamos no Capítulo I. Esta resolução normalizou a parceria escola pública/setor privado, priorizando, para esta última, o provimento de recursos financeiros para a escola. Destaca nas considerações iniciais “a necessidade de descentralizar e desconcentrar ações de forma a propiciar a autonomia de gestão a nível local” e em seu artigo 3º incentiva a criação de projetos de parceria como estímulo “à autonomia de gestão”. Em documento31 informativo que antecedeu o Programa, assinado pela então Secretária da Educação, professora Rose Neubauer, torna-se explícita a consideração política sobre “a impossibilidade de o poder público continuar sendo o único provedor de suas necessidades e soluções [da Educação]” e sugere “um esforço compartilhado entre o Estado e a Sociedade Civil”. O documento especifica, dentre as competências dos parceiros, a de “investir recursos nas escolas públicas” e “participar do gerenciamento desses recursos”.

30 Resolução SE nº 234 de 02 de outubro de 1995. Dispõe sobre a Escola em Parceria. 31 Escola em Parceria. Secretaria de Estado da Educação. Setembro de 1995.

O Módulo V (p.99) do Programa faz referência a esse processo de participação na gestão da escola quando orienta que “essa estrutura gerencial [das parcerias] tomará a seu cargo a execução do projeto e tratará de colocá-lo para funcionar”. Faz, contudo, uma observação de que “não se trata de ingerência externa na gestão da escola, e sim de permitir, mediante planejamento, acordo e contrato” a realização de atividades na escola por outras instituições (CARVALHO; SILVA).

Amplia-se, desta maneira, o sentido de parceria para além da captação de recursos: a participação de parceiros na gestão da escola, perpetuando-se uma política na qual pretende-se o aprofundamento e ampliação da democracia por meio de parcerias entre o Estado e a sociedade civil, ou seja, a política da terceira via (ADRIÃO; PERONI (Org.), 2005).

O Módulo VI (p. 98) reforça essa posição política quando afirma que:

Hoje, uma das estratégias mais importantes de sobrevivência econômica é a parceria, uma troca de serviços entre empresas ou instituições, objetivando benefícios mútuos. [...] Com as políticas sociais voltando-se para a descentralização da forma de administrar e para a busca de autonomia de gestão pelas unidades executoras, as parcerias têm apresentado, desde a década de 90, grande destaque nos cenários nacional e internacional (MOREIRA; RIZZOTI grifo nosso).

As parcerias como “destaque nos cenários nacionais e internacionais”, apontadas como estratégias para a eficácia da administração pública, nos remetem às prescrições de agências financiadoras internacionais (as quais compõem o quadro de parceiros identificados pelo material), contidas em propostas como a intitulada “Transformação Produtiva com Equidade” da CEPAL e UNESCO (1995, p.302), onde encontramos a seguinte afirmação:

Uma solução para aumentar, de uma só vez, o montante e a estabilidade do financiamento da educação é a diversificação de fontes. Na América Latina e no Caribe, os recursos públicos são responsáveis pela maior parte do financiamento da educação e capacitação técnico-profissional, havendo, portanto espaço para que cresça a contribuição do setor privado (famílias e empresas) (grifo nosso).

Além da diversificação de fontes de financiamento, essas agências têm recomendado a presença do setor privado na capacitação técnica de profissionais para

o desempenho de funções administrativas. O material do Progestão cita o fórum realizado pelo Instituto Internacional de Planejamento da Educação (IIPE) em Buenos Aires que discutia, em 1998, a formação de recursos humanos para a gestão da educação, seguindo também a recomendação da Unesco de “profissionalizar a gestão”, baseada em “técnicas e ferramentas disponíveis para a gestão e administração dos serviços educativos [...]” (MOREIRA; RIZZOTI, MÓDULO VI, p. 24).

O desenvolvimento da habilidade profissional técnica é incentivado pelo Programa com a finalidade de capacitar o gestor no gerenciamento dos recursos financeiros da escola.

Autonomia na gestão, ou seja, liberdade para decidir coletivamente onde e como serão empregados os recursos financeiros da escola parece ser, segundo as orientações do Programa, o mesmo que “capacidade técnica” (ou será política?) do gestor para buscar recursos privados como alternativa à insuficiência de recursos disponibilizados pelo Estado. Isso mesmo nos confirma a seguinte citação:

Sabe-se que os recursos financeiros públicos destinados às escolas são, na maior parte das vezes, insuficientes para cobrir todos os investimentos de que necessitam. [...] A relação de troca de serviços e interesses estabelecida nas parcerias significa uma forma de rompimento com a relação de favorecimento e clientelismo que sempre reinou no repasse de recursos para a educação. Se antes o gestor dependia apenas da boa vontade e de favores políticos, ele agora dispõe de mecanismos que colocam a escola em condições de negociar suas próprias soluções, em certos casos mais ágeis, para problemas imediatos (MOREIRA; RIZZOTI,MÓDULO VI, p. 97, 99-100).

O texto outorga ao gestor a liberdade de “negociar suas próprias soluções” (ou seja, captar seus próprios recursos) e de não mais depender da “boa vontade e de favores políticos”. Serão os recursos financeiros públicos repassados para a escola, garantidos32 pela nossa Constituição Federal, favores e boa vontade políticos? Parece- nos que mais boa vontade tem que ter Deus para com os homens...

No Caderno de Atividades do Módulo VI há diversas atividades a serem respondidas pela equipe gestora, sobre aplicação de recursos financeiros de repasse público, captação de recursos privados, prestação de contas ao Estado e à

32 Artigo 212 da Constituição Federal: aplicação anual de, no mínimo, 18% (União) e 25% (Estados, Municípios e

comunidade, entre outras. Interessante notar que, em todas as atividades que solicitam um cálculo de receita para a escola, o recurso privado representa uma porcentagem significativa, ou seja, a escola deve claramente contar com recursos provenientes de diferentes fontes, além das públicas. Na página 30, o texto apresenta estratégias criadas por um diretor de escola para atender às necessidades de material básico para cozinha (panelas, liquidificador e picador de legumes) e para as aulas de Educação Física (bolas, cordas, plintos, camisetas). As estratégias para atender a essa demanda são uma festa junina e uma parceria com uma loja de equipamentos desportivos. A partir daí, sugere-se uma atividade para o gestor identificar outras fontes possíveis de recursos para atender a todas as prioridades, lembrando que sua meta é gerar “poucas despesas e muitos lucros para a escola [...]”. Ao final da atividade, o texto traz o seguinte comentário:

se, além das [fontes] que foram apresentadas, você apontou outras possibilidades de parceria, melhor ainda: isso significa que você está usando sua habilidade de criar e propor alternativas para uma boa gestão financeira na escola (MOREIRA; RIZZOTI, MÓDULO VI, Caderno de Atividades, p.31, grifo nosso).

Ao passar rápida revista pela atividade, observamos logo duas possíveis distorções. A primeira diz respeito aos materiais de que a escola carece: são objetos básicos, necessários para o trabalho profissional e para atendimento à população escolar. É possível pensar uma cozinha sem panelas? O professor de Educação Física pode desenvolver atividades sem material esportivo, mas isso seria uma opção metodológica ou uma falta de opção? Acreditamos que os recursos públicos devam ser suficientes para, no mínimo, atender às necessidades básicas da escola. A segunda distorção é que, outra vez, o material relaciona a habilidade criativa do gestor com a captação de recursos e uma boa gestão da escola. Trata a gestão e a captação de recursos como funções de igual significado, como habilidades que, em conjunto, constituem uma competência profissional.

A gestão financeira é vista pelo Programa, portanto, como uma das competências da escola e, mais especificamente do gestor. O texto assegura que “gerenciar os recursos financeiros, embora seja uma atividade complexa, pode ser

bastante gratificante para o gestor e resultar em excelentes frutos para a escola” (MOREIRA; RIZZOTI, MÓDULO VI, p. 25).

Não discordamos que seja função do diretor a gestão dos recursos financeiros da escola. Pelo contrário, esta faz parte da natureza da administração: a utilização racional de recursos é que torna uma administração competente. No entanto, administrar recursos não é o mesmo que administrar a falta de recursos (PARO, 2006).

A despeito das discussões entre gestão e captação dos recursos, o fato é que a gestão financeira da escola, atualmente, está sob a responsabilidade do gestor (representante do Estado) e mediada pelas unidades executoras - UEx (entidades "de direito privado [...] responsáveis pelo recebimento e execução dos recursos financeiros recebidos pelo FNDE [...]" (BRASIL, 1997a, p. 11)). As UEx foram criadas, a partir de 1997, viabilizando a formalização dos acordos entre escolas públicas/organizações privadas. Na rede estadual paulista estas UEx são representadas pelas APMs – Associações de Pais e Mestres – de cada escola.

O material do Progestão orienta os gestores sobre a exigência legal da instituição das UEx, e incentiva sua criação como procedimento democrático que possibilite a participação de toda a comunidade na gestão dos recursos financeiros da escola (MÓDULO VI). Dentre as verbas públicas recebidas pela escola, os textos destacam como exemplo, o repasse do FNDE (Fundo Nacional para o Desenvolvimento da Educação) do recurso denominado PDDE (Programa Dinheiro Direto na escola) utilizado para custeio e investimento na unidade escolar. Dentre os recursos privados, o texto ressalta, como já mostramos, as parcerias como zonas de interesses convergentes onde “desenvolve-se uma relação horizontal entre o público estatal, representado pelo Estado, e a ‘publicização’ da cidadania, representada pela sociedade civil” (MOREIRA; RIZZOTI, MÓDULO VI, p.99).

Identificamos aqui uma das proposições para a reforma do Estado, adotadas pelo governo federal (década de 1990), a saber, a privatização, a terceirização e/ou a publicização de serviços prestados pelo Estado, que constam do Plano Diretor da

Reforma do Aparelho do Estado33. A publicização corresponde à execução de serviços subsidiados pelo Estado, mas não por ele executados (ADRIÃO, 2006).

Ao falar sobre a publicização dos serviços sociais, o material ressalva que, apesar da atuação do setor público não-estatal na escola, o Estado continua com papel relevante em seu “dever de garantir a toda a população educação pública de qualidade” e que, “parceria não implica a ‘privatização’ da escola; [...]”. (MOREIRA; RIZZOTI, MÓDULO VI, p. 99). Reitera essa afirmação com o seguinte destaque no texto, citação de Sousa (1997):

Sendo assim, a parceria não é o desvirtuamento das funções do Estado. O que se verifica é que a atividade pública é exercida num espaço limítrofe entre o Estado e a sociedade civil. As características que marcam esta zona de ação pública são a flexibilidade, a velocidade e o poder aglutinador. (MÓDULO VI, p. 99).

O material do Programa procura estabelecer distância entre a atuação de parceiros e a privatização da escola. No entanto, Theresa Adrião (2006, p.169) alerta- nos para uma alteração significativa no modelo de gestão com a entrada das parcerias no gerenciamento das escolas. Ressalta que, as próprias APMs, como instituições jurídicas, que não se subordinam às normas da administração pública direta, a despeito de aumentarem paulatinamente a autonomia das escolas, podem indicar “a introdução, também paulatina, de mecanismos privatizantes da gestão do ensino público”.

Outra opção de parceria apresentada pelo material do Programa são as organizações que pertencem ao chamado terceiro setor, dentre as quais estão as organizações não-governamentais ou ONGs. Os textos salientam a importância desses organismos na atuação em “projetos educativos localizados e voltados para o benefício da sociedade” (MOREIRA; RIZZOTI, MÓDULO VI, p.101). Instruem os gestores sobre as formas de acesso a essas organizações, indicando a Abong – Associação das organizações não-governamentais e as Secretarias de Educação como fontes de informação.

Não obstante a contribuição real dessas organizações da sociedade civil no desenvolvimento de ações educativas na escola, ao exaltarmos as mesmas como co-

responsáveis pelo financiamento da educação, podemos incorrer no erro, de acordo com Carlos Montaño (2002), de reduzir a responsabilidade social do Estado, passando- a para a própria sociedade, para a comunidade local ou para o indivíduo.

Essa responsabilidade – pelos bons serviços oferecidos – parece relacionar-se, nesse sentido, com a “capacidade empreendedora” do gestor, na gestão administrativa, pedagógica e financeira da escola.

2.3 O gestor empreendedor: construtor da cultura organizacional ou reprodutor