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1 BASES TEÓRICO-METODOLÓGICAS

1.5 DIMENSÕES METODOLÓGICAS PARA A CONSTITUIÇÃO DE CORPORA

1.5.3. Os limites do modelo: níveis de análise

A amplitude que sugere a noção de campo, tal e qual nós a entendemos, requer esclarecimentos de caráter teórico que visam a responder a questão metodológica de como demarcar os focos de poder que a pesquisa privilegiará sem que nos percamos

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Na perspectiva adotada por Gulhaumou e Maldidier (2010 [1994]), a questão do corpus, tida como evidência na análise do discurso clássica, coloca-se como um aspecto metodológico essencial para a ampliação do campo de investigação da “história social dos textos”. O fato arquivista – complexo e diversificado – não se restringe aos limites da escrita, de um gênero ou de uma série, ele se manifesta em múltiplos níveis e conjuntos de configurações textuais. Os autores se distanciam de um tipo de disciplina arquivológica cujo objetivo maior consistiria na “organização dos dados com vistas à informação” (BELLOTTO, 1989), introduzindo na perspectiva discursiva a preocupação de mobilizar um vasto leque de arquivos na construção de objetos de análise.

na proliferação indefinida – no espaço e no tempo – de práticas singulares, já que fica fora de toda cogitação a possibilidade de concretizar uma análise interpretativa da totalidade das relações glotopolíticas atribuíveis ao espaço de relações que nos interessa analisar.

É preciso, portanto, numa primeira aproximação (provisória e passível de retificações), escolher um recorte, referir-se a um domínio, privilegiar um tipo de prática e considerar enunciados significativos sem esquecer, contudo, que os critérios de demarcação e especificação que comandam ou orientam as opções práticas da pesquisa representam, mais do que um plano desenhado de antemão e destinado a fornecer inteira e antecipadamente o trajeto a percorrer, um programa de grande fôlego que se realiza aos poucos, por retoques sucessivos, por toda uma série de correções e emendas. Porém, como circunscrever essa regionalização sem aceitar passivamente a homogeneidade oferecida por certas sínteses não problematizadas? Seria legítimo reproduzir no modelo do espaço relacional os contornos decretados por figuras de conjunto já consagradas como políticas linguísticas, didática das línguas e linguística? Ou, talvez, apelar à pretensa homogeneidade oferecida por categorias como gênero, suporte e arquivo?

Convém, por esse motivo, perguntar-se em que medida essas formas imediatas de continuidades devem ser incluídas provisoriamente, colocadas em suspenso ou descartadas definitivamente para que assim sejam criadas as condições que permitam apreender outras formas de regularidades e outros tipos de relações que de outra maneira não poderiam ser formuladas.

Aquilo que designamos como campo glotopolítico surge como primeira reação diante dessa exigência, eminentemente teórica e prática, que consiste em circunscrever, a partir de um universo de regimes múltiplos de produção, um espaço relativamente restrito de práticas, tomando, simultaneamente, as devidas precauções ante as evidências garantidas pelas realidades imediatas47.

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O verdadeiro ponto de ruptura não reside em recusar definitivamente essas realidades que podem por assim dizer, ser vistas claramente, (instituições, grupos, indivíduos), mas em tomar como objeto o trabalho social de construção de objetos pré-construídos (agrupamentos mais ou menos arbitrariamente delimitados, obtidos por “divisões sucessivas de uma categoria ela própria pré-construída”) (BOURDIEU, 2010 [1989], p. 28).

Reconhecendo que a teoria é, na prática, um modus operandi, um programa de percepção e de ação, ou seja, um projeto de fazer perceber e de agir através da prática teórica, a noção de campo glotopolítico deve funcionar como um instrumento de percepção dos espaços sociais de produção de conhecimento linguístico. Deve servir, portanto, para nos precavermos contra o retorno de unidades pré-construídas48 na medida em que ela permite pensar relacionalmente espaços particulares de práticas e suspender, ao menos enquanto durar a análise, aquelas realidades substanciais que parecem oferecer-se, sem resistência, à observação.

Assim, face à problemática metodológica que diz respeito à questão de estabelecer os limites do dispositivo analítico – problemática esta que não é possível dissociar do problema teórico de recriar, ao menos nos seus traços significativos, um modelo limitado do campo49 – daremos uma primeira resposta teórica afirmando que “o limite do campo é o limite dos seus efeitos ou, em outro sentido, um agente ou uma instituição faz parte de um campo na medida em que nele sofre efeitos ou que nele os produz” (BOURDIEU, 2010 [1989], p. 31).

Este primeiro nível de delimitação implica, antes de qualquer coisa, vincular práticas e posições glotopolíticas, assumindo o risco de depararmo-nos, já de início, com domínios bastante amplos e cronologias bastante vastas. Ele visa, basicamente, a incluir no mesmo modelo um conjunto de práticas produzidas por (grupos de) agentes, quer se trate de simples particulares, quer se trate de especialistas autorizados50.

Vê-se, então, que não se trata de reduzir o campo de relações glotopolíticas às descobertas ou teorizações feitas por um grupo privilegiado de linguistas tout court51,

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Procurar não cair nas armadilhas dos objetos pré-construídos, como adverte Bourdieu (2010, [1989], p. 30), não é fácil, principalmente quando se trata de construir um objeto no qual se tem interesse. 49

Modelo limitado, precisamente, porque os campos glotopolíticos devem ser considerados, sob esta perspectiva, como espaços multidimensionais inseridos no conjunto aberto de campos relativamente autônomos que constitui o espaço social.

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Agentes que, enquanto produtores ou consumidores, estão ligados ao mesmo espaço de concorrências, direta ou indiretamente, pelos efeitos que os diversos mercados linguísticos podem lhes impor quotidiana ou eventualmente.

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Em geral, a monopolização das definições e dos modos legítimos de conhecer seus objetos de interesse faz parte da história de lutas pela autonomia que une os (grupos de) agentes envolvidos nos campos de produção de conhecimento. No entanto, a existência de uma ciência linguística geral,

ou às grandes decisões linguísticas tomadas no âmbito estatal. Trata-se, principalmente, de recompor as condições de pertencimento dos agentes a um mesmo campo relacional de práticas, incluindo nele intervenções de agentes não necessariamente especializados em pesquisas linguísticas52. O delineamento, grosso modo, dos limites difusos entre campos glotopolíticos (interseções, superposições, interdependências, afastamentos, etc.) está sujeito à identificação daqueles (grupos de) agentes passíveis de receberem e/ou produzirem efeitos em razão das posições ocupadas no espaço hierarquizado de posições.

A vinculação dos conflitos de interesse (reconhecimento de competências legítimas, monopolização de instrumentos de produção e difusão, concorrência pelo acesso a meios e recursos escassos, hierarquização de instâncias de produção de conhecimento, etc.) às posições glotopolíticas dos agentes contribui para evidenciar dispersões e (des)continuidades que certas categorias profissionais e institucionais não deixam entrever.

Tendo em mente a definição lata da noção de campo glotopolítico, como proposta acima, estamos em condições de explicitar um segundo nível de delimitação que tem por função restringir a análise relacional a um domínio histórico particular. Empregaremos o nome campo glotopolítico do espanhol para fazer alusão a esse domínio. Entretanto, o emprego que fazemos dele deve, sempre que possível, buscar atenuar os efeitos de pré-construído que o próprio ato de nomear (uma língua, por exemplo) tende a reativar e, assim, resguardar-nos do risco de tomar como dado aquilo que, justamente por estar em jogo como objeto de lutas, deveria ser posto em questão.

Diante disso, compreende-se que não esperamos como resultado último da pesquisa a descoberta de um universo discreto e fechado em si mesmo, precisamente porque o modelo construído nunca deixa de ser um esboço lacunar de relações glotopolíticas que exige, enquanto tal, um constante recompor dos dispositivos

fechada em si mesma, isto é, completamente unificada e autônoma não é mais que um tipo ideal, na prática, irrealizável.

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Essa cisão evidente e realista entre especialistas e amadores que, no plano discursivo, separa e ordena hierarquicamente o veredito erudito e a opinião ingênua é um efeito ligado à distribuição desigual do capital de autoridade normativa. Cisão, aliás, estrategicamente empregada para justificar a exclusão de agentes desprovidos da competência específica (outsiders e challengers) do terreno das discussões legítimas.

analíticos. É nesse sentido que o segundo nível de delimitação obedece à tentativa de circunscrever, mediante objetivação, uma determinada configuração do espaço social e, portanto, não deve ser considerado como definitivo nem como válido de forma absoluta.

Contudo, se como tentamos sugerir, a noção de campo glotopolítico do espanhol é válida para definir uma configuração particular, não é algo que possa ser determinado previamente. Daí a importância que tem para a delimitação do corpus de análise a identificação de alvos de interesse que, pelo fato de não preexistirem ao espaço relacional no qual se inscrevem, fornecem os traços pertinentes das lutas locais e focos particulares de poder que opõem e congregam agentes situados em diferentes posições desse mesmo espaço.

Existe, nesse marco, um terceiro e último nível de delimitação que julgamos relevante, cujo objetivo é privilegiar a emergência de um desses interesses que encontram no campo glotopolítico de espanhol as condições de existência.

Referimo-nos à normatividade linguística53 para designar um desses interesses constitutivos do campo glotopolítico do espanhol. Mas não recorremos a ela para reconstruir a história de uma área disciplinar a partir do elemento originário que marcaria seu nascimento. O conceito de interesse permite depreender uma série de objetos a conhecer que, enquanto alvos de lutas, delineiam os focos de poder-saber54 nos quais se desenrola todo um conjunto de investimentos glotopolíticos (a normalização linguística como tema na agenda política, a norma implícita como objeto de estudo, o descritivismo normativo como método científico, a prescrição normativa como problema ético, etc.) vinculados a agentes interessados, e, ao mesmo tempo, dotados desigualmente para agir e intervir no campo em questão.

A dispersão enunciativa comportada pelo dispositivo analítico trata, de certa maneira, de atravessar um amplo espaço indefinido de relações percorrendo um eixo transversal que envolve focos de conflitos, campos de produção e objetos de interesse.

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A descrição desse objeto de discurso específico não é o fim último ou exclusivo da análise. Interessa- nos, de fato, inclui-lo no construto modelar a partir das especificações do sistema de possibilidades (e dos controles das possibilidades) glotopolíticas em que os focos de conflitos (de interesse) em torno da normatividade se tornam legíveis ou dizíveis.

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Afinal, não nos propomos fazer uma história linear do conhecimento normativo da língua espanhola, remetendo a suas origens ou avaliando seu grau de maturidade científica. Muito menos pretendemos interrogar-nos sobre as intenções e desejos que impulsionam o homem à procura de uma norma objetiva que subjaz ao comportamento linguístico55. Até certo ponto, o que nos interessa é analisar/interpretar focos de conflitos – ao mesmo tempo epistemológicos e políticos – que dão lugar a um campo de produção de um tipo específico de objetos de interesse.

55 Como alerta Foucault: “fazer da análise histórica o discurso do contínuo e fazer da consciência humana o sujeito originário de todo devir e de toda prática, são as duas faces de um mesmo sistema de pensamento” (FOUCAULT, 2013 [1969], p. 15).