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OS CIRCUITOS DE LEGITIMAÇÃO E A PRODUÇÃO DE AUTORIDADE

3 O CAMPO GLOTOPOLÍTICO DO ESPANHOL

3.2 OS CIRCUITOS DE LEGITIMAÇÃO E A PRODUÇÃO DE AUTORIDADE

Todo campo é um campo de produção. Logo, para compreender as relações de força que conformam e transformam o campo glotopolítico do espanhol é preciso considerar todo o trabalho (simbólico e material) destinado a gerar condições favoráveis para o desenvolvimento de modos de produção específicos. O valor dos objetos resultantes dessa produção – noutras palavras, a importância (no sentido de relevância social e econômica) a eles atribuída num determinado mercado linguístico – não é resultado dos ajustes de um sistema autorregulado nem o reflexo da coincidência miraculosa e aleatória de preferências individuais. Ela deriva desse trabalho interventivo e interativo, cuja eficácia, por sua vez, dá-se em função da posse de propriedades pertinentes e eficientes no campo glotopolítico e nos diversos mercados linguísticos que nele se constituem.

Os produtos normativos (dicionários, ortografias, gramáticas, livros didáticos, guias de correção, livros de estilo, etc.) adquirem seu valor (e seu sentido), portanto, em suas relações com os mercados linguísticos onde são geradas as “leis” de formação de preços. Essa dependência faz com que a produção glotopolítica em seu conjunto seja irredutível ao trabalho de fabricação propriamente dito (tempo de produção, custo dos materiais, processos de impressão e encadernação, etc.). Ela não se completa verdadeiramente sem o trabalho coletivo de produção do valor dos agentes produtores e dos modos de produzir.

O reconhecimento da autoridade delegado a um produto normativo (como um dicionário) ou instituição glotopolítica (como a RAE) não advém da soma das propriedades (incorporadas, objetivadas ou institucionalizadas) detidas individualmente por cada um dos autores ou membro(s) respectivamente. Por se tratar de uma autoridade delegada, a eficácia do conjunto de poderes de espécies diferentes (social, cultural, político, econômico, etc.) necessários para produzir o reconhecimento de uma dada forma de produção, isto é, produzir a crença no valor

dos produtos e dos produtores, reside na relação com os mercados linguísticos90 e, portanto, na relação com a clientela dotada de disposições e aptidões para avaliar e apreciar os objetos e os discursos normativos a eles associados.

Isso significa, de certo modo, que a garantia institucional de qualidade dos bens glotopolíticos – ao mesmo tempo objetos econômicos e simbólicos – não está realmente assegurada sem um sistema de legitimação que produza e consagre, não apenas o valor econômico dos bens produzidos, mas também o valor simbólico das instâncias de autoridades que os produzem. Não é possível, a rigor, calcular a cotação de uma obra normativa91, ou seja, definir sua apreciação ou depreciação numa determinada região do campo glotopolítico sem descrever as relações existentes entre ela e os aparelhos encarregados de salvaguardar o capital de autoridade normativa a partir do qual se constrói o valor (material e simbólico) de toda produção.

Neste sentido, a confiança depositada no conteúdo das obras e o crédito outorgado aos (grupos de) agentes que respondem por sua autoria só podem ser conservados na medida em que estejam disponíveis os meios necessários para produzir, contínua e inseparavelmente, a oferta e a procura desses produtos, assegurando assim a existências de mercados favoráveis e duradouros.

Vale a pena reiterar, como dissemos mais acima, que, por ser a autoridade normativa um poder fiduciário, um crédito, sempre parcial, do qual nem todos podem tirar o mesmo partido, ela só passa a funcionar como tal em virtude das relações de força geradas no e pelo campo de produção em seu conjunto. Deve-se renunciar, portanto, a procurar o princípio de poder (ou de capital) nesse ou naquele

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Segundo Bourdieu a constituição de um mercado linguístico cria as condições de uma concorrência objetiva na qual a competência legítima pode funcionar como capital. Por sua vez, somente se consegue salvar o valor da competência sob a condição de salvar o mercado, ou seja, “o conjunto de condições políticas e sociais de produção dos produtores-consumidores” (BOURDIEU, 1996 [1982], p. 42-44). 91

Nomdedeu Rull parece identificar na própria forma do dicionário, e em menor medida na forma das gramáticas, o atributo primordial para a veiculação da norma linguística: “el principal instrumento que deposita la norma es el diccionario [...]”. Ele, “gracias a su orden alfabético, ofrece la posibilidad de una consulta rápida por palabras: una palabra está o no, cómo se escribe, cómo se pronuncia, qué significa [...]” (NOMDEDEU RULL, 2005, p. 454).

(grupo de) agente, nessa ou naquela instituição, nesse ou naquele sistema de produção para poder perguntar se, na verdade,

o princípio gerador desse poder não é o próprio campo, isto é, o sistema de diferenças constitutivas de sua estrutura e as disposições diferentes, os interesses diferentes, e mesmo antagônicos, que ele gera entre agentes situados em diferentes posições desse campo e empenhados em conservá-lo ou transformá-lo (BOURDIEU, 2011 [1987], p. 128).

Por esse viés, é possível traçar analogias com outros universos sociais, como os campos artístico e religioso. É difícil encontrar pesquisas que considerem seriamente a ideia de responsabilizar exclusivamente o artista ou profeta pelo valor social conferido a suas criações ou presságios, deixando de lado as condições que permitem sintonizar a produção de objetos legítimos (objetos físicos e sagrados investidos de valor simbólico e econômico) e a produção de consumidores predispostos a apreciá-los como tais e a pagar o preço, material ou simbólico, para deles se apropriarem.

Embora o caráter parcial de uma pesquisa possa enfatizar a incidência de uma ou várias posições de autoridade em um campo glotopolítico, é necessário ter em mente os efeitos das relações cruzadas que condicionam a produção e a valoração de bens normativos. Além das relações entre produtores concorrentes (críticos ou não), devem ser consideradas aquelas constituídas entre eles e os consumidores. É por intermédio do consumo e da apropriação material ou simbólica dos produtos normativos que as clientelas expressam maior ou menor grau de confiança, contribuindo para manter as hierarquias glotopolíticas inscritas no campo.

É, principalmente, pela relação de conluio objetivo entre os interesses dos primeiros – “adversários cúmplices” – e destes últimos – “vítimas cúmplices” – que a totalidade do campo contribui para sustentar continuamente a tensão dos mercados

linguísticos92. Dominar o campo glotopolítico não significa, na esteira destas formulações,

o efeito direto e simples da ação exercida por um conjunto de agentes (“a classe dominante”) investido de poderes de coerção, mas os efeitos indiretos de um conjunto complexo de ações que se engendram na rede cruzada de limitações que cada um dos dominantes, dominado assim pela estrutura do campo através do qual se exerce a dominação, sofre de parte de todos os outros (BOURDIEU, 2014 [1994], p. 52).

Posto nesses termos, seria pouco esclarecedor para os propósitos desta pesquisa aceitar, sem restrições, a existência de um centro onipotente unilateralmente dirigido (de cima para baixo) sobre a passividade dos falantes. Do mesmo modo, pouco contribuiria supor a existência de um grupo de notáveis designado espontânea e consensualmente por toda a comunidade linguística (de baixo para cima) para decidir sobre as questões linguístico-normativas. Dessa dupla negação se depreende que não é possível afirmar categoricamente se é a produção que segue ao consumo ou vice-versa.

De nossa parte, entendemos que é preciso abordar a relação dialética que condensa a demanda pela produção e a produção da demanda a partir da descrição de continuidades e descontinuidades nos circuitos glotopolíticos de produção e consagração. Circuitos esses constituídos pelas inúmeras práticas institucionalizadas e não institucionalizadas que devem ser capazes de produzir e manter, inseparavelmente, os produtos e a necessidade destes produtos (BOURDIEU, 2008 [1972], p. 149)93.

Vê-se de passagem quão inadequada poderia resultar uma análise que omitisse a circularidade inerente à produção do valor da(s) instância(s) de

92

A produção legítima da demanda é sustentada pelas relações de distinção e pretensão que são, ao mesmo tempo, a condição e o produto do funcionamento do campo e de seus efeitos.

93

Cf. BOURDIEU (2008 [1972]) para o uso que o autor faz desse conceito aplicado aos bens simbólicos próprios de campo da moda.

autoridade normativa. Os exemplos abaixo demostram como o solapamento dessa dialética faz aparecer uma série construída de problemas legítimos (dúvidas, desconhecimento, incertezas, perigos, pressões, exigências, desafios, incompetência) que estariam na origem da necessidade preexistente ao conjunto de soluções oferecidas:

se dirige tanto a quienes buscan resolver con rapidez una duda concreta y, por consiguiente, están solo interesados en obtener una recomendación de buen uso, como a quienes desean conocer los argumentos que sostienen esas recomendaciones. Cada lector obtendrá, pues, una respuesta adecuada a sus intereses, particulares o profesionales, y a su nivel de preparación lingüística (RAE; ASALE, 2005, p. 13);

[…] está destinado a la inmensa mayoría, a todos los hablantes que experimentan dudas e incertidumbres ortográficas o gramaticales ante la lengua […]. En trama gris se destacan las observaciones y consejos de norma con el fin de advertir al lector de frecuentes peligros de incorrección (RAE; ASALE, 2013, p. 16);

La Fundéu BBVA, gracias a su equipo de periodistas y filólogos, a sus miles de amigos repartidos por todo el mundo y, por supuesto, a la ayuda de sus patrocinadores, la Agencia EFE y el banco BBVA, se renueva diariamente para responder de la mejor manera y con urgencia, si no con inmediatez, a la necesidad de los hablantes de nominar a las nuevas creaciones y actividades, y también de resolver las dudas que surgen en el ejercicio diario de escribir en los medios, en los blogs profesionales o particulares y en las redes sociales. Esta nueva y renovada edición del Manual de español urgente es una demostración más de ese espíritu de servicio y ese carácter moderno de la Fundación del Español Urgente (FUNDÉU, 2015);

El español actual está sometido a la presión de las lenguas dominantes internacionalmente, a las exigencias de los medios de comunicación, al reto de las innovaciones tecnológicas. el usuario de la lengua, incluso culto, vacila ante determinadas palabras, ignora si ciertos usos son aconsejables. El innegable deterioro de nuestra lengua ha relajado la competencia del hablante individual para juzgar la corrección de expresiones y vocablos muy extendidos. El presente manual proviene de la preocupación de la Agencia EFE por conseguir un equilibrio entre un español vivo y actual y una lengua libre de extranjerismos superfluos y de usos

empobrecedores. Periodistas, redactores de informes, publicistas y en general cualquier persona que requiera una guía ágil y nada restrictiva para la claridad y corrección de su expresión oral o escrita, encontrará en este manual un auxiliar valioso (AGENCIA EFE, 2001).

Pretender encontrar nas necessidades dos consumidores (resolução de dúvidas, obtenção de recomendações e respostas adequadas, requerimento de um guia para claridade e correção) a fonte originária e a razão primeira da cadeia produtiva faz com que os produtos normativos – desvinculados dos circuitos de legitimação a que devem parte do seu valor – apareçam apenas como resposta posterior à demanda social precedente.

Desde el punto de vista del corpus, el criterio de la "corrección" suele orientar el uso lingüístico, porque las comunidades necesitan y exigen una norma "correcta" que seguir. Las Academias pretenden satisfacer esta necesidad en los países de habla hispana, si bien su fruto ha tenido un alcance bastante restringido (MORENO FERNÁNDEZ, 1992, p. 353, grifos nossos).

A produção legítima de representações glotopolíticas (bom uso, perigos de incorreção, deterioração linguística, usos empobrecedores, relaxamento da competência de julgamento do falante culto, etc.) que reforçam o reconhecimento das instâncias de autoridade normativa dispostas a oferecer soluções prontas repousa, em última análise, na existência de circuitos glotopolíticos de legitimação encarregados de garantir duradouramente as disposições comuns e manter uma adesão dóxica ao estado das coisas94.

94

É revelador observar a circulação menos enfática do discurso de salvação em nichos de mercados altamente especializados e, aparentemente, menos atraentes para a RAE, como é o caso da ortotipografia (cf. MARTINEZ DE SOUSA, 2011, p. 650; DIAZ SALGADO, 2011, p. 109-110) e da terminologia (cf. POZZI, 2011; CABRÉ, 2006; SUBIRATS, 2015).